Artista, autora, modelo, designer de moda, socialite e herdeira de um império. Gloria Vanderbilt morreu ontem, aos 95 anos. A notícia foi avançada esta segunda-feira pelo seu filho Anderson Cooper, âncora do canal CNN. Citado pela The Hollywood Reporter, o jornalista partilha que a família só ficou a saber que Gloria sofria de um cancro no estômago em fase avançada tardiamente. “Apesar de ter passado os últimos anos sozinha, não estava só quando o fim chegou. Estava rodeada pela família e pelos amigos”, descreveu.

O nome de Vanderbilt ficará para sempre associado àquele que ficou conhecido como o “julgamento do século”. Foi na década de 30 do século passado, que a custódia (e fortuna) de Gloria foi acesamente disputada em tribunal pela sua mãe, Gloria Morgan Vanderbilt, e pela sua tia paterna, Gertrude Vanderbilt Whitney. “Pobre menina rica”, não demoraram os jornais a catalogar a criança mais famosa da América durante os Loucos Anos Vinte e a era da Grande Depressão, fora da esfera de Hollywood.

Em 2010, com o filho Anderson Cooper © Dimitrios Kambouris/Getty Images

“Viveu a sua vida inteira sob os olhares do público”, descreveu esta segunda-feira na CNN o filho, num obituário em vídeo da mulher cujo trajeto intenso e tumultuoso fica ainda marcado pelos vários casamentos e aventuras no mundo dos negócios.

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Com uma vida multifacetada, o seu apelido cola-se como uma luva ao universo da moda, perfumes, decoração e uma série de outros items com o seu nome. Os famosos blue jeans com os bolsos atrás, confecionados pela Mohan Murjani, ganharam um enorme empurrão à sua conta e poucos se poderão gabar de ter uma música feita por medida pelo ex-Beatle Paul McCartney, que em 1974 lançava “Mrs Vanderbilt”, baseada na vida de Gloria.

Com o fotógrafo Richard Avedon (à esquerda), e o cineasta Sidney Lumet (um dos seus quatro maridos), na festa da estreia de “A leste do Paraíso”, de Elia Kazan, em 1955 ‘© Getty Images

Nascida em Manhattan, Nova Iorque, em 20 de fevereiro de 1924, filha única do milionário Reginald Claypoole Vanderbilt, um magnata dos caminhos de ferro, e da segunda mulher deste, Gloria Morgan, a vida da herdeira mudou para sempre quando o pai morreu com uma cirrose. Gloria Vanderbilt tinha apenas 18 meses quando herdou 2.5 milhões de dólares (igual quantia foi parar às mãos da meia-irmã Cathleen). À luz do câmbio atual, falamos de qualquer coisa como 37 milhões de dólares, montante inacessível até atingir os 21 anos, e em parte delapidado pelos gastos maternos.

Nada que pague uma infância borrada pela veia de playboy e o excesso de álcool paternos e pela negligência de uma mãe adolescente que cedo trocou a filha pelas viagens e festas na Europa, não estranhando por isso que a sua guarda tenha sido garantida pela tia. Gloria cresceria numa mansão em Long Island rodeada e empregados, advogados e tutores, e a procurar na poesia, no cinema e outros escapes um conforto para todas as primeiras perdas.

A história do longo e escandaloso litígio foi contada em livro em 1980 por Barbara Goldsmith, e dois anos mais tarde a NBC transmitiria mesmo uma minissérie inspirada no caso, “Little Gloria… Happy at Last”, com Jennifer Dundas na pele de Gloria e seis nomeações aos Grammy.

Com apenas 17 anos, Gloria casou-se com o produtor Pat DiCicco (1909 – 1978), em Beverly Hills, California, a 28 de dezembro de 1941. © Keystone/Hulton Archive/Getty Images

Foi no teatro que Gloria, cujo sobrenome remonta a uma idade de ouro que ocupava o 820 da 5ª Avenida, com vista para o Central Park, vizinho de outras fortunas sonantes, como os Whitneys e os Astors, deu os primeiros passos, nos anos 50 e 60. Com apenas 17 anos, dava nas vistas na moda e figurava nas páginas da Harper’s Bazaar e namorou com as lentes de vários fotógrafos famosos, caso de Richard Avedon.

