Se tivéssemos um euro por todos os artigos sobre Kate Moss que começam por dizer que ela nunca fala em público e que parte da aura de mistério que a envolve advém exatamente deste silêncio, teríamos com certeza dinheiro suficiente para lhe pagar um copo no Ritz, em Paris. Foi aí que, em 2011, a encontrámos. Então, Kate Moss era a nova cara da Mango e estava a promover a campanha que tinha protagonizado para a marca espanhola ao lado do fotógrafo Terry Richardson. O Salon d’Eté do Ritz estava recheado de macarons de todas as cores e tamanhos e de jornalistas de todos os cantos do mundo. Às tantas o nervosismo bateu quando começou a correr a notícia de que ela já tinha entrado no Ritz. Como seria Kate Moss ao vivo?
Em 2018 e 2017 Kendall Jenner liderou a lista compilada anualmente pela Forbes de modelos mais-bem pagas – assim como a lista de modelos com mais seguidores no Instagram com 102 milhões de seguidores. Uma das quais é Lila, a filha de Kate Moss que aos 16 anos afirmou idolatrar Kendall.
Kate Moss não tem Instagram e não gosta de redes sociais – impensável no reinado das Kardashians, onde Kendall Jenner pode ser a modelo mais bem paga, mas ainda é a menos rica de toda a família. “A tua página nas redes sociais é a revista da tua vida, então a forma como te apresentas interessa”, afirma Ivan Bart, presidente da IMG Models, que representa a maior parte das modelos na lista da Forbes. No entanto, é virtualmente impossível limitar o acesso a momentos como o desta terça-feira à noite, quando Kate antecipou a sua festa de aniversário no famoso Dorchester, em Londres, onde marcaram presença figuras como Stella McCartney.
Enquanto outras modelos da época dourada das supermodelos – leia-se 1980 e 1990 – enveredaram por criar marcas de roupas, programas de televisão e reality shows, Kate Moss aproveitou os seus “contactos únicos e conhecimento da indústria para desenvolver e encorajar talento”. Em 2016, fundou a Kate Moss Agency (KMA) e, como explica na apresentação online da agência, Kate quer concentrar-se em “gerir carreiras e não apenas em dirigir uma agência” – e aparentemente quer oferecer a novos modelos uma experiência diferente da que ela viveu quando foi descoberta aos 14 anos. “A idade é muito importante para mim”, disse em entrevista à Vogue, “Eu era muito jovem, e foi difícil, mas eu sobrevivi. Eu era bastante dura – actualmente acho que jovens modelos precisam de alguém lá para as apoiar”.
Uma das modelos representada pela KMA é justamente Lila, a filha de Kate Moss e Jefferson Hack, um dos fundadores da célebre revista Dazed & Confused. Aos 16 anos, Lila teve como um dos seus primeiros trabalhos enquanto modelo protagonizar a campanha de beleza da Marc Jacobs no final de 2018, a mesma marca que antes havia trabalhado com Kaia Gerber, a filha da supermodelo Cindy Crawford, e Frances Bean Cobain, filha de Kurt Cobain e Courtney Love. A expressão inglesa “fashion royalty” aplica-se mais do que nunca à medida que vemos ascender ao estrelato uma nova geração de modelos (e não só) cujo principal atributo é o sobrenome e o ADN. Ao contrário de casos como o da atriz Grace Gummer, filha de Meryl Streep, que é bastante discreta no que diz respeito à sua mãe famosa, Lila não receia estar na sombra de Kate Moss. Pelo contrário, Lila deixou cair o sobrenome do pai e apenas usa Moss no seu nome profissional para tornar essa relação ainda mais evidente. Uma ligação que é proveitosa não só para a carreira dela, mas também para marcas como Marc Jacobs que, ao apresentar o Lila como o novo rosto da sua campanha, conseguiu fazer tag de três nomes famosos com um post só.
Na letra pequena do site da KMA pode ler-se que todos os menores de 18 anos devem ter a permissão dos pais para se candidatarem a serem representados pela agência. Um pré-requisito que pode parecer óbvio, mas que é na realidade uma exceção dentro de uma indústria que prima pela constante busca da juventude e de novos talentos. A título de exemplo, veja-se o mesmo tipo de formulário no site de uma outra agência de modelos em Londres, a Elite. Aqui não há qualquer referência à idade e os pré-requisitos são outro tipo de número: a altura. É dito explicitamente que as aspirantes a modelo têm de ter “pelo menos 1.73 metros de altura”, um número que sobe para os 1.83 metros para os rapazes. Facto curioso: a Kate Moss não teria nenhuma hipótese de se tornar modelo na Elite com os seus 1.70m de altura.
