Na Fábrica Braço de Prata, local que o Livre escolheu para acompanhar a sua noite eleitoral, uma ardósia preta pendurada ao lado do balcão do bar dava conta do “Menu Livre”, criado especialmente para a ocasião. Para além do pão com chouriço e da sandes de carne assada, um prato curioso destacava-se. Era o “doce platónico”, que, para além de adoçar a boca dos apoiantes do partido, dava o mote à noite: iria o sonho do Livre de eleger uma deputada, a primeira cabeça-de-lista que é uma mulher negra na história parlamentar portuguesa, concretizar-se? Ou — como aconteceu há quatro anos quando o fundador Rui Tavares falhou a eleição ao contrário do que diziam as projeções — seria esse apenas um desejo platónico que nunca se concretizaria?

Foram precisas quase cinco horas para ter a certeza. Já era quase meia-noite e meia quando uma voz se ergueu por cima das outras, na sala recheada de apoiantes de papoila na lapela, e gritou: “Elegemos!” A surpresa já tinha sido estragada por António Costa, que cinco minutos antes se antecipou e disse em direto que o Livre tinha elegido Joacine Katar Moreira e que o PS iria abordar o partido para o sondar sobre possíveis soluções de governabilidade. E nem a promessa de ser a primeira mulher negra a entrar no Parlamento nesta eleição se cumpriu: o Bloco de Esquerda também se antecipou ao eleger Beatriz Gomes Dias, cerca de uma hora antes.

[Começa agora a prova dos nove. O filme da noite eleitoral]

Mas esses atropelos não pareceram incomodar o Livre, que festejou com champanhe derramado sobre Joacine e os apoiantes, ao som do hino de campanha “O-Sem-Precedente”, dos Fado Bicha. “Vamos trabalhar. Estamos ansiosos. O Livre está ansioso, sedento de contribuir de uma forma efetiva por uma mudança nacional”, disse Joacine Katar Moreira, depois de subir ao palco e ser engolida pela quantidade de militantes do partido que a queriam felicitar. “Estivemos estes anos à espera e vamos fazê-lo agora, com o vosso apoio”.

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Foi o desabafo depois de horas de ansiedade. “Agora é sofrer”, lamentava-se um militante a certa altura, à medida que na sede se olhava para os resultados eleitorais nos telemóveis. “É preciso ter calma”, pedia outro apoiante, falando para o ar. A ansiedade agudizou-se quando a Iniciativa Liberal anunciou que tinha eleito um deputado, enquanto o Livre ainda estava enredado numa disputa para eleger em Lisboa, à semelhança do Chega. “É preciso aguentar o suspense“, pediu Carlos Teixeira, o número dois por Lisboa, ao microfone. Mas, entre uma trinca num pedaço de bôla e um gole numa mini, os apoiantes do Livre não perdiam a esperança — e a espera compensou, com Joacine Katar Moreira a ser recebida de forma apotéotica no palco após ser conhecida a sua eleição.

Cumpria-se a declaração que tinha feito no Twitter (“Esta é a campanha da minha vida”), no último dia de campanha, anunciando que iria beber um vinho para celebrar, debaixo do outdoor do partido no Marquês de Pombal — o único que o Livre teve em todo o país, como faria questão de destacar ao Observador o seu fundador, Rui Tavares, lembrando que os recursos do partido para esta campanha ficaram muito aquém dos dos concorrentes diretos. “Não tem comparação nem com a Iniciativa Liberal, nem com o Chega”, afirmou, sublinhando que o orçamento foi de apenas 10 mil euros. É por essa razão, reconheceu, que “esta eleição tem esse gosto especial”.

“A partir de agora deixou de haver aquela dúvida sobre se o voto no Livre é ou não um voto perdido. Não é: o Livre elege”, declarou, enquanto ao fundo da sala se continuava a pedir a Joacine Katar Moreira que saltasse para celebrar.

Acordo à esquerda? Sim, mas só com Europa e ecologia no menu

O plano de ação para os próximos dias por parte do Livre já está traçado: falar com todos os partidos da esquerda para ajudar a construir uma solução governativa. Mas as metas traçadas pelo partido são ambiciosas. O Livre quer um acordo convergente — em vez dos vários acordos bilaterais que foram assinados em 2015 —, que inclua uma posição comum em temas como a política europeia e a ecologia.

