Magnus Carlsen tinha oito anos e meio quando venceu o primeiro torneio de xadrez. Em 2004, quando tinha 13 anos, o Washington Post dedicou-lhe um artigo e chamou-lhe “o Mozart do xadrez”. Aos 19 anos, o norueguês alcançou o prestigioso título de International Grandmaster, o estatuto mais elevado que um jogador de xadrez pode atingir durante a carreira. Garry Kasparov só o conseguiu aos 20. Na semana passada, em Londres, derrotou o norte-americano Fabiano Caruana à melhor de 12 partidas e defendeu com sucesso o título mundial absoluto de xadrez pela terceira vez desde 2013, ano em que o conquistou ao indiano Viswanathan Anand.
O norueguês completa esta sexta-feira 28 anos e detém o recorde do rating mais elevado que um jogador de xadrez alguma vez teve na classificação da FIDE, a Fédération Internationale des Échecs: 2882 pontos, em 2014. No ano anterior, quando chegou aos 2800 pontos, alcançou o primeiro lugar do ranking mundial da FIDE, tornando-se o mais novo de sempre a chegar lá, com 20 anos.
Nascido em Tonsberg, na Noruega, é filho de um engenheiro químico que trabalha na petrolífera Exxon e passou a infância dividido entre o país onde nasceu, a Bélgica e a Finlândia. O único rapaz no meio de três irmãs, garante que não distingue as memórias que tem dos três países porque “eram todos iguais”. “Havia sempre um campo de futebol”, explicou em entrevista ao Numéro.
Tornar-se um prodígio do xadrez não foi propriamente uma surpresa para a família. Aos dois anos, Magnus resolvia puzzles com 50 peças; aos quatro, completava gigantescas construções de Lego. O pai, um jogador de xadrez amador, ensinou-o a jogar quando tinha apenas cinco anos: na altura, não mostrou grande interesse. Afinal, a “atividade cerebral” nunca o impediu “de praticar desporto”, e o norueguês é um grande fã de futebol e do Real Madrid, aproveitando os tempos livres para jogar à bola com os amigos. E, aos cinco anos, sempre lhe pareceu muito mais interessante sair de casa e ir fingir que era Laudrup, Raúl ou Butragueño do que ficar em casa a mexer peças num tabuleiro. Mas a perspetiva mudou quando surgiu a competição. Assim como ensinou o único filho, o pai de Magnus também ensinou as três filhas a jogar xadrez. A partir do momento em que percebeu que também as irmãs sabiam mexer as peças no tabuleiro preto e branco, o atual campeão mundial absoluto de xadrez assumiu como missão pessoal o objetivo de vencer a irmã mais velha. “A pouco e pouco, fiquei completamente absorvido. Ganhava e gostava disso. Dominar no xadrez é uma sensação boa. Posso treinar horas sem fim sem um tabuleiro. Não estou realmente a jogar contra mim ou contra a minha mente, só analiso as possibilidades e são infinitas”, explicou o jovem norueguês na mesma entrevista ao Numéro.
Esta capacidade de análise das possibilidades e das estratégias possíveis durante um jogo de xadrez garantiram-lhe a fama de jogador ofensivo durante a adolescência: mas rapidamente adquiriu o rótulo de jogador universal com o passar dos anos. Utiliza uma variedade surpreendente de jogadas de abertura, tornando quase impossível que o adversário se prepare, e a mestria que demonstra a nível posicional e nos xeques-mate já lhe valeu comparações a Bobby Fischer, Anatoly Karpov ou José Raúl Capablanca. Venceu o pai pela primeira vez aos nove anos e depressa se fartou dos torneios infantis. “Tornei-me rapidamente o melhor jogador. Já não tinha graça. Os outros não eram tão dedicados como eu”, justifica Magnus Carlsen, que não esconde que grande parte do seu sucesso se deve à auto confiança que sempre teve.
