Germano Almeida nasceu na ilha da Boavista, em Cabo Verde, em 1945. Foi aí que passou a infância, “num estado de liberdade quase selvagem”. A casa dos pais ficava numa “confluência” entre a zona urbana e a zona rural da ilha e a única exigência que era feita a Germano e aos irmãos era a de estarem à hora marcada em casa, “lavados”, para o almoço. Tudo mudou na década de 1960, quando surgiram os movimentos independentistas e a polícia política chegou a terras cabo-verdianas para impor uma nova ordem e destruir a antiga.

O Prémio Camões, que participou esta terça-feira numa mesa redonda subordinada ao tema “E livres habitamos a substância do tempo”, começou por dizer que era um poema de Alberto Caeiro, de O Guardador de Rebanhos, que o verso de Sophia de Mello Breyner que lhe trazia à memória e que o fazia lembrar da sua infância:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

A aldeia de Germano é a ilha da Boavista. Quando o escritor era pequeno, “era uma ilha tão pacata que tínhamos um único polícia que tratávamos por tio”. O administrador do conselho, que todos os dias se apresentava no departamento para se inteirar do que se passava na ilha, “ia de pijama”. “Nem se dava ao trabalho de o tirar. Isto durou toda a minha infância”, lembrou o escritor cabo-verdiano. Esta pacatez foi interrompida pelos movimentos de independência, nos anos 60. Até essa data, havia um único revolucionário na Boavista, “um senhor chamado Armando”, que quando se embebedava, “o que acontecia quando tinha dinheiro, começava a falar de política”. “Dizia mal do Salazar, dos governantes todos”, aos quais chamava exploradores do povo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As queixas do senhor Armando duravam até ao tio polícia se fartar de o ouvir. Quando isso acontecia, Armando era conduzido até à cadeira, “onde ficava de porta aberta”. Dormia tranquilamente, e no dia seguinte levantava-se e ia para casa. “Isto mudou com os movimentos de independência e a chegada da PIDE”, recordou Germano, admitindo que os anos de 1961 a 1974 foram “maus”. “A guerra colonial e a presença da PIDE em Cabo Verde perturbou muito a nossa vida e entro de novo no poema de Sophia”, que “traduz melhor a ideia de liberdade que trouxe o 25 de Abril”.

Germano Almeida viveu a Revolução em Lisboa, onde estava a estudar. Aquele dia de abril ficou-lhe marcado na memória para sempre. “Lembro-me, acordei uma manhã, liguei o rádio e dizia para as pessoas não saírem de casa porque estava a acontecer o movimento das forças armadas que pretendia derrubar o regime. E eu disse: ‘Bom, isto é um convite para sair’.” E Germano saiu. Percorreu Lisboa de lés a lés, e ao final da tarde chegou ao Largo do Carmo. “Acompanhei a prisão do Marcelo [Caetano], acompanhei o marido da Sophia [o jornalista Francisco Sousa Tavares] com um megafone em cima de um tanque. Ainda tenho uma fotografia dele nessa pose”, admitiu.

“O 25 de Abril é das memórias mais importantes que tenho da minha vida de adulto e que continuo a celebrar”, afirmou. “Costuma dizer-se ’25 de Abril Sempre’ e, sim, efetivamente, o 25 de Abril merece ser [para] sempre. Nos que vivemos o período colonial e vivemos o 25 de Abril, sabemos o que era antes do tempo da PIDE e o que foi depois.” Da mesma forma, também o poema de Sophia de Mello Breyner, intitulado precisamente “25 de Abril”, merece ser celebrado, hoje e sempre:

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

“Esse poema é um poema que merece ser celebrado, na medida em que hoje vive se um regime de liberdade, mas é importante ter consciência que nem sempre é assim e que pode não ser sempre assim. É preciso defender esta bênção, com unhas e dentes, sobretudo no mundo presente em que forças às claras e outras ocultas tentam derrubar esta ideia de liberdade para fazer o homem regressar aos tempos de maior obscuridade”, disse o Prémio Camões, concluindo: “Livres devemos continuar a viver a substância do tempo”.

O Observador viajou até à Póvoa de Varzim a convite do Correntes d’Escritas