A história é contada já a entrevista vai avançada. Um dia, corria então o ano de 1950, um pianista chamado João Donato e um guitarrista e cantor chamado João Gilberto foram convidados para passar uma semana a tocar ao vivo num hotel situado no interior de Minas Gerais, no Brasil. “Numa estação de águas termais”, como hoje recorda o primeiro ao Observador, em conversa telefónica a partir do seu apartamento no bairro da Urca, no Rio de Janeiro.

A bossa nova não existia, para “Chega de Saudade” ainda faltavam oito anos e os dois, Gilberto e Donato, eram ainda dois anónimos para a maior parte do país. Esta não é, ao contrário do que se poderia esperar, uma história de músicos desconhecidos enganados por patrões (promessas que na hora do pagamento se esfumaram) nem de talentos que maravilharam quem lhes pôs os ouvidos em cima antes da fama. É uma história de um choque que nem sempre é lembrado quando se fala do que antecedeu a bossa-nova.

Bastou uma noite do dueto para o gerente do hotel ficar com uma impressão clara do que os dois faziam.

“Chegou perto de nós e disse: olha, não se preocupem com nada, com pagamento, com estadia, com transporte, com alimentação. Está tudo certo. Só não quero é que toquem mais nem cantem mais nada”.

Do lado de cá da linha ouvimos o riso, a memória carregada da ironia. Uns minutos antes já o tínhamos ouvido recordar que “não só eu como muitos de nós… muitos dos colegas da bossa-nova eram incompreendidos no começo. Era um estilo de música um pouco diferente da tradicional e muita gente recusava-se a aceitar”.

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A incompreensão não duraria sempre: João Gilberto, “querido amigo”, faria “Chega de Saudade”, gravaria discos, tornar-se-ia um ícone, “o rei da bossa-nova, como era anunciado”. João Donato, por sua vez, assistiria à explosão e popularização da bossa-nova a um oceano de distância — a partir dos Estados Unidos da América, para onde entretanto emigrara —, tocaria jazz e música latina, faria uma bossa só sua.

Elogiado na medida certa por colecionadores de discos, (alguns) críticos e pelos seus pares, demoraria a ganhar a justa popularidade no Brasil, o que conseguiu quando começou a cantar, nos anos 1970, e a colaborar com “cantores mais populares”, como diz. O role de parceiros é infindável e atesta a importância histórica de Donato na música brasileira. Uma importância histórica que teima em continuar: hoje, com 85 anos, mais de 60 anos depois de gravar o seu primeiro álbum completo (LP) e 80 anos depois de começar a tocar acordeão aos 5, Donato continua a tocar, a viajar, a dar concertos e a promover discos novos. Esta quarta-feira, 13 de novembro, atuará pela terceira vez em Portugal — no clube B.Leza, em Lisboa. “Que beleza”, diz-nos ele.

[“Chorou, Chorou”, incluída no álbum ‘Quem É Quem’, editado em 1973 por João Donato:]

Não fosse o daltonismo, seria “um piloto-músico”

Começou pelo acordeão, mas o piano também andava lá por casa. A primeira composição, “Nini”, dedicou-a a uma rapariga com o mesmo nome. Tinham 7 e 8 anos — e João Donato, que gravou música pela primeira vez quando tinha 16 anos (tocou acordeão num tema de Altamiro Carrilho), garante que até a reencontrou recentemente.

Até aos 18 anos, João Donato não pensava em ser músico. Queria ser piloto de aviões. A música era para os tempos livres e, arrisca, manter-se-ia mesmo se tivesse passado num exame de aviação, no qual lhe foi diagnosticado daltonismo: “Seria um piloto-músico [risos]. Comecei a tocar com 5, 6 anos de idade e a minha vida tem sido música todos os dias. Não pude ser piloto, dediquei-me exclusivamente à música. Foi melhor assim, no final de contas — para mim e para todo o mundo”.

No Rio de Janeiro, para onde a sua família se mudou em 1945 — tinha João Donato 11 anos —, apostou na música e teve no clube musical Sinatra-Farney Fã Club um espaço de eleição para aprimorar quer o talento ao piano, quer o gosto pelo jazz.

