“Também quero ir para o boxe”. Depois do irmão mais velho, também Wladimir Klitschko, que nasceu no atual Cazaquistão, quis entregar o cabedal acima da média a uma modalidade que não é propriamente a melhor para quem quer o melhor para os filhos. O pai, Vladimir, um antigo general da Força Aérea que foi destacado para “limpar” os efeitos do desastre nuclear de Chernobyl antes de rumar à Alemanha, nunca criou resistências. A mãe, Nadezhda, obrigou-o a cumprir uma promessa: ao lado de Vitali, teve de prometer que não iriam combater um contra o outro. Muitos anos de carreira depois, esse cenário nunca aconteceu. E as segundas vidas depois de quase duas décadas no topo foram por diferentes caminhos mas com idêntico sucesso.
Vitali, de 48 anos, virou-se para a política. É hoje o mayor de Kiev e uma das personalidades mais influentes da Ucrânia. Wladimir olhou para os negócios que podia empreender com os estudos e graduações que foi fazendo em paralelo com o boxe. “A força de vontade é a mais forte das forças – nos negócios e na vida”, defende na imagem de abertura do site oficial da Klitschko Ventures, agência que presta assessoria e consultoria a empresas, associações e sociedades em todos os tópicos relacionados com a Gestão de Desafios e o desenvolvimento de novos modelos de negócio. “Obtive tudo o que sempre sonhei e agora aquilo que mais quero é começar a minha segunda carreira depois do desporto”, destacou no dia em que anunciou a retirada, em agosto de 2017.
Depois de uma carreira como amador com mais de 100 vitórias, entre as quais as que valeram o título europeu de juniores e o vice-campeonato mundial do mesmo escalão, Wladimir Klitschko conquistou a medalha de ouro de pesos pesados nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, derrotando Paea Wolfgramm, do Tonga, numa final onde chegava como favorito após o triunfo nas meias frente ao russo Alexei Lezin. Nesse mesmo ano, teve a primeira experiência num combate profissionais, somando a primeira de 64 vitórias em 69 combates – 53 por knockout. Entre vários registos que ficaram para a história, ficou como o pugilista com mais vitórias em combates pelo título de pesos pesados, em combates por títulos unificados e mais defesas consecutivas do cinto de campeão. Entre 2004 e 2015, venceu 21 combates consecutivos antes das derrotas com Tyson Fury e Anthony Joshua.
Além de um dos maiores reinados de sempre de títulos combinados nos pesos pesados (mais de 4.300 dias), Wladimir Klitschko, a par de Vitali, deixou um dos legados mais reconhecidos na modalidade e em março de 2012 foi protagonista num episódio que retrata esse mesmo respeito: após colocar a medalha de ouro dos Jogos de 1996 num leilão, recebeu um milhão de dólares que foram diretamente para ajudar centenas de crianças ucranianas em projetos humanitários… e recebeu de volta o prémio desse triunfo pelo comprador anónimo que considerava que essa medalha deveria ficar na família. Entre esse percurso, Klitschko, que dá nome ao asteroide 212723, tirou uma licenciatura em Ciências do Desporto e foi professor adjunto na Universidade de St. Gallen.
“Como é que estão, tudo bem?”, atirou quando deu entrada no palco do Sports Trade, do Web Summit. Não é muito normal mas aconteceu: o nível de aplausos foi bem maior do que costuma ser, mais sonoro do que aquele clap clap de circunstância do convidado que se segue. Percebe-se que os anos passaram mas o mais novo dos Klitschko ainda é uma referência incontornável – e saltando já para o final deste espaço, enquanto estava a ser apresentado o novo painel havia dezenas e dezenas de telemóveis no ar numa zona lateral para tirar fotografias com o ucraniano. “Não sou um empresário, sou uma pessoa que gosta de desafios. Quem não aceita os desafios, desculpem lá, é um cobarde, desculpem que vos diga… Temos de dar sempre a cara. Como atleta, ao longo de três décadas, aprendi que há princípios que nos ensinam em tudo. No desporto, na política, na sociedade. Agilidade, capacidade, fé. Muita fé”, atirou antes de mais um momento de descontração: “E agora vou ter de acabar um bocado este monólogo porque não vos quero não pôr a dormir, já basta o que fiz a alguns dos meus adversários…”.
“Existe uma preparação para a vida depois da carreira. Temos todos várias vidas dentro da mesma vida. Na primeira carreira é preciso preparar a segunda, é preciso ir desenvolvendo essa nova etapa. Vejam o exemplo do Arnold Schwarzenegger: veio de uma vila da Áustria, era um culturista, depois passou a ator, a seguir tornou-se um político governador, hoje está ligado a outras causas e teve sempre sucesso. Se ele conseguiu, não podemos também conseguir? Ele aprendeu tudo também. Temos de ser obcecados com a conquista dos nossos objetivos e ter amor. Se não estivermos apaixonados pelos nossos objetivos, mais vale desistir e escolher outros”, referiu, prosseguindo: “Mesmo quando esse sonho pode parecer irreal, tem de ser assim. Na final dos Jogos Olímpicos estava a perder, o meu treinador disse-me isso, e pensei que prata era bom mas queria mesmo era o ouro. Tudo passa pela força de vontade e pode ser aprendida. Vejam o meu irmão: perdeu as primeiras eleições, perdeu as segundas eleições, eu próprio pensava que ele era maluco em ir às terceiras mas foi, ganhou, cumpriu o seu sonho e hoje faz um grande trabalho a gerir uma cidade tão grande como Kiev, por exemplo”.
Reforçando também a importância da tecnologia no desporto dos nossos dias, até por forma a ajudar aquele que é o coração do desporto (atletas e adeptos), Klitschko deixou um apelo a todos para que façam exercício físico a bem de um espírito positivo, revelou que aprendeu muito da última derrota da carreira que teve frente a Anthony Joshua (dando como exemplo os cientistas que tiveram falhas mas inventaram a super cola ou os médicos que também nem sempre tiveram sucesso mas inventaram… o Viagra) e deixou no ar aquele que podia ser um dos regressos mais aguardados de sempre. “Quando voltar não é para partir o queixo, é para partir um recorde. George Foreman foi o campeão mais velho de sempre com 45 anos, eu ainda tenho 43. Vou ter de esperar dois anos…”, atirou no dia em que se comemoram 25 anos desse título frente a Crawford Grimsley no Japão.