“Sempre acreditei em mim, definitivamente. Acho que perder não é uma coisa natural. Quando era mais novo, às vezes ficava cego pelo respeito que tinha por oponentes mais experientes. Mas, com tempo e com o sucesso, fiquei mais arrojado. A confiança é essencial para manter um nível elevado e para desestabilizar alguns jogadores”, atira o norueguês, que vive atualmente em Oslo. Para Carlsen, mais do que na confiança, um jogador de xadrez deve sempre debruçar-se sobre o próprio ego e usá-lo a seu favor. Até porque é graças a ele que nunca vão existir escândalos de fraude e resultados combinados no desporto como existem noutras modalidades, porque “os jogadores de xadrez têm egos tão gigantes que nunca seriam capazes de conceber, nem por um segundo, ganhar um jogo utilizando outra coisa que não o próprio génio”.
Confiante por natureza, sincero por experiência, Magnus não tem qualquer problema em afirmar que é inteligente e que ganha muito dinheiro com isso. Começando por explicar que os jogadores de xadrez dão-se bem “porque conversam sobre coisas em que só as pessoas inteligentes conseguem pensar” para depois acrescentar que vive “muito bem” graças aos prémios monetários de todas as vitórias e torneios, para além dos inúmeros patrocinadores que o têm enquanto principal embaixador, já que é uma autêntica celebridade na Noruega.
Em entrevista ao Financial Times há alguns anos, explicou que comprou a espaçosa moradia onde vive em Oslo para “o dia em que tiver uma família”, ainda que garanta que esse momento “ainda está longe”. Prepara-se para as partidas na cama de rede que tem no terraço, de olhos fechados e a visualizar o tabuleiro, e desenha grande parte das estratégias graças à inspiração que sente quando lê livros de história militar. “Li um livro sobre o Hitler há pouco tempo, uma análise objetiva dos sucessos e dos erros militares dele”, contou ao FT, acrescentando que é um grande admirador de Napoleão Bonaparte “porque até dada altura ele foi um grande estratega”. Herdou do pai a coleção de livros sobre presidentes dos Estados Unidos e segue uma dieta e um modo de vida rigorosos, tal qual um atleta de alta competição. “Durante os torneios não saio, não vou a festas, nem sequer faço turismo. Seria uma perda de tempo e de energia. Quando se joga xadrez ao meu nível, a preparação é tão física como é mental. É vital que eu me sinta bem no meu corpo para estar na total posse das minhas faculdades”, garante.
Em 2005, quando tinha apenas 15 anos, contactou Garry Kasparov para propor uma colaboração de longa duração. O russo não aceitou. Em 2009, quando sentiu que estava a perder terreno para os adversários, Magnus voltou a pedir ajuda a Kasparov e, desta vez, foi bem sucedido. Os dois realizaram várias sessões de treino durante esse ano e mantêm-se permanentemente em contacto, seja durante os torneios ou nas folgas — basta que um tenha uma espécie de epifania sobre uma nova tática, técnica ou abordagem. Recusa a ideia de que Kasparov tenha sido “um mestre ou uma espécie de Jedi”, já que “as coisas não funcionam assim”. “As jogadas não são propriamente coisas que se possam aprender. Adquirimo-las com a experiência. Mas claro que as sessões me ajudaram. Analisámos dinâmicas, posições complexas e a escolha da jogada de abertura. Ele tem uma grande noção do peso da psicologia”, indica o norueguês.
Recentemente, foi comparado a uma jibóia que “envolve o inimigo até o sufocar”. Concorda e aceita a descrição, já que “não usa jogadas para impressionar” e permanece constante, jogada atrás de jogada, munido de criatividade e concentração. Mas garante que não se esconde por detrás de “jogadas seguras ou leis imutáveis” e recusa a ideia de “um resultado escrito na pedra antes de o jogo acabar”. Por isso, e por essa visão romântica de um jogo de tabuleiro, talvez seja mesmo mais adequado chamá-lo Mozart do xadrez.