“Ouvíamos discos americanos em 78 rotações. Comecei a envolver-me muito com o jazz, que viria a ter muita influência na música, através de discos de Chet Baker, Dave Brubreck e muitos outros”, recorda ao Observador.

Ao longo dos anos 1950, foi convivendo com alguns dos músicos brasileiros que emergiam naquele tempo — como Paulo Moura e Johnny Alff — e começou a dirigir noites musicais no Hotel Plaza, no Rio de Janeiro, “todas as noites”, na companhia de Roberto Carlos, “o cantor, que se tornou hoje o rei aqui do Brasil”, João Gilberto e “António [Tom] Carlos Jobim”, entre tantos outros. O grupo que ali se reunia, recorda João Donato, “resultou na bossa-nova”, que apareceu depois de “Chega de Saudade” — gravado por João Gilberto em 1958, dois anos depois de Donato gravar com Jobim o seu primeiro LP, Chá Dançante — e que explodiu nos anos 1960. “Mas aí já estava nos Estados Unidos”, lembra ele.

[“Lugar Comum”, tema que deu título ao álbum homónimo editado por João Donato em 1975:]

O “brazilian boy” dos Estados Unidos

João Donato poderia ter ficado no Brasil enquanto o reconhecimento não chegava. Talvez a paciência o tivesse tornado um símbolo maior bossa-novista, talvez o reconhecimento tivesse chegado para ele como chegou para alguns dos “amigos”. Acontece, porém, que o pianista brasileiro estava cada vez mais obcecado pelo jazz — e em 1959 fez as malas, viajou para o México com Nanai (antigo membro de uma das suas primeiras formações, os Namorados) e daí rumou a Los Angeles. Ainda voltaria ao Brasil brevemente, mas a maior parte dos seus anos 1960 foram passados na América do Norte.

Exatamente 60 anos volvidos, recorda assim a mudança de morada:

“Fui à procura do jazz. Fui para me aprofundar no jazz. Já sentia dificuldades para tocar no Brasil porque o meu estilo já estava um pouco jazzístico e no Brasil não aceitavam muito este tipo de música. Achava que nos EUA iam-me compreender rapidinho, ao contrário do Brasil, e fui. Tive uma oportunidade de ir passar quatro semanas tocando lá. Acabei ficando 12 anos”.

Ruy Castro: “O que define a bossa nova é o violão de João Gilberto”

As expectativas norte-americanas de João Donato, contudo, foram defraudadas. “O jazz estava meio parado nos EUA. Nunca foi especialmente popular, mas na altura havia poucos trabalhos para jazz. Perguntei a amigos do jazz onde é que se tocava nos EUA e disseram-me que era difícil, que a maior parte tocava em orquestras latinas. Se já era difícil para eles — porque havia poucos lugares para tocar e muita gente a querer fazê-lo —, para mim muito mais. Acabei por ir tocar para orquestras, que era onde havia trabalho”. Os “primeiros momentos” em solo norte-americano foram difíceis:

Os poucos brasileiros que havia por lá, incluindo a Carmen Miranda, chamavam-me brazilian boy. Não me adaptei com eles, acharam que esteve muito americanizado. Então me deixaram para lá.”

O trabalho com orquestras foi gradualmente aumentando, apesar da dificuldade inicial para aderir aos ritmos latinos — com Mongo Santamaría, Cal Tjader, Tito Puente e sobretudo com a orquestra de Johnny Martinez, que lhe deu uma estabilidade e regularidade de atuações. Os discos também foram aparecendo: depois de Muito À Vontade (1962) e A Bossa Muito Moderna de João Donato (1963), gravados numa passagem pelo Brasil, Donato editaria dois importantes álbuns da sua fase americana, Piano of João Donato – The New Sound of Brazil (1965) e A Bad Donato (1970). Isto enquanto preferia Los Angeles a Nova Iorque, cidade a que não se adaptou pelo “frio que fazia no inverno e calor que fazia no verão”.

