A pequena sala no quarto andar do edifício da PJ, onde agora funciona o Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, não chegou para todos. Mais de 20 advogados e quase um número igual de jornalistas levaram a juíza de instrução, Ana Peres, a pedir um reforço de cadeiras e a ceder a quem pediu para assistir de pé às alegações do debate instrutório. Foi ali que, esta segunda-feira, o Ministério Público pediu que os dois oficiais de justiça, o assessor jurídico do Benfica, Paulo Gonçalves, e a própria SAD fossem efetivamente julgados por corrupção. Enquanto os advogados de cada um deles aproveitaram para destruir a investigação e a acusação. A juíza anuncia a sua decisão a 13 de dezembro.
Eram 15h00 quando o procurador Valter Alves começou a falar. A juíza deu-lhe meia hora, que ele cronometrou no ecrã do seu computador, mas os seus argumentos acabaram por resvalar uns minutos. Em nome do Ministério Público, o procurador referiu que o arguido Júlio Loureiro — um dos oficiais de justiça acusado de fornecer a Paulo Gonçalves informações de processos em tribunal sobre o Benfica e os seus adversários — “entrou em contradições e não esclareceu porque recebia convites” para assistir aos jogos do Benfica. Baseou-se apenas nas relações “de amizade”, concluiu.
Diz o procurador que o arguido, nas suas declarações em sede de instrução, se “prendeu se muito à prova” e que as suas explicações foram “vagas e fugidias”. Não o convencendo. Também Paulo Gonçalves não conseguiu, nas suas palavras, “explicar de forma credível” como emprestava o seu redpass, acabando por contradizer-se. Valter Alves concluiu, assim, que o assessor jurídico Paulo Gonçalves fez ofertas aos oficiais de justiça e que o “clube aceitou as informações que eles foram fornecendo”.
Mais. Que a partir do momento em que aceitou esta troca, o Benfica incentivou que os dois arguidos que trabalham como oficiais de justiça continuassem a dar informações. “A não ser assim, qual era o fundamento da SAD para fazer estas ofertas? Faz isto aos outros? E o que levou os arguidos a porem a sua profissão em risco e o sustento das suas famílias para o fazer?”, interrogou, para de seguida dar uma resposta: “Não se trata de conclusões são inferências lógicas”, disse o Ministério Público.
“Dificilmente nos casos de corrupção a prova colhida é tão vasta e cristalina” como neste caso, afirmou. E depois pediu à juíza de instrução, Ana Peres, para levar os arguidos a julgamento.
Nulidade da investigação e das escutas
O advogado de José Silva — o arguido que não prestou declarações — aproveitou as alegações para reiterar a nulidade da investigação e das escutas. Para Paulo Gomes, “o MP tentou remediar a inexistência de queixa quando deu conta que ela não existia no processo”.
Em causa a data em que o IGFEJ, onde trabalhava José Silva, avançou com uma queixa-crime por causa dos alegados acessos indevidos do seu funcionário. O MP refere que, apesar da investigação ter, em outubro de 2017, pedido, informações sobre o seu funcionário e os seus acessos, que nada disse sobre os factos em causa. Logo só viria a apresentar queixa em maio de 2018. Mas a defesa de José Silva garante que aquele instituto — que gere o sistema informático da justiça, o Citius — foi logo informado, em outubro, dos crimes que estavam a ser investigados — logo deixou passar os seis meses da queixa do crime de acesso indevido por parte do seu funcionário e a investigação “é nula”.
Por outro lado, a defesa refere também que as escutas feitas inicialmente no âmbito do processo também foram ilegais e devem ser destruídas. Isto porque o processo começou com uma queixa anónima. E quando foram pedidas escutas ainda não se sabia os crimes que estavam em causa. “Não há um único elemento de crime de catálogo no despacho que as determina”, reforçou, depois, Carlos Pinto de Abreu, o advogado que representa Paulo Gonçalves.
“O que é que este caso tem de diferente com o caso Centeno?”, pergunta advogado
Paulo Gomes explicou mais uma vez que a oferta de ingressos para assistir aos jogos do Benfica se deveu a uma mera relação de amizade. E lembrou que se dão milhares de ingressos a várias pessoas. Até a ministros. “O que é que este caso tem de diferente com o caso do Centeno? Uma série de políticos podem receber convites para ir assistir aos jogos, o Jorge Silva é amigo pessoal ao ponto de viajar de Matosinhos para Lisboa com o compadre do Paulo Gonçalves. Os princípios são os mesmos! Porque no caso do Centeno ele também ia fazer um favor ao filho do Luís Filipe Vieira. Porque é que Vieira, então, não foi constituído arguido? As sociedades vinculam-se por quem?”, atirou.