A Twiggy dos anos 1990
Em 1988, no aeroporto JFK, em Nova Iorque, desenrolou-se uma história que desde então inspirou gerações de aspirantes a modelos – sobretudo as de baixa estatura. Foi aí que Sarah Doukas trocou o título de “fundadora da agência Storm Models” pelo bem mais interessante de “a agente que descobriu Kate Moss”. E, ainda que atualmente a Storm não aceite candidaturas abaixo dos 1.78m de altura no seu site, nesse infame dia em que perguntaram a uma jovem Kate Moss se ela já tinha pensado em ser modelo, nem a idade, nem a altura foram obstáculos. “Eu era baixa, tinha as pernas arqueadas e dentes tortos e ninguém me considerava a rapariga mais bonita da escola”, contou Moss à Harpers Bazaar. Daí que a resposta fosse não, ela nunca tinha pensado em ser modelo, mas o timing foi o certo para dizer sim ao desafio de Sarah Doukas. “Estava a fumar”, recorda Moss, “Tinha 14 anos e tinha acabado de perder a minha virgindade, então achava que era o máximo”.
Um ano antes, Sarah Doukas tinha começado a Storm Models a partir do seu apartamento, mas, com Richard Branson como seu parceiro de negócios, como é que ela podia falhar? Sarah estava determinada a encontrar novas caras e, sendo a sua uma empresa nova, estava mais aberta a correr riscos e a seguir o seu instinto para fora da caixa. Esta capacidade de ver para além do óbvio tornaram a Storm Models numa agência famosa internacionalmente – a Storm é creditada com a descoberta de Jourdan Dunn, Cara Delevingne e Andreja Pejic entre outras –, e fizeram de Sarah Doukas a mais famosa “spotter” do mundo. Mas em nenhuma das muitas entrevistas que “a mulher que descobriu Kate Moss” deu e dá desde então está a resposta à muito importante pergunta: o que foi exatamente em Kate Moss que lhe chamou a atenção?
“Nos anos 1990 houve um movimento para desconstruir a moda e houve uma mudança no conceito de beleza. Um tipo de beleza conservadora, mais clássica, que havia sido celebrada no passado deu lugar a formas mais variadas e alternativas de beleza”, defende Kohle Yohannan, um dos curadores da exposição The Model as Muse, promovida pelo Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque em 2009 para reconhecer o papel central que as modelos desempenharam ao longo da história da moda. “Acho que, num certo sentido, as modelos se tornaram nas musas de toda uma geração. Um excelente exemplo disso são as primeiras coleções grunge em que começamos a ver o street chic a ganhar força da mesma maneira que tinha acontecido nos anos 1960. Em certa medida, a Kate Moss fez pelos anos 1990 o que a Twiggy fez pelos anos 1960 que foi galvanizar a beleza e dar uma cara a esta revolução”.
Se procurarmos a definição da palavra waif num qualquer dicionário, sobretudo um atualizado mais recentemente, percebemos que não tem muito de positivo. O termo sugere uma criatura jovem, fragilizada, magra e deixada ao abandono, mas em vez de se referir a uma personagem de Charles Dickens, foi este o rótulo carimbado sobre Kate Moss. Comparada com Linda Evangelista, Naomi Campbell ou Claudia Schiffer, Kate era baixa, extremamente magra e sem curvas. No campeonato das supermodelos, Kate era uma waif, tal como Twiggy fora 30 anos antes.
Kate Moss não veio de um mundo de privilégios. Antes de se tornar numa das modelos mais famosas do mundo, Kate Moss cresceu no nada glamoroso subúrbio de Croydon, no sul de Londres, onde o crime violento regista um dos mais elevados números de ocorrências da capital britânica. Filha de uma empregada de bar e de um agente de viagens, uma aluna abaixo da média e sem nenhum talento especial a destacar, Moss parecia destinada à mediocridade. A história de como o seu destino foi radicalmente alterado no dia em que foi abordada no aeroporto por Sarah Doukas assemelha-se a um conto de fadas na medida em que não tem muito a ver com a realidade. Sim, esse dia foi o princípio de uma carreira de sucesso como poucas, mas não aconteceu de um dia para o outro com o abanar de uma varinha mágica. “Ia a oito castings por dia e conseguia nenhuma, talvez uma campanha se tivesse sorte. Acostumei-me à rejeição bastante cedo”, afirma Kate. Fast forward para 2011 quando tivemos a oportunidade de lhe perguntar pessoalmente qual o segredo do seu sucesso. “Ser paciente. Há que ser muito paciente para se trabalhar como modelo.” O mistério adensa-se em vez de ser resolvido.