[O primeiro tema de “The New Sound of Brazil”, disco de 1965:]

À sua projeção nos anos 1960 também ajudou, curiosamente, a bossa-nova. Os narizes deixaram gradualmente de se torcer ao jazz e à música brasileira “americanizada”, quando antes não faltava quem dissesse que a bossa perdia a sua essência quando saía do Rio de Janeiro. João Gilberto gravou com Stan Getz, o chamado samba-jazz perdeu detratores, o mundo enamorou-se pelas notas de saudade e João Donato ganhou companhia:

“Apareceu o pessoal da bossa-nova. Começaram a ir aos Estados Unidos e a procurar-me. O João Gilberto, o Tom Jobim, a Astrud Gilberto, o Dorival Cayimmi… procuravam-me para fazer conjuntos, para gravações de discos, para concertos nos teatros, para programas de televisão. Passei a trabalhar com os brasileiros que apareceram com a bossa-nova, quando antes estava muito sozinho, não podia fazer muita música. Passei a fazer parte daquele pessoal”.

Os novos pares na verdade eram antigos e João Donato já conhecia muitos deles. De Tom Jobim, diz que era um “grande amigo”: “Chamava-me para as gravações em que fazia os arranjos. Mesmo no início, ainda eu não sabia música, já me chamava para tocar acordeão”. De Astrud Gilberto, tornou-se diretor musical “quando ela se tornou a garota de Ipanema”, juntando ao piano que ele próprio tocava um contrabaixo e uma bateria. Já sobre João Gilberto, que morreu este verão, recorda “uma pessoa incrível, um grande amigo, uma das pessoas mais queridas que conheci na vida. Tinha as suas particularidades. Não gostava de dar entrevistas, não gostava de sair e de se misturar com as pessoas. Era um estilo de vida, gostava de viver na solidão, mas era uma pessoa maravilhosa, inteligente, amigo. Ajudou-me muito na vida, éramos parecidos”.

O terceiro concerto em Portugal: “Estou muito feliz”

De volta ao Brasil nos anos 1970, começou a cantar naquele que é talvez o seu disco mais ouvido, o manual de bom gosto Quem É Quem, que 46 anos depois continua a soar moderno. Ainda fez mais um disco, Lugar Comum, em 1975, maioritariamente acrescentando letras aos seus antigos temas instrumentais e convidando Caetano Veloso e Gilberto Gil (quase omnipresente no álbum), entre outros, a colaborar.

Com o esquecimento a que foram vetados, em parte mas durante largos anos, a bossa-nova e a geração a que pertenceu (à exceção de alguns músicos), João Donato continuou a fazer o seu percurso como músico alternativo. Passou vários anos sem gravar, mas na segunda metade dos anos 1990 voltou e em força: desde aí tem editado álbuns e compilações a um ritmo impressionante. Fez arranjos, por exemplo, para discos de Gilberto Gil e Gal Costa e os seus temas foram cantados por gente como Chico Buarque, Cazuza ou Arnaldo Antunes, além dos já referidos Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Hoje, os seus dias são passados maioritariamente a “ouvir discos e tocar piano” e sente-se acarinhado mesmo no Brasil, onde teve um início de atividade musical atribulado:

“As pessoas cumprimentam-me e dizem-me que a minha música transmite-lhes paz, que faz muito bem, que tem tranquilidade, nostalgia e melancolia. Gosto disso. Há quem me diga que adormece os filhos com a minha música, é muito bom”.

Esta quarta-feira, João Donato atua pela terceira vez em Portugal — depois de um concerto no Porto há dez anos e um segundo em Lisboa em 2013 —, no clube B.Leza, no Cais do Sodré. Fã de Amália Rodrigues, que sempre o “encantou muito”, João Donato conta que uma das suas filhas “mora em Portugal e trabalha aí como tradutora”. No concerto desta quarta-feira, esperam-se os seus clássicos mas também temas recentes, do disco Donato Elétrico (2016), que lhe valeu uma nomeação para autor de melhor álbum instrumental nos Grammy latinos. “Estou muito feliz, que beleza”. Não estamos todos?