Seria preciso escavar séculos de inconsciente nacional para perceber o que nos torna um povo tão melindroso com personalidades insolentes, génios furiosos, orgulhosos solitários ou simplesmente pessoas que gostam de andar “por caminhos esconsos”. No documentário que Joana Pontes fez  sobre Jorge de Sena, O Escritor Prodigioso,  o depoimento do artista Fernando Lemos parece tocar no fulcro da questão, designando-o  como  “o nosso complexo de anões”. Anões que não suportam quando alguém “é mais alto” por isso mandam de imediato que se lhe cortem esses centímetros como “se fossem uma excrescência”.

Ora Jorge de Sena tinha esses centímetros a mais não apenas na literatura mas também na academia. Como é dito no mesmo documentário, “Sena tornou Camões vivo para as novas gerações” ou, como ele gostava de dizer, limpou “as cavalariças de Aúgias” dos estudos camonianos até então entregues a uma leitura e interpretação salazaristas, que ainda hoje perduram. Basta ver como os nossos políticos continuam a falar do “Velho do Restelo” como símbolo de conservadorismo, quando esta personagem é a voz mais moderna e lucidamente crítica de toda a epopeia. Tal como, convém recordar, o seu romance Sinais de Fogo foi uma das primeiras obras do século XX a abordar abertamente a homossexualidade ou a fluidez sexual.

Isabel de Sena: “O meu pai não ia sacrificar o espírito crítico para poder voltar a Portugal. Nunca”

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Mas nem a grandeza da sua obra poética, ficcional e académica parecem ter sido suficientes para ter o primeiro ministro António Costa e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa em algum dos eventos comemorativos de decorreram ao longo deste ano, no qual toda a atenção do estado português parece ter sido reservada a Sophia de Mello Breyner. No passado dia 19, a Biblioteca Nacional inaugurou uma exposição cheia de material interessante vindo do espólio de Sena, numa sala exígua e abafada, onde sobressaia a a incoerente humildade do evento face à grandeza do poeta em questão. Deu-se a conhecer a secretária de Estado da Cultura, Ângela Ferreira, mas só a presença do General Ramalho Eanes pareceu emprestar à inauguração alguma dignidade nacional. Eanes, que esteve presente em vários momentos deste centenário, tem mostrado por Sena a mesma admiração e reconhecimento que teve quando, em 1977, o convidou para discursar nas comemorações do 10 de junho. Este gesto de Eanes, então Presidente da República, foi, provavelmente, o único à altura da vida e da obra de Sena, que morreria um ano depois, sem conseguir sequer ser integrado na Faculdade de Letras, ele que já era catedrático na Universidade de Santa Bárbara (Califórnia).

Antologia de textos, poemas e contos organizada por Teresa Carvalho e José Manuel Vasconcelos (Língua Morta)

Falámos com Isabel de Sena que, apesar de tudo, se mostra bastante otimista com a recetividade que encontra hoje em Portugal à obra do seu pai. Afirma que ele teria ficado “comovido” com a homenagem que lhe fez a Cinemateca e ficou esperançosa com o interesse das novas gerações:

“Parece-me que há um grande interesse em lê-lo, em conhecê-lo melhor. Sobretudo em encontrar novas perspetivas sobre a pessoa e a imagem que dele se foi construindo ao longo destes anos, antes e depois da morte dele. Encontro essa curiosidade por saber mais, conhecer melhor entre os jovens com quem tenho tido contacto. Creio que encontram na obra dele, não só na poesia, mas na ficção também, ecos das inquietudes que são as deles e as de todos nós hoje em dia—questões sobre a liberdade (política no sentido mais lato), sobre a formação e espaço de atuação do indivíduo, sobre questões de identidade, formas de intervenção na sociedade e a nossa responsabilidade nela, e isso me anima a continuar a trabalhar para disseminar a obra de Jorge de Sena.”

No meio destas comemorações, sempre algo anémicas para falar de um homem que em Creta “se sentou a tomar café com o Minotauro” e se comparava ao lendário Hércules que a realizar a tarefa impossível de lavar o lixo desviou o curso de um rio, surgiu a antologia Estão Podres as Palavras, organizada pela crítica e ensaísta Teresa Carvalho e pelo poeta e tradutor José Manuel de Vasconcelos, para a editora Língua Morta. Nesta obra, onde se podem ler alguns dos textos e poemas mais polémicos do escritor, encontram-se também coisas pungentes e dolorosas como o conto O Papagaio Verde, um exemplo de como pode ser virtuosa a ficção biográfica, ou a urgentíssima Carta a um Jovem Poeta, há muito não reeditada.

