Em princípios do século XVI, plena época dos Descobrimentos, D. Manuel I deixou o Castelo de São Jorge e decidiu que o palácio real passaria a estar junto ao rio Tejo, a via que aproximava Portugal dos tesouros da Índia. No que é agora o Terreiro do Paço, a maior praça de Lisboa, hoje cheia de turistas e restaurantes, o rei mandou construir o famoso Paço da Ribeira, de que os historiadores ainda pouco sabem e que viria ser destruído pelo terramoto de 1755. O local concreto em que D. Manuel passou a viver era uma torre, ou torreão, sobre estacas de madeira, numa época em que o Tejo estava mais adentro da cidade do que hoje – muito próximo do atual Torreão Ponte (à direita de quem olha o Tejo). Começava assim uma história de quase 500 anos de um edifício que conheceu três versões e sempre foi tido como símbolo do poder político e ícone arquitetónico e urbanístico da capital.
É essa a narrativa apresentada na exposição “O Lugar do Torreão”, precisamente no Torreão Ponte, que se inaugura nesta sexta-feira, 17 de maio, e poderá ser vista até outubro, com entrada a três euros (algumas imagens das peças estão no topo desta página). Será a última exposição antes de um longo período de obras. A seguir, o Torreão Poente começa a ser remodelado de alto a baixo. “Serão obras muito profundas, todo o edifício será restaurado e infraestruturado para museu”, disse na quarta-feira a diretora do Museu de Lisboa, Joana Sousa Monteiro.
A empreitada demorará “cerca de um ano e meio”, acrescentou, para que no verão de 2021 o Torreão passe a ser um dos polos do Museu de Lisboa (gerido pela EGEAC, empresa pública de cultura da Câmara Municipal). Em rigor, o edifício já é utilizado desde 2015 como espaço expositivo daquele museu e até já é referido no site da instituição.
“Há bastante tempo que tínhamos em mente criar uma exposição para contarmos esta história aos portugueses e aos turistas que nos visitam. Desde o século XVI que Lisboa tem mais ou menos neste lugar um torreão voltado para a praça e para o rio”, explicou a diretora do museu, durante uma visita guiada ao Observador, em que resumiu a história do edifício. A montagem decorria na quarta ao fim da tarde, mas foi possível perceber que a mostra – com curadoria do historiador Nuno Senos, cuja tese de doutoramento foi sobre o Paço da Ribeira de D. Manuel – pretende recriar diversas épocas da existência do torreão.
Depois de D. Manuel, o edifício entrou em ruína, provavelmente devido a um terramoto em 1531, de magnitude muito inferior ao de 1755. A seguir à Batalha de Alcácer-Quibir (1578), quando Portugal perdeu a independência, Filipe II de Espanha (I de Portugal) “chegou a planear transferir a corte para Lisboa, porque adorava a cidade, e encomendou a dois importantes arquitetos da época, o italiano Terzi e o espanhol Juan de Herrera, um novo torreão”, explicou Joana Sousa Monteiro.
“Foi desenhado no fim da década de 80 do século XVI e construído pouco depois. Tinha um certo ar imperialista e uma cúpula quadrada, o que era revolucionário em termos arquitetónicos em Lisboa. As vistas de Lisboa, sobretudo na pintura, passaram a incluir o novo torreão filipino, que tinha até mais relevância iconográfica do que a Torre de Belém”, acrescentou a mesma responsável.
Os reis espanhóis nunca se mudaram para Lisboa, é certo, mas ficavam ali instalados sempre que se deslocavam à cidade. Mesmo depois da Restauração da Independência, em 1640, e até ao terramoto de 1755, o torreão continuou a ser utilizado. O Marquês de Pombal decide demoli-lo por completo, após a destruição provocada pelo terramoto, e torna a praça mais voltada para o comércio e para o funcionamento administrativo. É dele a denominação Praça do Comércio, ainda hoje utilizada, embora esse outro nome mais antigo que é o Terreiro do Paço pareça ser o que prevalece na linguagem.
