O saxofonista Ricardo Toscano tem apenas 25 anos e há cinco – é o próprio que o diz – que o andavam a “chatear” para fazer um disco de originais. Ricardo Toscano Quartet é editado esta sexta-feira, 9 de novembro, pela Clean Feed e é o culminar de mais de uma década a estudar e a tocar jazz de uma forma profissional. Juntamente com João Pedro Coelho (piano), Romeu Tristão (contrabaixo) e João Lopes Pereira (bateria), Ricardo gravou cinco composições suas e uma interpretação de “The Sorcerer”, de Herbie Hancock.
O saxofone de Ricardo Toscano ficou no ouvido quando começou a dar nas vistas há cerca de quatro anos. O músico vive com o jazz desde muito pequeno – uma paixão passada pelo pai –, aos treze anos entrou no Conservatório Nacional e dois anos depois na Orquestra Metropolitana de Lisboa. Tem colaborado com diversos músicos, mas é com o quarteto que grava este seu primeiro disco de originais que se tem sentido mais confortável, formação que respeita a tradição do jazz e alguns dos seus heróis. Estivemos à conversa com Ricardo Toscano sobre o seu novo álbum, no dia seguinte à sua apresentação no Hot Clube.
Como correu o concerto?
Tocámos o alinhamento do disco. Aquecemos com um tema novo meu. E tocámos um tema do Tony Williams, que era o baterista do Miles Davis durante os anos 1960. Mas o primeiro tema foi uma homenagem ao Roy Hargrove, ele morreu na semana passada, tocámos uma balada para ele, “I Remember Clifford”, do Benny Golson, foi uma versão dele que ouvi muito, quando era puto. Depois tocámos um tema meu que não tem nome ainda e também o “Hand Jive”, do Tony Williams. Depois o “Stardust”, uma balada muito. Acabámos o set com um tema do John Coltrane que se chama “The Last Blues”. Depois fizemos um intervalo e tocámos o alinhamento todo do disco.
Estava muita gente?
Cheio de gente, houve malta que não conseguiu entrar, mesmo no segundo set. Normalmente há pessoas que saem entre sets, mas ontem nem assim. Houve malta que não teve hipótese. É pena, mas ao mesmo tempo é bom sinal.
Foi a primeira vez que tocaram o álbum todo ao vivo?
Já tínhamos tocado antes os temas do disco.
Há quanto tempo é que os compôs?
Alguns já escrevi há dois anos, mas outros só escrevi no ano passado. Tive de amadurecer a forma como tocar esta música e esperar o tempo ideal para conseguir sacar este resultado final. Estamos contentes com este resultado, com esta gravação. Já gravámos estes temas há um ano e não gostámos nada daquilo. Decidimos não lançar essas gravações e agora gravámos neste ano, no início do ano, em março, e agora está aí. Finalmente, depois de tanta pressão, tanta malta a chatear-me nos últimos cinco anos para editar material próprio. O meu objetivo era fazer um disco que soasse bem, em vez de fazer um disco para sacar mais meia dúzia de concertos.
Porque é que sentia que o andavam a chatear?
Sentia que me andavam a chatear, porque andavam mesmo. A malta estava a dizer que queria um disco, é normal… ao fim de algum tempo de existência de um projeto é normal haver um registo daquilo. E nós já tocávamos há algum tempo e ainda não tínhamos feito esse registo. É como disse antes, se calhar muita gente, no jazz, infelizmente, faz discos para tentar ter mais alguns concertos ou assim, nós não precisávamos disso para ter concertos. Então usámos os concertos para melhorar e parar evoluir e chegar a este ponto onde decidimos lançar o álbum. Lançámos o álbum como um registo, uma peça, uma obra e não como uma proposta para tentar fazer mais coisas. Não foi só para tentar ser impressionante, para chamar a atenção.
Queria fazer uma coisa mais completa, consolidar o trabalho que estão a fazer?
Exatamente, uma coisa que me represente na íntegra. O disco é uma prenda, uma oferta para a toda a gente que nos tem apoiado e incentivado a continuar. Não é para chamar a atenção… isso vai ser uma consequência, o disco vai ser uma nova proposta para pessoas que nunca nos ouviram. Mas é mesmo assim.
Sente que tem ganho destaque no jazz nacional?
Sinto isso.
E sente que essa pressão para fazer um disco também vem daí?
