O terceiro texto nesta jornada empreendedora foi uma missão de risco. Pediram-me para ir à Night Summit ver o que conseguia descobrir sobre este espécime da raça humana, aquela que muita gente com bitcoins no bolso acredita ser uma evolução genética e a prova do darwinismo económico: o Homo networker. Não vos vou mentir: eu, que já atravessei à pata rios infestados de crocodilos (true story), eu, que já fui ameaçado e expulso de cidades marroquinas por confrontar traficantes de droga (true story), e que convivi com os mafiosos mais poderosos do Laos (um deles ainda é meu pen pal true story) estava com medo. Por um lado, não sei se a forma mais fixe de lá chegar é a Uber, a Chauffeur Privé ou a Cabify, ou se cool mesmo é aquele táxi vintage. Por outro, se leram os meus últimos dois artigos, devem perceber que há aí alguns personagens do nosso ecossistema que não se importavam nada de me espetar uma sandes de punho nas fuças.

Achava eu que já tinha passado por muito, ouvido tudo, porventura até sentido demais. Nada mais errado. As coisas que vi e ouvi ontem acrescentam uma nova camada à minha existência. Enquanto tento digeri-las e concluo se preciso de criar uma startup ou de fugir de Lisboa, aqui fica mais um punhado de histórias verídicas, enquanto não mas devolvem com o punho.

“Ouça lá, você está a falar com um agente da PSP, está a ouvir? Escusa de se demorar!”

Passei pelas barreiras de aço e pelas barreiras humanas, de grupos de polícias de metralhadoras ao peito, e cheguei à Rua Cor de Rosa. O agente Simões, logo na primeira esquina, está a gritar com um taxista por telefone enquanto um empreendedor estrangeiro de cabelos brancos e dono do telefone olha para a cena sem saber bem o que fazer, nem sequer o que se está a passar. Fosse mais jovem e já tinha um viral para nos indignarmos esta manhã ou coisa parecida. Este é um mundo mortífero, letal e cruel. Quem envelhece e nåo se abraça ao eterno jovem que tem em si como recomendam 76 livros de autoajuda é deixado para trás e nem eu nem o agente Simões podemos fazer nada quanto a isso. Preciso de um copo.

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“I am hosting a Woman in Tech party”

Em português: “Estou a dar uma festa de mulheres em tecnologia”

Diz um jovem com ar de quem não passou pelo chuveiro nos últimos três dias. Não sei se isso não lhe prejudica o networking, mas ele parece ter feito três amigos, todos eles “homens” (homenzinhos, vá). Ele é o mais velho deles, mas por pouco. Dou-lhe seguramente uns 14 anos. Risos de hienas despedaçam a noite e um bocado do meu tímpano. “Se fizesses isso, ia estar lá toda a gente,” diz um dos miúdos, já quase a tirar as calças. Outro começa a fazer contas de cabeça — quantas pessoas é que vieram à Web Summit (60,000), quantas é que são mulheres (7000, pelas contas dele). Se apenas 1% dessas mulheres aparecessem, não deixava de ser a primeira vez em que ele estava numa festa com fêmeas networkers. Na verdade, podia bem ser a primeira vez em que ele estava numa festa. Ponto. Pelas minhas contas, estes são programadores: os empreendedores devem estar por perto. A viagem ao coração das trevas prossegue.

“It’s not an app, it’s a network of crypto-currency management systems”

Em português: “Não é uma app, é uma rede de gestão de sistemas de criptomoedas”

Não sei se já vomitaram depois da primeira cerveja, mas aconteceu-me quando ouvi esta frase. Ao ouvir isto, sei que estou em frente a Web Summiters de verdade, e que eles estão no seu habitat natural. Não é só o facto de estarem a falar de criptomoedas (um conceito meio críptico até para mim, mas tenho a certeza que o Observador tem um bom explicador para vocês), é esta mania de reformularem o básico para inflacionarem o valor da sua ideia ou espécie de empresa. Se pegarmos neste exemplo, a empreendedora em questão podia ter dito que a sua startup era uma app que continha moedas virtuais ou algo do género? Podia, mas não era a mesma coisa. Dois metros mais à frente, outra jovem empreendedora está a explicar que o seu fundo de investimentos é mais do que um fundo de investimentos: é um fundo de investimentos em que investidores põem dinheiro em certos e determinados projetos. Se isto tivesse um nome, poder-se-ia chamar um fundo de investimentos, podia, mas ela explica a coisa melhor do que eu:

“We have an equity crowd-funding fund, but we don’t just do equity funding: we match ideal investors and angel investors with the right investment for them.”

No país que inventou estas cantilenas, isto é a categoria “um Tinder for”. Há um Tinder para tudo. Como há um Uber para tudo. Só falta mesmo um Tinder para otários. O Homo networker tem, algures entre o cérebro e a boca, um complicador de conceitos. Foi sendo aprimorado do mesmo modo que os polegares vão ganhando músculo e agilidade para lidarem com o smartphone, quando devia ser o nosso dedo do meio a ir ao ginásio. O Homo networker recipiente da mensagem tem algures no canal auditivo um descodificador de jargão, isso ou uma capacidade extraordinária de fingir que basta juntarmos palavras numa frase para dizermos coisas significantes. É a glorificação da conversa de circunstância, que assim se vê elevada a Economia. É fascinante, acima de tudo, porque já recuperei do vómito de há pouco e consigo voltar a beber. Talvez não precise de um copo, mas já de uma dose intravenosa do melhor bourbon. Talvez assim consiga evitar que o meu cérebro comunique aos meus braços a necessidade de distribuir umas bofetadas a esta gente.

