Chegou ao palco principal com uma camisola preta onde se lia:”Prendam o Presidente” a vermelho. Cristopher Wylie, o ex-diretor de Investigação da Cambridge Analytica que expôs a utilização indevida de 80 milhões de contas de Facebook para ajudar a eleger Donald Trump, era uma das intervenções mais esperadas da tarde desta terça-feira na Web Summit. Quase sem deixar falar Krishnan Guru Murthy,  jornalista do Channel 4 — um dos meios que noticiou o caso –, o denunciante contou tudo o que se passou durante o tempo em que trabalhava na empresa.

 “Quando comecei a trabalhar com o grupo SCL, a Cambridge Analytica ainda nem existia. O meu trabalho era tentar perceber como podíamos utilizar dados para direcionar conteúdos a pessoas em grandes eventos contra terroristas. Se se está a tentar interferir com redes de comunicação de extremistas, pode-se utilizar informação errada, porque eles querem magoar pessoas”, afirmou, acrescentando que um dos clientes da SCL estava sentado ao lado de Steve Bannon–  ex-conselheiro de Donald Trump – num avião, quando este viu o trabalho da empresa britânica pela primeira vez.

“O Steve [Bannon] estava a olhar para um projeto para conseguir começar uma guerra cultural. E ele queria mesmo dizer guerra. As armas era a desinformação e a munição eram dados. Estávamos numa situação em que estávamos a trabalhar num projeto para uma coisa, e depois mudou-se para o contrário”, contou Wylie. Sobre o envolvimento do Facebook, foi perentório: “Avisei a administração Obama sobre isto e que essa informação [os dados dos milhões de utilizadores] tinha ido parar à Rússia. O Facebook aprovou isto. Sempre soube disso e nunca fez nada. A administração de Obama disse-me para não me preocupar. Achavam que o Donald Trump era um parvo e que Hillary Clinton ia ganhar”, continuou Christopher Wylie.

Em março, o ex-diretor de Investigação da empresa de análise de dados revelou ao The Observer (The Guardian) e ao The New York Times que a Cambridge Analytica tinha usado indevidamente dados de 50 milhões de utilizadores para influenciar o eleitorado norte-americano indeciso a votar em Donald Trump. Soube-se mais tarde que foram utilizados dados de 87 milhões de contas. A propósito disto, o fundador e presidente da rede social, Mark Zuckerberg, foi ouvido durante 10 horas em duas audições no Congresso norte-americano e no Parlamento Europeu. Pediu várias vezes desculpa pelo sucedido.

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Esta terça-feira, em Lisboa, Christopher Wylie explicou que a estratégia da Cambridge Analytica começava quando o algoritmo do Facebook motivava as pessoas a entrarem em determinadas páginas ou grupos para criar um movimento. A seguir, uma parte dessa comunidade era convidada a encontrar-se num café local para “falar sobre coisas que não veem nos jornais”. Quando reparou nisto tudo, Wylie começou a discordar e despediu-se, foi-se embora da empresa. No palco da Web Summit, contou que foi processado por um multimilionário e que o Facebook também o ameaçou com um processo judicial. “Isto foi quando a campanha presidencial de 2016 começou.

[Entre acusações e denúncias, veja no vídeo sete pontos-chave do que disse Christopher Wylie]

“O Steve estava a tentar criar a sua NSA privada. Ele foi bem sucedido por utilizar as mesmas táticas que o exército estava a utilizar [com os dados da Cambridge Analytica]. Quando soube, fui falar com as autoridades. O Facebook ameaçou processar-me a mim e ao The Guardian. Achámos que ameaçar pessoas era uma tática de baixo nível”, afirmou, acrescentando que a rede social tinha criado “um clone digital da nossa sociedade”. “Quando se está a pôr toda a informação em sistemas de inteligência artificial começa-se a criar armas”, continuou a contar Wylie.

O jornalista perguntou ao antigo analista de dados: “Estamos a trabalhar em novos sistemas que recolhem informação e dados com inteligência artificial. Seis meses depois, o que é que se fez para responsabilizar estas pessoas?”. Resposta: “O meu caminho foi perceber o falhanço institucional. Como sociedade não compreendemos o que estamos a fazer. É como quando os europeus conheceram os índios. Achavam que os europeus eram deuses, mas eram conquistadores. O mesmo acontece com os presidentes e fundadores destas empresas tecnológicas. Não são deuses”, disse Wylie.

Num registo mais aceso, o antigo analista de dados pediu mais regulação para a indústria tecnológica: “Sentem-se seguros quando entram num avião ou quando vão ao médico? Sim, porque a regulação funciona. Se conseguimos legislar sobre a energia nuclear, porque é que não conseguimos regular a m**** da programação [da Internet/do código/da informática]. Se se utiliza dados de outras pessoas e se lida com eles, há responsabilidades éticas”, disse Wylie, acrescentando que é preciso haver regras para perceber o impacto das coisas que construimos. “Caso contrário, é brincar com fogo”, disse.

Sobre as eventuais consequências que o caso teve, Wylie não hesitou: não foram nenhumas. “O Facebook recusa-se a assumir responsabilidade. Não há regulação, não há autoridade. Quando vou à polícia, passo o primeiro dia a explicar como é que isto funciona. Não é engraçado que a nossa polícia não saiba lidar com crimes de dados”. A maior preocupação de Wylie é que este fenómeno tome outras proporções.

“Utilizamos a Alexa ou a Google Home e a certa altura a casa pensa por ti. Depois, transfere isso para o carro, para as ruas, para o escritório. O problema é quando tudo isto começa a pensar por nós, a decidir o que queremos ver. Até estamos a ter dificuldade em falar sobre coisas que aconteceram há anos. Temos um ambiente inteiro a pensar por nós e a observar-nos. E isso é assustador”, disse.

Sobre se valeu a pena ou não ter denunciado o caso, a resposta foi positiva. “Porque agora as pessoas estão a falar sobre isso. Sinto que tenho o dever de falar. Eu estava ali sentado num dos maiores abusos de dados de sempre. Agora tenho de falar sobre isso”, acrescentando que daqui a 20 anos o mundo “vai ser só inteligência artificial. O que estou a tentar dizer é apenas: pensem sobre isto”. No final, o público aplaudiu.