O homem que esta quinta-feira foi detido na embaixada do Equador em Londres não é o mesmo que, há sete anos, se refugiou naquele mesmo edifício após centenas de denúncias feitas através da página WikiLeaks. Confinado numa casa de banho transformada em escritório com 20 metros quadrados, a dormir num colchão insuflável e sem ver a luz solar, Julian Assange pode ter atravessado experiências tão traumáticas que seriam capazes de lhe alterar a estrutura cerebral.
Agora, Julian Assange enfrenta os tribunais suecos, britânicos e norte-americanos. Mais do que isso, enfrenta o fantasma que o assombra desde 2012: o medo de ser morto assim que puser o pé fora daquelas quatro paredes. Para Adelaide Costa, psiquiatra do Centro Hospitalar São João, esse medo é suficiente para mudar qualquer um:
“Em situações em que se teme pela vida, algumas pessoas podem desenvolver um quadro de stress traumático. Ele não vive a ameaça na realidade, como acontece com quem está na prisão, mas antecipa-a. Isto pode levar a alguma anestesia afetiva”. No limite, prossegue a médica, quem se vê encurralado “pode até desenvolver pensamentos suicidas”.
Mas Assange é especial. Aos oito anos já sabia o que era viver escondido de alguém: a mãe separou-se do padrasto, líder de uma companhia de teatro itinerante de quem herdou o apelido, e fugiu com os dois filhos por temer pela vida. Até aos 14 anos mudou de escola 37 vezes. Foi educado pela mãe, ela própria com tendência para questionar tudo o que lhe parecia autoritário — como as forças de segurança ou o regime de educação. E aos 16 anos, quando recebeu o primeiro computador, criou a página “International Subversives” onde trabalhava como hacker com o nome “Mandex”.
Só que toda essa experiência pode não ter bastado a Julian Assange para ter lidado de forma saudável com a clausura.
“Ele já tem uma experiência de fuga e de se esconder desde a juventude, por isso é natural que já tenha desenvolvido mecanismos de adaptação grandes. Isso pode ajudar a manter algum grau de superação. Mas por melhor e mais eficazes que sejam esses mecanismos, tudo isso se esgota. Até mesmo em quem tenha algum narcisismo e pense que tem uma capacidade grandiosa para fazer as coisas”, sublinha Adelaide Costa.
Prova disso pode estar até mesmo nas características física do ativista. Quando entrou na embaixada, a 12 de junho de 2012, Julian Assange não tinha barba, vestia fato e gravata, usava o cabelo curto e tinha um casaco de cabedal castanho. Nunca mais saiu de lá. A única hipótese de o ver era quando participava através de teleconferências em eventos relacionados com os direitos humanos. Ou então quando desviava as cortinas da janela do quarto para acenar aos ativistas que protestavam a favor dele naquela rua londrina — os mesmos a quem oferecia bolo no dia do aniversário.
Mas essa não foi a imagem que Assange exibiu esta manhã quando saiu algemado pela porta da embaixada. Pelo contrário, tinha o cabelo comprido e grisalho, barba comprida e roupa menos luxuosa. Para Adelaide Costa, isso pode ser sinónimo de que a condições mental de Julian Assange está fragilizada:
“Uma pessoa com depressão pode reduzir a vontade de levar avante os auto-cuidados. Ele aparentava sempre ser muito cuidado e ter alguns traços de gostar de si. Não tendo outra doença psiquiátrica mais grave, nem tendo entrado num quadro de psicose, podemos estar perante um indivíduo numa situação de maior abandono pessoal”, explica a médica.
Só que os problemas podem ser ainda mais profundos do que a aparência. Por mais protegido que Assange tenha estado nos últimos anos na embaixada equatoriana, as experiências que teve — e as que deixou de ter também — podem ter-se refletido negativamente no cérebro do ativista.
Julian Assange, agora com 47 anos, tinha acesso a um computador e a um telefone, podia receber algumas visitas e tudo indica que podia receber algumas visitas. Mas o facto de todas essas comunicações serem mais controladas pode ter levado à diminuição de uma ferramenta de adaptação que o cérebro tem chamada “neuroplasticidade”:
“Os cérebros mais privados de contacto social também sofre uma diminuição uma característica chamada neuroplasticidade. Tem a ver com a capacidade que o nosso cérebro tem de mudar em estrutura e funcionalidade em função das novas experiências”, traduz Adelaide Costa.
E as consequências não se ficam por aqui. Julian Assange não via a luz do Sol há quase 2.500 dias. E “o sono pode ter ficado muito afetado porque fica comprometida a produção de uma hormona que é a melatonina, que precisa de exposição solar”, afirma Mário Jorge Santos, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública:
“A luz é que vai desencadear a produção dessa hormona, que interfere nos ciclos vitais. Nós temos um ciclo de vigília, que é quando estamos acordados, e de sono. Esse ciclo é muito afetado. Quando as pessoas estão em reclusão podem ter um período de sono mais prolongado ou muito curto. E isso depende da exposição solar”.
Apesar de tudo isto, Julian Assange parece ter encontrado mecanismos para ultrapassar algumas das consequências do confinamento. Não pode sair do quarto onde está, mas corre todos os dias na passadeira que lhe ofereceram. Raramente fala com pessoas, mas adotou um gato, algo que “pode ser uma fonte de estabilidade emocional e de combate aos sentimentos de solidão”, diz-nos a psiquiatra. E manteve-se ativo, através da participação à distância em eventos, da leitura e quiçá da escrita, algo que noutros casos se mostrou frutífero:
“Há situações em que determinados indivíduos lidam com outra facilidade e até produzem obras literárias, como foi o caso de Álvaro Cunhal ou Nelson Mandela”, recorda Mário Jorge Santos.
Então, em que homem se transformou Julian Assange? “Quanto mais confinado estivermos a um espaço, menos livres nos sentimos. Para um indivíduo que se descreve como um defensor da liberdade, isto é o oposto de tudo aquilo que ele defende. Há uma perda da liberdade, moral e material”, recorda Adelaide Costa. No entanto, esse pode ser um sacrifício que Julian Assange sente que faz por algo maior.
Embora já tenha dito que está em “detenção sem condenação”, o ativista também pode assumir o papel de mártir, sublinha Mário Jorge Santos: “A gravidade da situação depende da resiliência e da forma como ele encara a reclusão, ou seja, se para ela é um castigo ou se é algo que faz em prol da humanidade, como um mártir”. É impossível saber sem olhar para dentro da mente do ativista através de uma análise psicológica.