Musa e abusa
Não foi fácil chegar até Kate Moss. Todas as perguntas da entrevista tiveram de passar pelo filtro da sua máquina de relações públicas onde foram aprovadas – ou nã0. Fora de consideração estavam todos os temas resumidos em sexo, drogas e rock’n’roll. No ano em que a encontrámos no Ritz, em Paris, Kate casaria finalmente com Jamie Hince, da banda The Kills. O vestido de noiva foi desenhado por John Galliano, o designer que foi tão decisivo para o arranque da sua carreira de modelo como Sarah Doukas ou Calvin Klein. Foi ele que lhe deu a sua primeira grande plataforma para o mundo pondo-a a desfilar na sua passerelle em 1990. E em 2005, quando fotos de Kate Moss a inalar o que parecia ser cocaína apareceram na capa de todos os tablóides britânicos, Galliano ficou a seu lado, como ficou Alexander McQueen que fechou o desfile da sua colecção Primavera-Verão 2016 em Paris a usar uma T-shirt que dizia “We love you Kate”.
Nem toda a gente na indústria da moda foi tão compreensiva e importantes nomes como Chanel, Burberry e H&M deixaram cair campanhas e contratos com Kate Moss por causa do alegado consumo de droga. Um ano depois, a Forbes noticiava ironicamente como a modelo, apesar do escândalo, tinha na realidade gerado mais dinheiro depois das fotos: dos 5 milhões de dólares que ganhou em 2005, passou para 8 milhões em 2006. Para além de “Cocaine Kate”, os media deviam chamar-lhe agora “Comeback Kid”. A modelo agora com trinta-e-poucos anos podia já não ter a frescura dos anos 1990, mas continuava a ter um controlo irredutível sobre a nossa capacidade de a adorar.
“A Kate Moss é uma pessoa muito comum em termos sociais e também intelectualmente”, defende Colin McDowell, jornalista de moda do Sunday Times, considerando que essa dose de normalidade leva a que o público se identifique com ela. “As modelos desempenham um papel muito importante porque nos dão algo a que aspirar e, em certa medida, também nos oferecem algum conforto porque nos levam a pensar que, ‘se elas antes eram pessoas normais, então há esperança para alguém como eu’”.
Muitas modelos vieram de contexto económicos e sociais pouco favoráveis, mas muito poucas chegaram ao patamar de Kate Moss. Para o jornalista do Sunday Times, Colin McDowell, a resposta está na ausência de algo, mais do que na existência. No seu testemunho para o documentário alemão Kate Moss, a criação de um ícone, originalmente Kate! – Vom Model zur Ikone (2011), de Nicola Graef, o jornalista continua com as conclusões polémicas. “A Kate tem uma cara insossa e essa é uma das razões do seu sucesso. É bonita, todas as feições são como deviam ser, mas pode ser pintada por cima. Talvez seja por isso que pintores e fotógrafos gostam tanto dela, porque podem torná-la naquilo que eles querem que ela seja”.
Se fotógrafos de moda e estilistas a transformaram na sua fantasia, refletindo o momento, as tendências e os seus ideais, os muitos artistas que a escolheram como musa pareciam buscar a verdade por debaixo da pintura, o intemporal, o etéreo. Em mármore e ouro, as estátuas de Marc Quinn incluídas na série Sphinx and Siren retratam “uma imagem idealizada e irreal do corpo idolatrado” de Kate Moss, a “modelo que se tornou num ícone do nosso tempo”, escreve o autor na apresentação desta série no seu site. Banksy atualizou o retrato que Warhol fez de Marilyn Monroe com a sua própria versão de Kate Moss e um pouco por todo o mundo a modelo foi celebrada e imortalizada através de arte. Em Outubro a famosa leiloeira Sothebys em Nova Iorque reconheceu Kate Moss com o título de “a musa moderna” antes de lançar uma série de obras contemporâneas que a retratavam no mercado. Ainda assim, o quadro mais famoso de Kate será o de Lucien Freud. Aos 80 anos, o pintor inglês retratou-a nua, crua e grávida de Lila Moss. O quadro foi vendido por 3,5 milhões de libras.
Com todo este reconhecimento e adoração, quando finalmente fiquei frente-a-frente com Kate Moss perguntei-lhe se tinha atingido todos os seus objetivos dentro da moda. “Realizei muitos, mas todos não. Não entrei no vídeo da música Freedom [George Michael, 1990]. Falhei-o por pouco… Isso teria sido fantástico!”. Ausente do vídeo que celebrou as supermodelos, Kate Moss acabaria por as suplantar a todas em termos de longevidade e alcance. Quando entrou no Salon d’Eté do Ritz, em Paris, em 2011, um anúncio a preto e branco da Calvin Klein passou devagar na nossa imaginação. Ela era grunge, ela era minimalista, ela era sexy, ela traz todas as nossas memórias dos anos 1990. Ao vivo, tirámos-lhe as medidas, comparámos com capas de revistas e fotos das festas mais loucas das últimas décadas. No fim, Kate Moss, a pessoa diante de nós saiu sempre a perder. Como é que ela poderia chegar aos calcanhares de tudo o que sonhámos que ela seria?