No final do encontro com o Desp. Chaves, há quase duas semanas, Bas Dost, eleito homem do jogo pelos dois golos que deram a vitória ao Sporting, arriscava o português na flash interview para deixar uma mensagem muito concreta. “Estou muito, muito cansado porque estive sem jogar dois meses, foi muito tempo. Agora estou melhor, melhor. Não fizemos um bom jogo mas isso agora não interessa – fizemos uma boa semana, ganhámos ao Santa Clara, empatámos com o Arsenal, agora conseguimos mais três pontos. O que interessa é isso, ganhar e ter mais futebol porque esta época é difícil. Luta pelo título? Sempre mas agora não interessa isso, agora é só para falar mais de futebol”. Durante duas semanas, falou-se de muita coisa que não futebol: a prisão preventiva e posterior saída em liberdade do antigo presidente Bruno de Carvalho, as inquirições no processo das agressões na Academia, o empréstimo obrigacionista. Pelo meio, Marcel Keizer fez os primeiros treinos pelos leões.
https://observador.pt/2018/11/24/lusitano-vildemoinhos-sporting-marcel-keizer-faz-a-estreia-num-jogo-especial-para-carlos-lopes/
Alguns anos depois, voltaram a ouvir-se perguntas em inglês nas conferências de imprensa de um treinador do Sporting e, por coincidência, o novo técnico também veio do Al Jazira, dos Emirados Árabes Unidos. No entanto, esse é provavelmente o único ponto em comum entre o holandês e Franky Vercauteren, que teve uma passagem relâmpago por Alvalade em 2012/13: Keizer chegou a ser treinado por Johan Cruyff e partilhou o balneário com algumas das maiores figuras do Ajax no final da década de 80 mas foi o belga teve uma carreira como jogador a nível internacional; hoje, como técnicos, um tornou-se “resultadista” e foca sobretudo o conteúdo dos jogos , ao passo que o outro não prescinde da forma como esses jogos são interpretados. Foi também por isso que Frederico Varandas arriscou a sua contratação e foi isso que disse na antecâmara da estreia.
“Para mim todas as competições são importantes. Queremos ganhar e fazer um longo caminho na Taça de Portugal. No ano passado fomos à final e queremos repetir esse momento. Lusitano Vildemoinhos? Observamos sempre os nossos adversários duas vezes e fizemos o mesmo agora. Jogaram bem com o Nacional, vai ser difícil para nós. Se o Sporting é um risco? Não creio que seja. Sei o que gosto no futebol e sei o que gosto nas minhas equipas. Quero continuar com boas exibições, incutindo algumas coisas diferentes na forma de jogar. Não penso na minha carreira, quero uma equipa a jogar bom futebol. Convulsão no clube? Comigo os jogadores só falam de futebol, nada mais do que isso e é assim que quero que as coisas funcionem, é assim que gosto que seja. Quando os jogadores entram nas instalações do clube só podem ter futebol na cabeça”, assumiu o holandês na primeira intervenção antes de um jogo, neste caso em Viseu frente a um adversário do Campeonato de Portugal.
Muito (e bem) se escreveu sobre as ideias do holandês enquanto treinador nas últimas duas semanas. Das ligações às ideias de Cruyff à tentativa de domínio de jogo no meio-campo adversário em posse, passando pela pressão alta na tentativa de recuperar a bola logo nos segundos seguintes à perda ou pelo envolvimento dos laterais nas ações atacantes, Keizer tem o típico “futebol de autor” que não descura da qualidade exibicional em detrimento dos resultados mas que tem nesse ponto, e em paralelo, a sua maior virtude e pecado. Em Viseu, houve ideias soltas interessantes que a equipa mostrou a nível de construção que revelaram essa virtude mas também houve erros individuais e coletivos que mostraram esse pecado. E sendo demasiado cedo para analisar o que pode ser este Sporting de Keizer, trabalho não falta ao novo técnico.
