É uma das grandes ironias da era contemporânea: ao mesmo tempo que vivemos o momento, e que temos de partilhar a nossa indignação no exato instante em que algo que desconhecemos por completo acontece, também passamos uma boa parte do nosso tempo a lacrimejar em diferido a morte de um ator de quem recordamos um filme, um escritor de quem lemos um livro (assim meio na diagonal, nas férias) e informamos a nossa prima de Rio Tinto que passam dois anos desde a morte de Prince e eis uma foto minha com um maxi-single de Prince em 1999.

Outras das grandes ironias da nossa era é Grant William McLennan ter morrido a 6 de dezembro de 2006 e nem o facto de a sua morte estar envolvida em mistério fazer dele matéria de nostalgia ou revivalismo – nem sequer nos aniversários do seu passamento. Bom, talvez não seja grande surpresa: em vida, McLennan foi várias vezes descrito como sendo metade da melhor dupla pop desde Lennon & McCartney – mas lugares cimeiros em tabelas de vida para os Go-Betweens (a banda da qual McLennan era metade) é que nem vê-los.

Por alguma razão, a popularidade sempre escapou à dupla australiana – mas isso é aceitável, faz parte do carácter caótico do capitalismo; o que custa mesmo é que neste mundo em que todos têm direito aos seus 15 minutos de fama post-mortem nem a morte nem a nostalgia terem sido capazes de criar uma vaga de amor pró-Go-Betweens.

[“Brisbane in Summer”, o primeiro single de “Inferno”, disco de Robert Forster editado este ano:]

Pior, muito pior: durante muitos anos gostar dos Go-Betweens correspondia a abdicar de qualquer tipo de vitória em concursos de popularidade, mas ao menos concedia-nos aquele estatuto de culto de pessoa de bom gosto, indivíduo que sabe mais da vida que os outros. Os Go-Betweens não vendiam, mas concediam estatuto aos seus seguidores – mas agora nem isso: de banda de culto tornaram-se absolutos e completos desconhecidos. Pior ainda: banda de velhos ou, como se diz hoje, boomers.

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O que torna este o momento perfeito para encetarmos um movimento revivalista dos Go-Betweens, a melhor dupla da história da pop (e sim, estou a dizer que são melhores que os Beatles), mesmo que, como os Spurs na era Pochetino, tenham sido a banda que quase chegou lá: Forster editou novo disco a solo este ano, Inferno, o terceiro após a morte de McLennan (The Evangelist, de 2008, e Songs to Play, de 2015, são os outros) e a digressão de Inferno trá-lo a Portugal para dois concertos: toca esta sexta, dia 22, no Passos Manuel, no Porto, e no sábado, 23, em Lisboa, no Musicbox.

Sejamos sinceros: apesar de Evangelist e Inferno estarem recheados de boas canções à guitarra (“Demon Days” e “From Ghost Town” são duas das minhas canções preferidas de sempre de Forster a solo), o que toda a gente que for aos concertos quer ouvir são as versões dos Go-Betweens. Porque os Go-Betweens definiram uma forma de criar música pop: à guitarra, sim, literata, existencialmente especulativa, graciosa, com refrões grandiosos.

Grant McLennan e Robert Forster em 2000

Robert Forster e Grant McLennan criaram os Go-Betweens em janeiro de 1978, dois anos depois de se conhecerem na universidade de Queensland, na Austrália. Como a simples escolha do nome Go-Betweens indica, eram moços literatos: The Go-Between é o título de um admirável romance de LP Hartley; a versão cinematográfica ficou a cargo do também admirável Joseph Losey.

Forster e McLennan estudavam Artes, com particular ênfase em Literatura. Grant era um menino prodígio que aos 19 anos já estava licenciado – era, também, um fervoroso cinéfilo e chegou a ser crítico de cinema. Forster era um dandy, um flaneur, e os Go-Betweens seriam apenas um entretém, uma forma de passar tempo, já que a lei impedia que McLennan fosse para mestrado antes dos 21 anos.

Esse momento nunca chegaria. Se Grant passava horas no escuro do cinema, Robert perdia-se nos vinis dos Velvet Underground e dos Byrds, a sonhar com um som sedutor e doce como um pôr-de-sol australiano. Em maio de 1978 os Go-Betweens editam o seu primeiro single, Karen, em que já se nota a vertente melódica, de pop nostálgica, que marcaria futuros discos da banda.

Mas o futuro seria menos luzidio – em particular porque a banda emigrou para Londres, à procura de um mercado mais propício ao (enfim) rock. Lá firmaram amizade com o círculo de Nick Cave e o primeiro disco, Send Me a Lullaby, de 1981, denota a marca da new wave e do pós-punk. Ao segundo disco, Before Hollywood, quando Grant deixa o baixo e passa para a guitarra, criam as primeiras canções pop tingidas pela nostalgia – e a primeira canção de génio, Cattle and Cane, um tema evocativo, melancólico, pejado de pesar pela figura do pai de McLennan.