Rui Tavares deixou claro, ao Observador, que a bola agora está do lado dos restantes partidos da esquerda: “PS, PCP e BE têm de clarificar o que querem da geringonça 1.0. Isso não foi clarificado durante a campanha eleitoral”, acusou. Certo é que o cenário de entendimento do PS com os partidos mais pequenos sempre foi o mais desejado, como já indicava o partido em 2015, quando Tavares falhou a eleição. Desta vez, foi um militante a pôr os pontos nos is, quando ainda se aguardavam os resultados finais: ao ouvir-se um comentário na televisão sobre como “dificilmente o PS chegará à maioria absoluta”, uma voz gritou do fundo da sala “Ainda bem!”, provocando gargalhada geral.

Quanto a propostas, Joacine e Rui Tavares foram claros. Se ambos destacaram as prioridades relativamente ao ambiente, aproveitaram também para apontar cada um em duas frentes. A recém-eleita deputada usou o discurso de vitória para falar nas “reivindicações das minorias”. “Seremos no Parlamento a esquerda anti-fascista, a esquerda anti-racista”, disse, antes de defender ainda o “feminismo radical”. Já o fundador preferiu apontar para a política europeia, garantindo que o Livre irá defender metas para a presidência portuguesa da União Europeia, em 2021.

O diálogo de surdos à esquerda sobre a UE acabou. Mas o Governo e António Costa não podem descansar à sombra desse diálogo de surdos para não serem muito mais exigentes nas duas matérias que foram as enormes lacunas da geringonça: Europa e ecologia”, afirmou Rui Tavares ao Observador, deixando alfinetadas a todos os partidos da esquerda — até ao PAN, lembrando que o próprio partido diz “não ser de esquerda nem de direita”. Mas, medindo a temperatura à sala da Fábrica Braço de Prata onde o Livre se juntou, parece haver afinidades mais naturais do que outras. Afinal, se quase ninguém parou para ouvir Jerónimo de Sousa discursar, fez-se um silêncio praticamente sepulcral na sala para ouvir as palavras de Catarina Martins.

Seria precisamente a líder do Bloco de Esquerda a provocar uma reação quase premonitória na Fábrica Braço de Prata. Efusivamente aplaudida pelos apoiantes do Livre quando falou numa “derrota histórica para a direita” — tratamento a que Costa e Jerónimo não tiveram direito —, foi interrompida na sala por uma voz que avisou “mais ou menos, vamos lá ver”, numa referência ao Chega, de André Ventura.

O partido de extrema-direita seria mesmo o fantasma que ensombrou, do início ao fim, a festa do Livre. Já na campanha, Ventura tinha tentado atacar o Livre, que classificou de “versão rasca do Bloco de Esquerda”. Agora, no seu discurso de vitória, Joacine Katar Moreira começou por afirmar que “não há lugar para a extrema-direita no Parlamento” e ainda reivindicou os louros de a ter travado — “Fomos a pedra que impediu que isso acontecesse” —, mas foi desmentida pela realidade. O Chega conseguiu mesmo eleger, à semelhança do Livre, e faz parte do menu de três novos partidos que entram agora na Assembleia da República (com a Iniciativa Liberal a completar o pijaminha de sobremesas).

Em noite eleitoral, cinco anos depois de ter sido fundado e após meses de uma campanha com meios limitados, o “doce platónico” do Livre tornou-se real, com a entrada da sua cabeça-de-lista por Lisboa, uma mulher negra, no Parlamento. Mas agora, do outro lado do Parlamento, terá também um amargo de boca chamado André Ventura. E, pelo meio, ainda terá de comer muita sopa se quiser conseguir colocar toda a esquerda de acordo em matérias de política europeia. Joacine Katar Moreira diz estar disposta a tentar.

*Artigo corrigido para clarificar que Joacine Katar Moreira não tinha ambições de ser a primeira deputada mulher e negra (não seria a primeira), mas sim a primeira cabeça-de-lista que é mulher e negra a ser eleita