“Eu pago-lhe um euro para ir ao seu banheiro sem fila. Cinco euros. Dez?”

Pergunta uma rapariga brasileira à senhora da Cervejaria Cais que se recusa a deixá-la entrar enquanto não acabar de abrir o estabelecimento. É uma verdade que vocês não vão ler em lado nenhum (para variar, porque na concorrência estão demasiado ocupados a fazer favores a pessoas que já foram relevantes e a Web Summit só existe a partir do momento em que o Professor Marcelo entrar ou até à Assunção Cristas sair): é mais difícil ir à casa de banho na Night Summit que em qualquer queima ou festival. O Networker, afinal de contas, tem sede de empreender, sede de criar contactos, sede de fazer dinheiro e de tanta sede que tem, depois passama noite a fazer fila para a casa de banho. Desengane-se quem acha que isso o impedirá de dizer merda pela noite dentro.

“Just calm down, he’s going to figure it out”

Em português: Acalma-te. Ele vai acabar por perceber”

Numa viela, um grupo de networkers está a experimentar as trotinetas elétricas, as Lime, que estão a aparecer por Lisboa (e a auto-incendiarem-se em LA). Para quem sabe, este novo-velho veículo é uma espécie de index McDonalds da imbecilidade. Se o leitor quiser perceber quão imbecil é a pessoa à sua frente, peça-lhe que conduza uma Lime por Lisboa  durante alguns minutos. Vale mais do que qualquer entrevista de emprego. Divago. Existe então uma categoria de startupper que é movida pela necessidade de se mover de formas parvas. São o tipo de pessoas que atravessam o escritório de skate e a cidade de hoverboard. Estes já estão muito bêbados e a frase é dita à namorada do rapaz que está prestes a montar a trotineta. Ela acalma-se e nós não ficamos para ver quantos dentes é que o miúdo vai engolir quando for de cara ao passeio. Fosse o nosso estado economicamente mais liberal e nasceria ali uma nova startup de apostas: quantosdentes.pt (™ )

“O problema é que agora toda a gente nos dá no Google”

Diz a empregada do 4 caravelas a uns startuppers, num caso raro de interação entre duas culturas tão diferentes: para um lado, arregaçar as mangas é literalmente necessário para fazer o seu trabalho. Do outro, arregaçar as mangas é uma expressão que se põe em cartazes espalhados pela empresa mas que ninguém tem bem a certeza do que quer dizer. Ri-me com o esforço da senhora, confesso, mas saí de lá com um novo medo. Espero que ninguém me dê no Google.

“I am looking for a place where i can get a proper whiskey”

Em português: “Estou à procura de um sítio onde possa beber um whiskey em condições”

O Phil já veio a três Web Summits e está a cambalear às 22h30. É um empreendedor experiente: tem idade para ser meu pai e eu concordo com tudo o que ele diz. Só o ouvi a dizer esta frase, é certo, mas pensei que o melhor era segui-lo. Acabamos numa festa privada no Terreiro do Paço. Um diretor de finanças está a tocar o tipo de música que passa no VH1. Alguém me encontra lá dentro, duas horas depois, de copo de whiskey na mão, à procura de uma maneira de fechar este texto e emigrar. Dizem-me, a tentar gritar por cima daquele humpkt punkt lento dos anos 90, que marcou a crise de meia idade de tantos leitores desta publicação: “Kiko! Só te vejo nos Web Summits. Dizes tão mal, mas tão mal e não falhas um.” É verdade, caros leitores: como o Nietzsche na praia da Falésia, nós também nos apercebemos que quanto mais gozarmos com o abismo, mais o abismo goza connosco. Dito isso, acabo o whiskey e abro o Expedia. É tempo de ir.

“I don’t want to go back there. You’ve seen what it’s like”

Em português: “Não quero voltar para lá. Já viste como aquilo é”

Diz um senhor que tricotou o seu próprio gorro com os cortinados de casa da avó. Está a beber um old fashioned, no meio do Terreiro do Paço, meio perdido, e não tenho a certeza se está a falar da Web Summit ou desta festa em particular. Mas percebo-o. Percebo aquele olhar cansado de quem viu demasiado, ouviu demasiado e fez coisas de que se arrependeu.

Foi assim o meu relance sobre esta congregação anual que, noite dentro, ascende a contornos de violência psicológica que fariam Joseph Conrad aparecer junto à Casa Cid com as calças molhadas. Qual viagem ao Congo, qual quê. Tentem caminhar a direito, sem olhar para trás, por essa Rua de São Paulo. Antes, se forem responsáveis, peçam a alguém que conte a vossa história ao mundo. Não vá o empreender tecê-las.

*Francisco Peres escreve artigos a fazer pouco de anglicismos mas tem como títulos profissionais as palavras freelancer, copywriter e content strategist. Até à data de publicação deste artigo trabalhava com várias startups, mas suspeita que isso está prestes a mudar.