Sim, acaba por ser pressa. Ao mesmo tempo eu nunca cedi muito a isso. Há duas maneiras de ver a coisa: corresponder ao que a malta está à espera e quer; ou continuar a alimentar a razão pela qual as pessoas gostam do trabalho. Para continuar a alimentar essa razão, é continuar a fazer o meu trabalho, como eu acredito. Se as pessoas têm gostado, vou confiar nos instintos e naquilo que acho que tenho de aprender e fazer. Obviamente que sempre que posso consultar pessoas, artistas que respeito muito, faço-o, mas ao mesmo tempo temos de confiar no que fazemos e trabalhar duro todos os dias para continuar a produção.
Agora parecia um jogador de futebol. Estou a brincar.
O concerto, entrevistas, emails… mas ao mesmo tempo estou em casa ao saxofone a tocar, porque tenho de estudar, tocar melhor. Quero tocar melhor todos os dias. Isto é só o início. E se o início foi tão bom, vamos continuar a alimentar essas coisas boas, isso só é possível se continuar a dar o meu melhor.
O que acha que no início da sua carreira aconteceu para cativar tanto o público?
Acho que uma coisa que cativa as pessoas, além do talento, é a paixão que reconhecem no que faço desde cedo. O gosto e a paixão chama a atenção das pessoas, parece que há sempre um esforço extra aliado ao que está a acontecer. Isso é uma prova de devoção, de entrega. Quando as pessoas reconhecem isso, se calhar querem acompanhar esse processo e ver onde as coisas vão parar. Outra hipótese é as pessoas acharem que toco bem, querem perceber para onde evoluo. Se calhar há pessoas que achavam que ia evoluir para caminhos diferentes. Há muitas hipóteses. Mas tenho os pés na terra, por isso é que tenho de estudar todos os dias, para tocar um bocadinho melhor.
Esse constante desejo de aperfeiçoamento contribuiu para demorar tanto tempo para lançar o primeiro álbum? Ou é a eterna questão de ser o primeiro disco?
Nem é a questão de ser o primeiro, para mim nem era isso. Era uma questão de honestidade. Isso é tudo, isso é um dos valores mais fortes desta música, desta música jazz, no geral. Acho que foi o que tinha de ser. E agora este disco para mim é uma conclusão desta fase toda. Claro que gosto destes temas, ainda vou continuar a tocá-los, mas já estou a escrever temas novos, ontem já toquei coisas novas. Sei lá, continuar a aprender mais jazz, mais standards, mais músicas. É para a frente agora, não vou ficar sentado a ler coisas bonitas que escrevem sobre o disco. É bom ter esse apoio e motivação. Mas no fundo é isso, é motivação para continuar.
O que lhe ensina, enquanto músico, aprender e tocar os standards?
Ensina-me jazz. Ensina-me de onde vem esta música, ensina-me ritmo de jazz, é uma coisa norte-americana, ensina-me muito sobre a cultura desta música. Na nossa cultura portuguesa, o jazz não é o que está mais presente, o ritmo tribal, a cena africana, afro-americana, não está presente. Tenho de fazer a minha aproximação disso, por isso é que quero aprender muitos standards e aprender o máximo da história dessa música. Desde pequenino que oiço muito jazz, essa é a banda-sonora da minha vida. Gosto de tocar os meus temas, a escrever a minha música. A tocar aprendo muito acerca de mim próprio, enquanto artista. Mas é uma coisa que tenho a vida toda para desenvolver. Ao mesmo tempo, quero ter as minhas bases jazzísticas muito fortes, para ter essa linguagem do jazz, pela qual estou apaixonado e bate muito forte cá dentro. Quero aprender muito sobre isso. É uma coisa sem fim. Repara, se não tocasse standards, se não soubesse essas coisas todas em relação ao jazz, se calhar a minha música não soava ao mesmo. Eu ponho os meus standards na categoria do jazz que soa a jazz. No fim de contas, a malta precisa de rotular um bocadinho só para se organizar.
Isso faz sentido. E está a dizer isso de uma forma muito transparente.
Claro, se eu não for transparente, não dá para tocar de uma forma honesta. Depois a malta não vai aos concertos, porque aquilo não é real. É o que eu acho. E tem resultado até agora.
Quando escreve, faz composições para si, como músico a solo?