Ficha de jogo
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Lusitano Vildemoinhos-Sporting, 1-4
4.ª eliminatória da Taça de Portugal
Estádio do Fontelo, em Viseu
Árbitro: António Nobre (AF Leiria)
Lusitano Vildemoinhos: Ruca; Assane Baldé, Paulo Oliveira, Tiago Gonçalves, Márcio Rocha; Murilo Rosa, Smolovic (Edgar Lopes, 78′), Nuno Rodrigues (Pedro Marado, 79′); Kiko Barroso, Diogo Braz e Hélder Rodrigues (Klysman, 73′)
Suplentes não utilizados: Badi Sea, Calico, Gustavo Petrocelli e Ricardo Leal
Treinador: Rogério Sousa
Sporting: Renan; Bruno Gaspar, Coates, Mathieu, Jefferson; Gudelj (Petrovic, 85′), Wendel (Bruno César, 79′), Bruno Fernandes; Diaby, Nani e Bas Dost (Jovane Cabral, 75′)
Suplentes não utilizados: Salin, André Pinto, Lumor e Carlos Mané
Treinador: Marcel Keizer
Golos: Dost (42′ e 72′), Diogo Braz (44′), Bruno Fernandes (64′) e Diaby (73′)
Ação disciplinar: cartão amarelo a Smolovic (28′) e Gudelj (48′)
Ao contrário do que é normal, o novo treinador do Sporting passou pelo relvado durante os exercícios de aquecimento, saudou os adeptos que já marcavam presença no Fontelo e sentou-se no banco a sentir o pulso à equipa. Também aqui, nem tudo foi igual a nível de preparação para o encontro, com enfoque na posse e circulação de bola. Olhando para o onze, uma só surpresa: a entrada de Wendel. Que, curiosamente, até surgiu mais vezes a pisar terrenos próximos de Bas Dost do que propriamente no apoio ao médio mais recuado, Gudelj. O brasileiro que custou 8,7 milhões de euros vindo do Fluminense nunca chegou a ser uma opção regular para Jorge Jesus, que viu nele um grande talento mas em estado “selvagem” no plano tático, também não convenceu José Peseiro e Tiago Fernandes, mas justificou a chamada de Keizer e interpretou muitos dos predicados pedidos naquele setor: reação à perda de bola, desmarcações de rutura, foco na baliza entre a meia distância e a presença na área; de resto, e exceção feita ao peso de Bas Dost na frente, houve pouco mais para guardar à exceção de nove minutos que mudaram por completo o rumo dos acontecimentos. Ao contrário do Lusitano Vildemoinhos.
Rodrigo Sousa, treinador do conjunto do Campeonato de Portugal que causou surpresa na competição ao afastar o Nacional num encontro dramático e com muitos golos, até pode ter apenas quatro horas por dia para dedicar ao futebol por ser vendedor de automóveis mas o tempo que arranja é bem investido: a equipa conhecida sobretudo por ter sido onde Carlos Lopes, o primeiro campeão olímpico português, começou a carreira é um conjunto bem trabalhado, com uma filosofia interessante e, ao contrário do que se vê muitas vezes com conjuntos deste escalão, muito inteligente na gestão do esforço físico até ao último quarto de hora. E há jogadores que podem ser nadadores salvadores ou contabilistas mas que provaram não ser por isso que deixam de ter qualidade. Exemplo paradigmático? Nuno Rodrigues, também ele vendedor de automóveis durante o dia e que obrigou Renan a defesa apertada (8′) já depois de um primeiro aviso de Diogo Braz (3′).
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O Sporting tinha dois tipos de dificuldades: por um lado, a defesa estava demasiado exposta perante perdas de bola ainda no seu meio-campo e deixava espaço para a velocidade das unidades ofensivas dos visitados; por outro, revelava pouca velocidade de circulação nas aproximações ao último terço contrário. Aliás, era quase um paradoxo: o risco que por duas vezes correu mal na saída em posse desde a entrada da área não tinha continuidade na frente, onde os passes eram feitos pela certa mas muitas vezes sem progressão. Por isso, e até aos 20 minutos, o único sinal de perigo veio num canto por Dost (11′).
