Foram encontrados 28 corpos e uma série de outros artefactos nas traseiras do célebre restaurante Solar dos Presuntos, em Lisboa. “Foram feitas escavações com aproximadamente seis metros de profundidade e descobriu-se toda uma necrópole romana que pode datar dos séculos II ou III [as perícias científicas para datar os achados ainda não foram realizadas]”, explicou ao Observador Paulo Rebelo, técnico da NeoÉpica, empresa dedicada à exploração e preservação de achados arqueológicos. O mesmo especialista explicou ainda que se se contabilizarem também os cadáveres que foram cremados, o número total de restos mortais ( os tais 28 em ossos e outros 32 em cinza) pode ascender aos 60.

Já é de conhecimento público que o Solar dos Presuntos atravessa uma fase de clara expansão, havendo planos para um aumento do restaurante e a criação de uma academia de cozinha na área traseira do clássico Lisboeta. Foi precisamente nessa zona, “uma encosta natural muito antiga” atualmente conhecida como Calçada do Lavra que, em 2016, no decorrer das obras do restaurante, foram encontrados os primeiros vestígios arqueológicos. Logo a partir daí deu-se início ao processo de escavação mais técnico, acompanhado por especialistas, para que nada se perdesse nas obras — algo que, segundo o próprio Paulo Rebelo, acontece muitas vezes.

“Os romanos tinham por hábito fazer os seus cemitérios fora da cidade, a acompanhar um trajeto importante para que toda a gente pudesse ver as homenagens fúnebres. A zona da Rua das Portas de Santo Antão foi, em tempos, uma artéria principal da cidade romana que esteve na origem de Lisboa”, contou o técnico, ao explicar o porquê de ali se ter encontrado aquele que é um exemplo pouco comum de uma necrópole romana “muito bem preservada”. No decorrer das escavações, a equipa de Paulo Rebelo foi percebendo que havia uma sobreposição de artefactos históricos, de várias épocas distintas. 

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Os trabalhos da Neoépica estão registados em várias imagens da própria empresa

Numa primeira fase foram encontrados vestígios de uma olaria que, muito provavelmente, era “do tempo das Descobertas” — “como era um trabalho muito sujo, normalmente também era estabelecido fora do centro das cidades”. Aos poucos, à medida que os instrumentos de escavação iam mais fundo, começaram a aparecer artefactos como lamparinas fúnebres, algumas ossadas e até moedas. Quando foi encerrado o processo de exploração arqueológica, além das ossadas encontravam-se ainda uma série variada de artefactos. Entre eles aparece, por exemplo, aquilo que os especialistas creem ser um estojo médico, muito rudimentar, com alguns instrumentos de cirurgia. Há ainda algo semelhante a um dado e umas peças de jogo, pormenores que fizeram com que os técnicos apelidassem essa sepultura como sendo a do “jogador” — “estes nomes são meramente especulativos, foram dados apenas porque na sepultura estavam presentes alguns artefactos mais particulares, diferentes dos habituais, que interpretámos como sendo referências à vida do pessoa”, explicou Rebelo. A juntar a tudo isto, dentro dos objetos mais invulgares encontrados pela equipa de arqueólogos, registaram-se também “umas peças em osso” que serviriam “para prender o cabelo das senhoras”.

“Tudo isto foi um tanto quanto surpreendente porque uns metros ao lado, na mesma rua, também fomos contratados para analisar uma obra grande e não encontrámos um único vestígio do que quer que fosse. Mas ao mesmo tempo, um pouco mais à frente, num hotel perto da Casa do Alentejo, já se encontraram algumas ossadas também”, disse o especialista. A distribuição algo irregular destes pedaços de história é explicada por Paulo Rebelo como sendo um reflexo da falta de cuidado com este tipo de descobertas. “Em alguns sítios não se encontra nada — quando teoricamente se poderia — porque quem foi por lá fazendo obras acabou por destruir todo e qualquer indício histórico que por lá pudesse haver”, concluiu Paulo Rebelo.

Neste momento as escavações já foram terminadas e a obra prossegue o seu ritmo normal. Todos os achados estão ainda a ser analisados cientificamente mas, a longo prazo, serão passados para a freguesia onde foram descobertos, como prevê a lei. A partir daí, o espólio passará a estar à responsabilidade do poder local, que poderá fazer com ele o que bem entender — “mostrar às pessoas, fazer exposições ou doar a um museu”. Paulo Rebelo lamenta a inexistência de um museu em Lisboa onde estes (e muitos outros) importantes achados possam ser expostos em permanência.

O Solar dos Presuntos: “quem entra nesta Casa, entra na sua Casa”

“O comer bem e bom pertence à categoria dos afetos. E os afetos implicam que sejamos corteses, afáveis e calorosos. Eis porque quem entra nesta Casa, entra na sua Casa” — é desta forma que é apresentado o Solar dos Presuntos no seu site oficial. Existem poucos restaurantes em Lisboa com uma história tão longa quanto a deste verdadeiro clássico… Que veio do norte. Inaugurado no dia 30 de outubro de 1974, o Solar dos Presuntos é o projeto de vida do casal Evaristo e Graça Cardoso.

Assente na gastronomia típica portuguesa — com especial enfoque nas particularidades culinárias da zona de Monção, este espaço que mora em pleno Largo da Anunciada, a poucos metros da Avenida da Liberdade, tornou-se poiso regular de várias figuras públicas. De cantores como Tony Carreira e sua família a desportistas e treinadores como Cristiano Ronaldo e Jorge Jesus, são poucas as estrelas nacionais que ainda não se sentaram à mesa do “Solar”. O ex-treinador do Benfica e Sporting, particularmente, foi durante muito tempo um dos clientes mais fieis desta casa — há quem diga que de vez em quando, mal terminava de almoçar, começava a jogar às cartas com os comensais que o tinham acompanhado à mesa.

Há poucos meses foi noticiado que dentro de um ano, algures no Natal de 2019, o espaço do casal Cardoso vai crescer de tal forma — a cozinha será dez vezes maior, passará dos 60 aos 600 metros quadrados — que passará a albergar uma academia de culinária.  A expansão que deu origem à descoberta arqueológica tem como objetivo renovar e ampliar o espaço de confeção de forma a que profissionais e amadores, no futuro, possam por lá passar e aprender os pormenores e segredos da gastronomia minhota.

O novo projeto é de tal forma ambicioso que até passará a ser possível formar equipas de restaurante novas, do zero, e ensiná-las a fazer alguns pratos com o selo de qualidade desta casa mãe. O espaço que se quer “tecnologicamente dotado”, como disse Pedro Cardoso, filho do casal fundador, à Time Out, até poderá a servir de estúdio televisivo.