Imagine um primeiro-ministro que, desagradado com uma lei aprovada pelos deputados, decide suspender o Parlamento antes de a Rainha assinar a proposta de lei e evita assim a sua promulgação. Ou um primeiro-ministro que, perante uma moção de censura que é quase certo que o irá derrubar, suspende o Parlamento. Ou até um primeiro-ministro que, por ser “filosoficamente contra” a ideia de um Exército profissional, suspende o Parlamento antes de ser aprovada a nova Lei das Forças Armadas (que, no Reino Unido, tem de ser revista a cada cinco anos) e deixa assim o país sem um Exército funcional.

Foram estes os cenários fictícios que John Major utilizou para sustentar a ideia de que a suspensão do Parlamento decretada pelo primeiro-ministro Boris Johnson foi ilegal. O antigo primeiro-ministro conservador (mas pró-europeu), que liderou o Reino Unido após Margaret Thatcher, entregou esta quinta-feira ao Supremo Tribunal britânico um documento onde explicita os seus argumentos, pelas mãos do seu advogado, o lorde Edward Garnier. Este explicou depois na audiência do Supremo as ideias do cliente.

No documento, Major argumenta que Boris Johnson fez da prorrogação do Parlamento um instrumento político — quando ele é apenas administrativo —, escondeu as suas verdadeiras motivações para o fazer e abriu assim um precedente perigoso. Se a suspensão da Câmara dos Comuns for considerada legal, diz, “a consequência será que não haverá nada na lei que impeça um primeiro-ministro de suspender o Parlamento em quaisquer circunstâncias ou por qualquer razão”, afirma o antigo primeiro-ministro tory no documento.

Decisão de Boris foi “motivada por interesses políticos”, diz Major

Major, que não esteve presente na sessão, argumentou por escrito que o instrumento da prorrogação é puramente administrativo — um argumento que contradiz aquele que o Governo britânico apresentou, dizendo que é um instrumento político com o qual os tribunais nada têm a ver. “Na grande maioria dos casos”, responde Major, “a decisão de suspender o Parlamento não tem qualquer conteúdo político.”

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Neste caso, afirma, não é assim.

A decisão do primeiro-ministro foi motivada por interesses políticos para garantir que não haveria atividade parlamentar durante o período que decorre até à cimeira europeia de 17/18 de outubro de 2019”, considera o antigo primeiro-ministro.

Major junta-se assim à interpretação da oposição e também de alguns membros do seu próprio partido, que acabaram por votar contra o próprio primeiro-ministro e foram posteriormente expulsos: a de que a suspensão tinha como propósito impedir que o Parlamento travasse uma saída sem acordo — propósito que, a ser verdade, falhou — e se imiscuísse no processo do Brexit liderado pelo Governo. “O acusado [Boris Johnson] tinha um outro propósito que não aquele que foi registado nos documentos que divulgou”, é a convicção do antigo primeiro-ministro.

Prova disso mesmo, afirma Major, é o facto de Boris ter evitado responder diretamente às perguntas de dois desses deputados tories (David Gauke e Dominic Grieve) no Parlamento sobre os motivos da suspensão. Outra das provas apontadas por Major — que, de acordo com os biógrafos de Boris Johnson (Sonia Purnell e Andrew Gimson) nunca morreu de amores pelo atual primeiro-ministro —, é um artigo da conselheira em questões legislativas do Governo, Nikki da Costa, que redigiu agora parte da justificação legal de Boris para a suspensão.

Umas semanas antes, escreveu um artigo de opinião na Spectator intitulado ‘Irá o Parlamento ser capaz de impedir o próximo PM de sair sem acordo?’, no qual explorava a possibilidade de um ‘Governo capaz’ tentar ‘atrasar a aprovação de legislação futura para ganhar tempo’ antes da cimeira europeia”, escreveu Major, um indício que considera suspeito de que o Governo agiu com esta motivação política escondida. “Isto claramente necessita de uma explicação, mas não foi dada nenhuma.”

Também esta quinta-feira, o seu advogado, lorde Garnier, apontou outro exemplo em tribunal: “O ministro da Defesa mostrou o jogo com uma entrevista”, afirmou o advogado, referindo-se a uma conversa de Ben Wallace em que disse a uma colega que “um líder tem de tentar”, especialmente perante um Parlamento que “tem sido muito bom a dizer o que não quer e que tem sido horrível a dizer o que quer”.

Lorde Garnier aproveitou o seu testemunho em tribunal para reforçar alguns dos argumentos apresentados por Major na sua exposição escrita. “Sir John demonstra provas de que a decisão foi na verdade motivada, num sentido material, para coincidir com as políticas do primeiro-ministro”, decretou.

