É de escuta obrigatória? É, pois. Gilles Peterson, influente radialista britânico, diz que o novo álbum da rapper do seu país Little Simz, de 25 anos e ascendência nigeriana, “levou o som do Reino Unido para todo um outro nível”. Jordan Bassett, jornalista da revista de especialidade New Musical Express, escreveu que se trata do “melhor disco de rap deste ano e é difícil imaginar que alguém o supere”. Os dois têm razão: Grey Area, o disco em causa, revelado no início deste mês, não é menos do que espantoso.

A capa do disco, revelado no primeiro dia deste mês

Melódico, sóbrio, afirmativo e desafiante, o disco — o terceiro de Little Simz, que começou a escrever rimas com nove anos — conta os problemas quotidianos da jovem, relata uma fase depressiva que ela viveu mas é também confiante dos seus méritos. Little Simz sabe que é melhor do que a maioria. Logo no primeiro tema, “Offence”, atira: “I’m Jay-Z on a bad day, Shakespeare on my worst days”. Em “Boss”, a segunda faixa, insiste: “Learnt from Ye [Kanye West] and touched the sky”. O desfile de talento prossegue e ao quinto tema, “Venom”, a rapariga que nunca gostou do rótulo “rapper feminina” faz uma declaração tão arrojada quanto compreensível:

“They would never wanna admit I’m the best here
From the mere fact that I’ve got ovaries”

Um dos grandes protagonistas, criativos e impulsionadores da música hip-hop atual e alguém que já assegurou o seu lugar na história, Kendrick Lamar, já lhe havia identificado um talento pouco comum. Em 2015, o vencedor de um prémio Pullitzer disse numa entrevista que não havia muitos rappers melhores “por aí” no movimento hip-hop e que ela era “incrível”. Little Simz, na altura, estava ainda a afirmar-se no meio musical. Hoje é uma certeza incontornável, uma das pessoas com um discurso mais singular e interessante na música rap e com um sentido musical mais apurado. As dez canções de Grey Area provam-no.

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Este álbum é uma reflexão de mim enquanto jovem mulher na sociedade moderna, da minha tentativa de perceber as coisas por mim e de ser uma verdadeira adulta no mundo. Não sou diferente da maior parte das pessoas, passo por coisas que os outros passam nas suas vidas. Estou simplesmente a falar delas ao mundo”, afirmou, numa conversa telefónica com o Observador.

“Tento não me mentir em todas as palavras que escrevo”

A crítica — britânica, sobretudo, mas também norte-americana — rendeu-se a este terceiro álbum de Little Simz. Da Pitchfork ao The Guardian, da Vice à New Musical Express e ao The Independent, os elogios multiplicam-se. O disco merece-os todos. Maioritariamente composto instrumentalmente por Inflo, produtor musical e amigo de longa data, tem arranjos grandiosos e misteriosos (notórios logo na primeira faixa, “Offence”, mas também na quinta, a feminista “Venom”), festivos, lo-fi (“Boss”), subtis e com groove (“Selfish”, “101 FM” e sobretudo “Wounds”, uma colaboração com o jamaicano Chronixx), íntimos (“Pressure”, uma colaboração com a banda sueca Little Dragon), discretos para acentuar a importância das palavras (“Therapy” e “Sherbet Sunset”) e jazzísticos (o final, com o tema “Flowers” e a voz de Michael Kiwanuka, é fabuloso e tem um som assombroso de sopros).

O que mais impressiona em Grey Area é que a coesão e maturidade não surpreendem assim tanto. A rapper, nascida Simbiatu Ajikawo e conhecida pelo nome artístico Little Simz ou pelo diminutivo “Simbi”, já tinha revelado o seu talento em trabalhos anteriores, nos mini-álbuns que editou e nos seus dois álbuns completos anteriores, A Curious Tale of Trials + Persons (de 2015) e Stilness in Wonderland (de 2017).

Apesar do ar de menina, são antigas as impressões que Little Simz deixa: que o seu discurso é de quem pega no microfone para confessar medos, sensações de injustiça, palavras e sentimentos que não pôde (porque não soube, porque não quis ou porque não foi capaz) expressar em voz alta no momento devido. Funções que J. Cole, rapper que também não escreve apenas para afagar o ego, tão bem descreveu em “Zendaya”, a canção que gravou com o artista da sua editora Cozz:

“And just remember
On your lonely nights this mic will be your friend
You tell it all your secrets that you keepin’ deep within
Your fantasies, regrets, your happy moments and your sins”

[“101 FM”:]

Não estamos em terreno Nicki Minaj ou Cardi B. O exibicionismo tão característico do hip-hop surge apenas pontualmente, como reclamação por ausência de reconhecimento, não afoga todo o disco em vaidade, glamour, fantasia, reclamação de um estatuto quase divino.