O Torreão Poente que hoje temos (“poente” para o distinguir da torre na outra extremidade da praça, o Torreão Nascente, pertencente ao Ministério das Finanças e usado para conferências e outros eventos) é parte integrante do conjunto mandado edificar por Pombal e o rei D. José, mas surgiu apenas nos anos 40 do século XIX. “Foi o último remate da praça, com exceção do Arco da Rua Augusta, que apareceu um pouco mais tarde”, precisou a diretora.
Revelações de um quadro
Com 75 peças originais, muitas oriundas da coleção do Museu de Lisboa e outras cedidas por empréstimo, “O Lugar do Torreão” inclui azulejos hispano-árabes da época de D. Manuel, que recriam ambientes e estéticas; porcelanas, desenhos, fotografias. Há uma cadeira de braços de D. João V em madeira de pau-santo, vinda do Palácio de Mafra; e uma tapeçaria da Flandres, do século XVI: “Cortejo Triunfal com Girafas”, com representação de animais e plantas exóticas.
Uma pintura mereceu o destaque de Joana Sousa Monteiro, cedida para a exposição pelo estado de Hessen, na Alemanha, e recentemente exibida no Museu Nacional de Arte Antiga e na sede do Museu de Lisboa, no Campo Grande. Trata-se de um óleo de autor desconhecido, provavelmente flamengo ou italiano, pintado em fins do século XVI, embora erradamente datado de 1613 num restauro posterior, representando a entrada de Filipe II em Lisboa, com vista aparatosa sobre a cidade e presença marcante do torreão filipino. “Fizemos um estudo muito aprofundado da pintura e em junho vamos lançar um livro com informação completamente nova, incluindo o resultado de análises por infravermelhos”, adiantou a diretora.
Ao longo dos séculos, nos três torreões mais ou menos situados na mesma área, vários reis nasceram e viveram. D. João V assistia da janela a touradas e autos-de-fé, por exemplo. Vários ministérios e outros serviços de administração do Estado aqui funcionaram. Isabel II foi recebida aqui, ao chegar a Lisboa pelo Cais das Colunas, a bordo de um pequeno barco, em 1957. Salazar fez vários discursos a partir da varanda. E no dia 25 de abril de 1974 deu-se no torreão o que Joana Sousa Monteiro descreveu ao Observador como um “episódio pouco conhecido”, de que faz prova uma fotografia de Alfredo Cunha, que compõe a exposição. Na madrugada do dia da revolução, foram refugiar-se no torreão elementos do Ministério da Defesa e do Interior, não se sabe ao certo quem, acabando por fugir através de um buraco escavado à pressa numa parede com um machado de bombeiro, segundo a mesma responsável.
O Museu de Lisboa, até há poucos anos conhecido como Museu da Cidade, é polinucleado, com diferentes espaços e localizações: o Teatro Romano, o Museu de Santo António e o Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos. O núcleo central fica no Palácio Pimenta, no Campo Grande, e encontra-se em obras, parcialmente aberto ao público. Estão a ser feitas alterações na exposição permanente, que terá “uma perspetiva diacrónica, para contar a história de Lisboa, da pré-história até à Expo ‘98, de uma maneira diferente em termos do design expositivo e da narrativa”, adiantou a diretora. “Entre o fim deste ano e o início de 2020 contamos abrir ao público o andar de baixo, que é a parte maior do museu. Depois fecharemos o primeiro andar, que hoje está aberto, e as obras vão durar até ao início de 2021”, acrescentou Joana Sousa Monteiro.
O Torreão Poente ficou devoluto há cerca de cinco anos, quando o Exército deixou de o utilizar, e nessa altura a Câmara de Lisboa começou ali a fazer exposições temporárias – seis a oito meses por ano, normalmente abarcando os meses de verão –, até decidir que deveria instalar um novo núcleo do Museu de Lisboa. Também no Torreão Poente funcionam por enquanto os serviços do Museu do Design e da Moda (MUDE), outro museu municipal, até estarem terminadas as obras de remodelação da sede, na Rua Augusta, o que dificilmente acontecerá antes do próximo ano.