Para reforçar essa convicção, Garnier destacou o período de cinco semanas de suspensão (superior ao habitual, de cerca de uma semana), dizendo que o Governo “não fez qualquer tentativa para explicar por que decidiu suspender em setembro” e que “a completa ausência de explicação pode significar que sabiam que a própria suspensão era controversa”.

A intenção era claramente enganar”, sentenciou o advogado perante os juízes do Supremo. John Major fez “uma alegação clara (…) de que as razões apresentadas pelo primeiro-ministro não podem ser verdadeiras”.

Ou, como resumiu o correspondente jurídico da BBC Clive Coleman, “ele estava basicamente a dizer ‘Olhem para as provas. É extraordinariamente suspeito. Retirem as vossas conclusões.’”

Conservadores acusam Major de hipocrisia: “Ele pensa que caminhava sobre as águas”

O Governo argumenta que a suspensão do Parlamento pode ter motivações políticas, embora tenha evitado explicar se foi ou não esse o caso agora. Os advogados do Executivo também afirmaram perante o Supremo que esta não é uma matéria que compita aos tribunais decidir e que a “motivação” apontada a Boris Johnson — impedir o Parlamento de travar um no deal — não se concretizou sequer, com a aprovação da lei Benn a ser bem sucedida.

Mas o verdadeiro contra-ataque a Major não foi feito numa sala de tribunal, mas sim fora dela. O antigo líder dos conservadores, Iain Duncan Smith, aproveitou para relembrar, em declarações ao Daily Telegraph, que John Major foi precisamente responsável por uma suspensão do Parlamento, em 1997, que muitos consideraram ter motivações políticas. “Ele pensa que caminhava sobre as águas”, afirmou, acusando o antigo primeiro-ministro de ter aspirações de comparação com Jesus Cristo. “Todos estes grandes e bravos parecem ter-se esquecido daquilo que fizeram quando estavam no Governo.”

É curioso que até a própria Nikki da Costa, a conselheira legal que Major considera ter escrito um artigo a defender a suspensão como forma de contornar os problemas do Brexit, apontou o caso de Major ainda em julho, dizendo que o seu pedido de prorrogação teve “objetivos políticos e queria impedir que os Comuns analisassem um assunto mais a fundo”.

https://twitter.com/nmdacosta/status/1148869542568955905?lang=en

Em causa estava o chamado caso cash-for-questions (dinheiro em troca de questões), com acusações de que dois deputados conservadores tinham recebido dinheiro para fazer perguntas específicas no Parlamento como parte de uma campanha de lobbying do antigo dono da cadeia Harrods, Mohammed Al Fayed. À altura, o Parlamento estava a investigar e iria divulgar o seu relatório final em breve, quando Major decidiu suspender a sessão do Parlamento durante três semanas. Desde então, aponta o site de fact checking FullFact, Major tem sido acusado pelos adversários de o ter feito para impedir a divulgação do relatório antes das eleições, que estavam marcadas para daí a 19 dias. “Tenha ou não sido essa a razão para a suspensão do Parlamento, teve esse efeito — o relatório acabou por ser publicado mais tarde, em julho de 1997”, escreve o FullFact.

Na audiência do Supremo, lorde Garnier abordou o elefante na sala: “Foi sugerido que [a prorrogação de 1997] foi motivada por questões políticas”, admitiu o advogado. “Estão errados”, afirmou simplesmente, apontando para testemunhos de alguns dos intervenientes envolvidos no processo nessa altura.

Garnier e os advogados do Governo não fizeram afirmações polémicas nem perderam as estribeiras ao longo da semana de audiências no Supremo Tribunal, que irá decidir definitivamente se a suspensão do Parlamento foi ou não legal. Na sala, o tom foi habitualmente calmo e focado nos intrincados detalhes da lei e do Direito. Mas nenhum dos dois lados conseguiu esconder a relevância do momento em que um antigo primeiro-ministro conservador acusa o atual ocupante do cargo, do mesmo partido que o seu, de enganar, esconder e mentir. Fora da sala, voaram acusações de hipocrisia contra Major pela sua suspensão em 1997.

O Supremo Tribunal irá agora decidir sobre a legalidade desta suspensão e anunciará o veredito “no início da próxima semana”. Mesmo que decida que a suspensão foi ilegal, o tribunal pode optar por não obrigar Boris Johson a reabrir de imediato o Parlamento. Os advogados de Downing Street estão a torcer para que, caso percam, seja esse o entendimento do Supremo, mas não excluem nenhuma hipótese, como noticiam os jornais britânicos. Oficialmente, o Governo diz que “irá dar todos os passos necessários para cumprir qualquer declaração feita pelo tribunal”.