Penso sempre que tenho uma banda a tocar. Por exemplo, vou fazer um concerto a solo pela primeira vez, daqui a umas semanas no Irreal. E neste momento não faço ideia do que vou tocar. Mas vou preparar-me, não vou preparar nada do que vou tocar, mas vou-me preparar para tocar tudo aquilo que possa sentir naquele momento. Esse concerto vai estar mais ligado à música improvisada do que propriamente a composições. Quando escrevo um tema, tenho aquele som na cabeça, tenho algum tipo de ideal de som, gostava que estivesse assim e assim, mas quando vamos experimentar soa sempre diferente. Essa é a beleza do jazz, cada um de nós, da minha banda, tem personalidade suficiente para trazer coisas para a música e não estar ali apenas a corresponder às expectativas. Por isso é que somos uma banda e não sou só eu a chamar músicos para fazer coisas pontuais. Por isso é que tocamos juntos há cinco anos e toda esta ligação é fruto disso, há uma confiança. Os meus temas são assunto para debatermos, debatermos no assunto musical, para tocar e espremermos ao máximo.
Houve algum tema geral para os temas que compôs para este álbum?
São cinco composições minhas e uma que não é minha, “The Sorcerer” do Herbie Hancock. Acho que o assunto foi a fase da minha vida… foi tudo o que fiz até agora. Foi um ponto de situação, não vou dizer que foi tudo inspirado no que fiz, mas na minha vida do jazz, acho que está ali marcado. Os meus primeiros temas são aqueles, este é mesmo o princípio. Foi uma fase, um ciclo que está concluído. Não consigo meter tudo no mesmo assunto, cada tema tem o seu assunto, mas também não consigo especificar bem de onde vem cada coisa. É música que me vem à cabeça, de tudo o que eu ouvi, vivi até agora. E também coisas que vi, muita arte diferente. Ultimamente tenho andado muito sensível à pintura.
Alguma exposição que o tenha impactado?
“O Período Azul e Rosa” do Picasso [Musée d’Orsay, Paris]. É uma exposição especial. Dizem que a próxima vez que aquilo for assim exposto, tudo junto, só poderá ser daqui a muitos anos. Porque são quadros que vieram de todo o mundo para estar na mesma exposição. Depois havia os desenhos dele a lápis, é incrível. Essas coisas para mim… O Picasso é um artista que me inspira. Como é possível ser tão genial a fazer tudo. Há coisas que ele faz a três traços e percebe-se tudo o que se passa, vemos coisas pequeninas cheias de técnicas e pensamos “como é que é possível?”. É uma parte importante da arte, ser um virtuoso… ser virtuoso não é só ter muita técnica, o verdadeiro virtuosismo é a capacidade de expressão, muito mais do que técnica. É um assunto que vai andar na minha cabeça durante uns bons meses.
E saber comunicar isso tudo.
Exato, como se faz.
Entre esses virtuosos, quais são os seus saxofonistas preferidos?
Estou sempre a ouvir coisas mais velhas… o Johnny Hodges que era o saxofonista do Duke Ellington. Eu oiço mais… claro que oiço muito o John Coltrane, o Coltrane é uma grande influência, não só pelo saxofone, mas pela música, a espiritualidade, a banda dele, por isso é que ando obcecado com o pensar na secção rítmica, no baterista, contrabaixista, pianista, perceber o trabalho, o que faziam ali. Perceber mais isso do que perceber o que o Coltrane fazia. Para mim essas são questões muito importantes. Agora descobri um disco do Miles Davis, em 1951, com o Art Blakey, no Birdland, esse disco não conhecia e ao ouvir, isto é o máximo dos máximos que se pode atingir no bebop. Ando a fazer uma investigação mais detalhada de música mais antiga.
Porque falou no Coltrane, gostou do Both Directions At Once [coleção de gravações raras editada recentemente]?
Gostei, acho que não foi tão relevante como aquele disco dele que foi lançado em 2014, o Offering: Live at Temple University. Acho que esse disco, como disco perdido, foi mais relevante para o seu legado do que este disco. Mas entre poder ouvir coisas inéditas do Coltrane ou não ouvir, ouvir sempre. Aquilo é das coisas mais lindas do universo. É uma enorme inspiração. Se não tivesse ouvido o Coltrane, não tocava como tocava. Não me ponho assim perto dele, não me acho parecido dele, mas tem um impacto muito grande na minha forma de tocar e ver a música.