O advogado Rui Patrício, pelo Benfica, foi mais irónico. “Os convites não são uma coisa assim tão especial, porque muita gente é convidada. Até o senhor Cardoso, o jardineiro, foi convidado!”, disse, referindo-se a uma testemunha arrolada por Gonçalves. “A prova disto é que isto está em tudo o que é regulamento, da Liga, da FIFA, da UEFA e anel vip parece me um bocadinho excessivo. Parece-me até poético”, disse o advogado, que teve oportunidade de visitar o local.
Ninguém mais disse o nome de Luís Filipe Vieira, que o Ministério Público refere no despacho de acusação como tendo conhecimento que Paulo Gonçalves oferecia bilhetes e merchadising em troca de informações privilegiadas em segredo de justiça. Mas um dos advogados que representa a SAD do Benfica, precisamente Rui Patrício, deixou claro. O Benfica criou um código de conduta e se, por acaso, Paulo Gonçalves fez alguma “alguma coisa de ilícito, não é imputável à pessoa coletiva”. Isto porque deve o funcionário obedecer ao código de conduta e ao seu contrato de trabalho.
Os “onze nadas” do processo
Garante que foi uma mera coincidência, mas o advogado que fez as alegações em defesa da SAD do Benfica escolheu um onze, não de jogadores, “mas de nadas”, para resumir todo o processo. Rui Patrício, a fechar a tarde de alegações, disse que acusação “tem vários problemas” que vão além das nulidades invocadas.
Começou por dizer que que já ouviu “várias interpretações e teorias” sobre o facto de o Benfica ter “deixado cair” o seu assessor jurídico. “A Benfica SAD limita-se hoje a por o Paulo Gonçalves no seu sítio, que é o sitio que reconhece que tem”, disse. Podia parecer uma crítica, mas de seguida o advogado mostrou porque o dizia. É que, à luz da lei, para ser acusado de corrupção no âmbito do seu trabalho como assessor jurídico, teria que ser considerado um líder da SAD. O que Rui Patrício diz não ser. “É um assessor jurídico com um papel importante, equiparado a diretor”, diz.
Antes, Carlos Pinto de Abreu, advogado de Paulo Gonçalves, já o tinha referido. “Querer-se dizer que alguém tinha poder de liderança quando não tinha poder de decisão é extraordinário, um líder é quem decide. Ele nada fez que violasse a lei e nada fez para a instituição em que trabalhava para que qualquer coisa lhe fosse assacada”, disse.
Mas, afinal, o que é que Paulo Gonçalves consultou?
Apesar de advogados diferentes, tanto a defesa do Benfica como a defesa do assessor jurídico tocaram num outro ponto em comum. Afinal que processos foram estes que Paulo Gonçalves consultou e que estavam em segredo de justiça? Rui Patrício diz que quem olha para o despacho de acusação e o folheia, “até parece que vem lá tudo explicadinho”, mas que depois quem lê percebe que estão “apenas” enunciados uma série de processos que ele consultou e que o MP diz que foram os oficiais de justiça que lhe forneceram — baseando-se em escutas e nos acessos que os funcionários fizeram em nome próprio e de terceiros, incluindo de magistrados.
“Na maior parte dos casos são processos públicos em que Paulo Gonçalves não tinha qualquer interesse”, disse Carlos Pinto de Abreu, referindo que o assessor jurídico tratava de contratos com os jogadores, processos disciplinares, registos e que nunca representou a SAD em qualquer processo em tribunal. “Não sabemos a que acederam, mas o processo civil de uma renda de casa que qualquer pessoa pode aceder tinha alguma coisa a ver? Um processo de execução? E podia aqui continuar… há processos que não têm relação nenhuma com a área do futebol”, disse, num tom de voz que por vezes subia.
“As informações encontradas na posse de Paulo Gonçalves não valiam nada, não tinham interesse nenhum”, atirou por seu turno Rui Patrício, olhando para a juíza Ana Peres, que nunca manifestou qualquer emoção, acordo ou desacordo com as palavras de nenhuma das partes. “Só cinco processos das dezenas que se falam estavam em segredo de justiça e, deles, dois o Benfica era sujeito processual, dos outros está para ser demonstrado qual o interesse para o Benfica. E depois não esta comprovado nenhum uso”, disse o advogado. “Fico um bocadinho perplexo”, rematou.
Para ele, foram desvalorizadas as relações de amizade, o “benfiquismo” a paixão pelo futebol. O que na ótica dos advogados explica a oferta de bilhetes, t’shirts e acesso privilegiado a determinados locais do estádio do Benfica. Para os advogados dos assistentes no procsso, que representam pessoas ligadas ao Sporting, ao FC Porto e a um grupo de adeptos do Benfica houve corrupção.