A partir desse momento, o meio-campo lançado esta tarde por Keizer começou a agarrar no jogo. Gudelj, que naquela posição tem visíveis carências na forma como ocupa espaços na transição defensiva, conseguiu “rasgar” mais a defesa contrária com variações rápidas e longas de flanco; Bruno Fernandes teve mais bola a passar-lhe pelos pés e encontrou espaço para testar a meia distância (26′); e Wendel, na área ou fora dela, ganhou protagonismo na finalização (28′ e 38′). Entre protestos dos jogadores leoninos em lances com Bruno Gaspar e Bas Dost na área do Lusitano Vildemoinhos e uma ligeira melhoria qualitativa pelo aumento amiúde de velocidade, Ruca começou a ter mais trabalho apesar da boa organização defensiva dos visitados.
Os golos estavam guardados para os minutos finais antes do intervalo. E foram golos com impressão digital de qualidade: aos 42′, Wendel recuperou bem a bola em zona alta na direita, ganhou em força no movimento interior, soltou para Bruno Fernandes que abriu numa diagonal na esquerda Jefferson e Dost, à matador, só teve de encostar isolado para o primeiro golo após cruzamento do lateral brasileiro; aos 44′, Nuno Rodrigues ganhou bem a Bruno Fernandes, conseguiu uma fantástica arrancada pela direita mesmo estando rodeado de adversários e centrou na perfeição para o desvio de cabeça de Diogo Braz.
Keizer não mexeu ao intervalo, nem sequer quis colocar jogadores em aquecimento nos primeiros minutos mas viu o Sporting corrigir posicionamentos e ganhar em definitivo o meio-campo do Lusitano Vildemoinhos, que teve ainda menos posse e quase nenhuma capacidade de sair nas transições que sempre iam colocando algum respeito aos leões. Depois, foi tudo uma questão de velocidade e qualidade individual – quando o futebol apoiado carecia de velocidade, o perigo não surgia; com algumas, e não foram necessárias muitas, acelerações no último terço, os desequilíbrios foram criados de forma natural.
Em apenas nove minutos, os leões transformaram um empate numa goleada: primeiro foi Bruno Fernandes a combinar bem à entrada da área com Bas Dost antes do remate colocado com nota artística sem hipóteses para Ruca (64′); depois foi Bas Dost a bisar de novo concluindo da melhor forma uma jogada de envolvimento na esquerda entre Nani e Jefferson que teve outra vez o lateral brasileiro na assistência para o toque final de primeira do holandês (72′); por fim foi Diaby, a estrear-se a marcar pela formação verde e branca após passe de Nani numa jogada rápida com Dost e Bruno Fernandes. Com processos simples e jogo a um/dois toques até à finalização, o Sporting acabou com a boa resistência dos visitados num ápice.
Marcel Keizer, que tinha apenas uma vitória nas seis estreias como treinador na carreira, conseguiu uma goleada no primeiro jogo no comando dos leões e viu boas indicações, nomeadamente um “reforço” antes de tempo que pode ser Wendel, assim consiga dar continuidade à boa exibição em Viseu. No entanto, e como seria de esperar, percebe-se que o holandês tem ainda muito trabalho pela frente neste seu “futebol de autor” que choca sobretudo com três problemas coletivos que já se vinham a assistir antes da sua chegada na equipa do Sporting: os erros posicionais dos médios mais recuados na transição defensiva quando o adversário consegue superar com bola controlada a primeira zona de pressão; a (in)capacidade de construção na primeira fase quando as linhas contrárias estão mais subidas (que é como quem diz, “inventar” um William Carvalho que dê outra qualidade até a bola chegar a Bruno Fernandes e ao outro médio, que hoje foi Wendel); e o posicionamento de Diaby, maliano que apresenta características de avançado ou segundo avançado e tem dificuldades em entrar no jogo começando na ala. Passando isso, tudo se resume à qualidade individual e à velocidade. E foi isso que fez a diferença em Viseu para a goleada (4-1).