A estreia no mundo empresarial deu-se na década de 70, momento em que lançaria a sua famosa marca com a imagem de um cisne. Primeiro, uma linha de lenços, mais tarde as calças de ganga, reabilitados ao ponto de liderarem um verdadeiro império de estilo. Em 1979, o New York Times reportava o sucesso estrondoso dessa aliança entre os clássicos jeans, um uniforme por excelência dos anos 60, e um “grande nome”, o de Vanderbilt. Entre 1978 e 1984, a marca faturou mais de 17 milhões de dólares.

Já os anos 80 ficaram manchados pela fraude protagonizada pelos seus advogados, que deixaram em xeque o grupo Gloria Vanderbilt. Apesar de ter vencido o caso, que se arrastou longamente, Gloria devia milhões em impostos que nunca chegaram a ser pagos, um ajuste de contas que a obrigou a vender imobiliário em Southampton, Nova Iorque.

Mas nenhum património se equipara ao colorido e às zonas cinzentas da sua vida pessoal, que provavelmente mais atenção gerou ao longo dos anos. Vanderbilt casou-se por quatro vezes, divorciou-se três, teve quatro filhos e pelo caminho colecionou outras relações que deram brado, incluindo namoros com Frank Sinatra, Gordon Parks (até 2006), Marlon Brando, Howard Hughes e Roald Dahl.

Gloria partilhava com os 205 mil seguidores no Instagram várias imagens de outras eras. Há sete dias fez a última publicação © Instagram GV

Com apenas 17 anos trocou alianças com Pat DiCicco, produtor, agente, e cúmplice de mafiosos como Charles “Lucky” Luciano, uma história de abusos e violência que terminaria, sem descendência, ao fim de quatro anos. Escassas semanais depois, casou-se com o maestro Leopold Stokowski. Tiveram dois filhos e a união desfez-se em 1955. O realizador Sidney Lumet foi o seu terceiro marido. Casaram-se em 1956 e separaram-se em 1963, sem filhos. Pela quarta vez, em dezembro de 1963, Gloria disse “sim”, agora ao autor Wyatt Emory Cooper. O casamento durou 15 anos, até à morte de Cooper, em 1978, que não resistiu a uma cirurgia ao coração. Da relação nasceram dois filhos. Um deles, suicidou-se com apenas 23 anos. Carter Vanderbilt Cooper (1965–1988), o irmão de Anderson, lançou-se de um 14º andar do apartamento da família.

Amiga chegada da designer de moda Diane von Fürstenberg, viveu entre a tragédia e o faustoso universo da very important and beautiful people. Não por acaso, há quem insista que inspirou a célebre Holly Golightly de Truman Capote em “Breakfast at Tiffany’s” (“Boneca de Luxo”). Escreveu vários livros, incluindo poesia e mais do que uma título reservado às suas memórias. Para além de reconstituir a trágica morte do filho, Gloria perdoou a sua mãe em “Once Upon a Time” (1985). Em 2004, editava “It Seemed Important at the Time”, uma viagem pelos seus mediáticos casos com várias lendas de Hollywood.

Tenho que admitir que o amor da minha vida foi a minha mãe. Os homens são substitutos, digamos assim substitutos da minha querida”, escreveu Vanderbilt

Quando completou 90 anos, a sua extensa coleção de desenhos e pinturas foi exposta numa galeria em Nova Iorque. A riqueza da sua história pessoal e profissional, com especial enfoque na relação com um dos filhos (cuja revelação da homossexualidade Gloria veio a descobrir pela imprensa) mais conhecidos do grande público, ficou eternizada em “Nothing Left Unsaid” (“Nada por dizer”), um documentário com o selo da HBO que recupera o cisne e a sua lenda.