Como Little Simz chegou a dizer numa entrevista ao The Guardian, dizer “estou no comando desta porra, poderia comprar a tua vida se quisesse, p#ta” é “basicamente a pessoa que nunca quis ser”. Ainda bem, porque Grey Area não é um disco festivo e padronizado, é um disco humano e pleno, tem tudo: luz e sombra, amor e dor, sucesso e frustração, comunidade e solidão. Pela sua completude, pelo bom gosto musical da música que serve de base às palavras e pelos traços de originalidade na escrita, nas metáforas e nas ideias que expressa, vai para a mesma prateleira de Room 25, da norte-americana igualmente jovem e igualmente talentosa Noname (Fatimah Nyeema Warner). Um dos segredos? Não se ser leviano com o que se escreve e diz:

As minhas experiências moldaram definitivamente o que escolho expor como conteúdo. A minha escrita teve sempre como ponto de partida uma perspetiva pessoal e bastante refletida. Tentei sempre manter-me verdadeira e não me mentir em todas as palavras que digo”, aponta Little Simz ao Observador.

Tudo isto poderia não existir se Little Simz, que cresceu na zona norte de Londres com a mãe e perdeu o contacto com o pai quando os progenitores se separaram, tinha ela 11 anos, tivesse ido desabafar a um terapeuta, como chegou a pensar. A rapper terminou uma digressão com os Gorillaz exausta, sentindo-se solitária pela ausência diária de família e amigos em digressão, numa altura de confronto com a idade adulta que a assustou. A depressão dos 20’s já tinha inspirado uma canção da norte-americana SZA, que em “20 Something” canta:

“Hopin’ my 20 somethings won’t end
Hopin’ to keep the rest of my friends
Prayin’ the 20 somethings don’t kill me, don’t kill me
(…)
How could it be?
20 something, all alone still
Not a phone in my name
Ain’t got nothin’, runnin’ from love
Only know fear”

As experiências terão sido diferentes, mas há uma idade a partir da qual as expectativas e pressões sobre o futuro acentuam-se, em que todos se debatem com uma ideia definitiva de quem vão ser na vida. Há perguntas que se tornam regulares — “vou ser isto quando tiver 30 ou 35 anos?”, por exemplo — e há uma ansiedade que cresce perante as súbitas incertezas. Tudo isto se agudiza quando se vive numa deslocação permanente de cidade para cidade, de quarto de hotel para quarto de hotel, com um estilo de vida pouco saudável. “Flowers”, a canção com que Little Simz termina este terceiro álbum, é também sobre isso, sobre o que os seus ídolos que morreram antes dos 30 anos (Amy Winehouse, Jean-Michel Basquiat e companhia) fizeram, sobre o que passaram, sobre a vida que ela própria vai construir. Um verso destaca-se: “Afraid of what the future may hold for me”.

[“Venom”, no programa COLORS:]

Perante todas estas incertezas, perante as dores que foi acumulando nos últimos anos — que ela diz não serem nem mais nem menos do que as da maioria das pessoas, só lhes deu voz –, Little Simz fez um álbum em vez de um diagnóstico clínico. As dores são múltiplas: fins de relações que depois dos 20 anos têm um peso acrescido — “Sherbet Sunset” é sobre um rompimento abrupto de uma relação amorosa e mete redes sociais ao barulho –, pessoas que se perdem e o impacto que isso tem — “Wounds”, escrita e gravada em lágrimas, depois do homicídio do amigo, modelo e ator Harry Uzoka –, questões sociais e de classe para as quais se desperta (“101 FM”, sobre a predominância de negros nas prisões britânicas e os efeitos dessas detenções nas comunidades, ou “Pressure”), a solidão e o medo que ela provoca, a compreensão do que ser mulher acarreta e restringe (“Venom”).

Em vez de ir para o divã falar do que “a confundia” e a magoava, Little Simz foi para estúdio com um produtor musical que conhece “há tantos anos” que nem se recorda de “quando se conheceram”, que lhe conhece “o coração” e lhe permite ser “brutalmente honesta”. Ele “acrescentou coragem” à sua “arte”, levando-a a aproximar-se na escrita de “sítios que não são confortáveis de entrar mas que permitem extrair magia quando neles entramos”, refere ao Observador.

[“Pressure”:]

É claro que não é fácil expor-se perante quem a ouve, Little Simz diz mesmo que é “assustador” narrar a sua vida de forma tão vulnerável, mas abrir o coração e contar segredos ao microfone é um truque antigo e com bons resultados para chegar ao coração dos ouvintes. O  resultado é este: um “coming of age album”, como Little Simz já referiu em outras entrevistas.

Na literatura, os teóricos chamam a obras assim Bildungsroman, romances de formação. Grey Areas é isso musicalmente: um álbum de formação, em que uma personagem, aqui autobiográfica, desperta de vez para o mundo, expõe-se e apresenta-se com clareza perante ele. Falta agora o mundo despertar de vez para Little Simz. E Portugal, claro: “Adorava ir aí, sempre quis ir nem que fosse de férias, porque oiço coisas incríveis, dizem-me que é um país lindo. Ir já seria ótimo, ir e atuar seria ainda melhor”, conta-nos — e nós contamos os dias.

[“Sherbet Sunset”:]