[“Cattle and Cane”:]

McLennan ficara órfão muito cedo – e se a banda sempre cultivou uma aura romântica mas delicada, até anti-rock, a verdade é que não foram exatamente uma dupla pacata: ambos tiveram incursões pela heroína, e Forster contraiu hepatite B; McLennan nunca ultrapassou a dor da infância: espatifou dinheiro e continuava a viver como um estudante universitário – a sua casa era composta de uma cama e estantes com livros, filmes e discos. A heroína manteve-se, de forma irregular, na sua vida até ao fim, quando morreu durante o sono, antes de uma festa, aos 48 anos.

A dor pode fazer parte de um um homem, mas não o define – ouçam a suprema beleza de “Bachelor Kisses”, a faixa de abertura de Spring Hill Fair, de 1984, terceiro disco dos Betweens e primeira obra-prima, repleta de canções espantosas, como “Five Words” ou “Part Company”. Na época chamava-se a isto jangly guitar pop, pop das guitarras gingonas e, Deus, como gingavam estas guitarras.

[“Bachelor Kisses”:]

Os Go-Betweens tinham chegado à maturidade e o disco seguinte, Liberty Belle and the Diamond Express, de 1986, é ainda o meu disco de guitarras preferido (ao lado de The Queen Is Dead, dos Smiths): tudo em Liberty Belle é imaculado, desde a pop de “Spring Rain”, com o seu hammond em fundo, à sumptuosa dor de “Apology Accepted”, possivelmente a segunda canção feminista escrita por um homem na história da pop. A primeira, “Bow Down”, surge três temas antes: um hino à libertação feminina, escrito por Robert Forster, que dizia à ex-namorada (Lindy Morrison, baterista), para nunca se vergar, se tinha de ir embora que fosse, sem pensar duas vezes.

A primeira fase dos Betweens duraria mais dois discos: Tallulah não foi tão bem recebido, mas prefiro-o a 16 Lovers Lane, que contém o único verdadeiro êxito da banda, “Streets of Your Town”, mais um tema evocativo de McLennan. Estávamos em 1988 e a mais bela e inteligente das bandas pop chegava ao fim, sem guito, com doenças indesejáveis e de coração partido. O regresso demoraria 12 anos, mas valeu a pena esperar cada segundo: se alguém algum dia vos perguntar o que significa a palavra “brilho”, encaminhem o perguntador para o refrão de “The Clock”; e se os vossos filhos um dia quiserem saber porque é que a humanidade um dia amou tanto as guitarras, por amor da santa, apontem-lhes “Surfing Magazines” e o seu refrão de da-da-das; e se nos dias mais negros algum de vós precisar de consolo então basta ouvir “When She Sang About Angels”.

[“When She Sang About Angels”:]

Houve mais um par de discos e, por favor, digam-me qual é a banda que ao nono disco abre com três canções tão admiráveis quanto “Here Comes a City”, “Finding You” e “Born to a Family” – ou esqueçam a demanda, porque não irão encontrar. E a 6 de maio de 2006 a eterna inquietação de Grant McLennan chegava ao fim, numa altura em que os Betweens escreviam o décimo disco.

Ao longo da carreira dos Betweens, nunca Forster e McLennan assinaram uma canção a meias – mostravam as canções um ao outro, davam dicas, até podiam cantar uma canção escrita pelo outro, mas não escreviam a meias. Após a morte de McLennan, Forster encontrou três temas que o amigo deixara incompletos, e que pretendia incluir no próximo disco da banda. O que se faz quando se perder o melhor amigo? Forster acabou as canções e editou-as em The Evangelist, o seu regresso aos discos a solo, em 2008.

Na última canção desse disco, “From Ghost Town”, Robert Forster cantava:

“There were hearts, there was help
But he couldn’t love them because he didn’t love himself
(…)

And he knew more than I knew
And I hated what he hated too

This world”

[“From Ghost Town”:]

É uma carta de amor a Grant McLennan, uma carta de despedida pós-despedida. A última palavra que Forster canta é “why?”. Toda a gente perdeu um irmão algures no passado. Estava aqui e de repente, ups… deixou de estar. Mas às vezes basta uma canção para suspender a morte. Hoje os Go-Betweens já não existem e a importância de Robert Forster na atual cultura popular é diminuta. Mas às vezes basta uma canção, um concerto, para suspendermos a descrença e acreditarmos que por uma hora e meia o nosso herói é o herói de todo o povo, é a maior estrela rock do mundo e que nesse momento começa a grande vaga tardia de reconhecimento da melhor banda de guitarras da história.