” Que hei-de eu fazer senão comemorar-me a mim mesmo, se não sirvo para as comemorações de ninguém, e às vezes até estrago algumas” [Jorge de Sena]

O Observador pediu então a Teresa Carvalho para nos guiar por esta antologia, da qual só foram feitos 400 exemplares e contou com a ajuda entusiástica de Isabel de Sena.

Jorge de Sena fotografado pelo artista surrealista Fernando Lemos.

Como surge esta antologia “Estão Podres as Palavras”?
A ideia partiu do editor, que conhecia a minha inclinação para Jorge de Sena e alguns dos textos que escrevi sobre ele. É claro que o facto de estarmos em ano de centenário não nos foi indiferente. Mas mais importante que o Centenário, e a fúria comemoracionista que se abateu com o ano quase a terminar, é a visão que o próprio tinha dos centenários e de toda essa categoria de eventos a que chamamos efemérides. É uma visão com a qual nos identificamos. Diz Sena, com muita atualidade, que os centenários e a vida cultural do país são invariavelmente entregues a umas “criaturas operosas”, sempre a organizar, a orquestrar, a arregimentar, a prefaciar, sem as quais os centenários não se comemoram, passariam praticamente em claro, e com as quais eles correm o risco de serem as habituais exibições da “suficiência inócua”. Esta é uma expressão de antologia!, e por isso a incluímos no livro (risos). Ora nada mais arriscado que confiarmos em criaturas que, de um modo geral, estarão menos interessadas em lê-lo, estudá-lo, em compreendê-lo que em tê-lo por conta, avizinhar-se e suster-se nele. Passado o centenário, tudo como dantes quartel general em Abrantes. É o próprio quem o diz.

É também um manifesto contra “convencionalismo” das comemorações do centenário doe um escritor tão pouco convencional?
Logo a partir do título, que se insurge contra os gastadores, os apodrecedores das palavras. “Convencional”, “amorfa” — aqui temos dois adjetivos que a gramática de Sena pontapeou para bem longe. Bem lhe valeu! Eu não estive, naturalmente, em todas as sessões que lhe foram dedicadas, mas conheço alguma coisa sobre literatura de colóquios e congressos… O suficiente para saber que há um desfile departamentado de sabenças (Sena-poeta, Sena-camonista, Sena-brasileirista…) onde tudo é recebido sem grandes objeções. Que há  “comunicações” que não comunicam coisa nenhuma, são antes exercícios de maçadoria. Que há aplausos a intervalos regulares que têm dupla função: encher  o ego de um e servir de despertador a muitos. Depois, há repastos, partituras de talheres. De um modo geral, é aqui que começa a animação. A expressão dos que assistem, muitas vezes com pachorra bucólica, diria o resto. Sempre mais do mesmo e tudo coisas que não vão com um autor que a tudo se dedicava com turbulência perspicaz, com  intensidade apaixonada. E foi aqui que quisemos pôr a tónica: intensidade apaixonada em vez da banalidade costumada; reflexão em vez de reverência e consenso sepulcral. Modos diretos, sem-cerimónias, em lugar do protocolo cultural e do hábito incontinente da palavra oca, podre, desacreditada.

Que critérios tiveram em conta para a escolha dos textos? O que é que este livro traz de novo?
Procurámos que este livro fosse o espelho de um carácter e de um projeto de sentido de ressonância cívica e ética. Se há palavra que pode ser colocada no centro da sua obra essa palavra é “dignidade”. Uma boa parte dos textos que a antologia integra seria porventura aquela a que as homenagens, chamemos-lhe clássicas, mais aconselhariam a deixar de fora, textos que não são de bom tom nestas horas, textos que desconvêm aos estrategas das letras: destapam carecas, deixam adivinhar esquemas, jogos de cavilhas. Por outro lado, e tanto quanto possível, procurámos não incluir aqui aquela meia dúzia – ou um pouco mais – de divulgadíssimos poemas que circulam nas redes sociais e compõem  o que constituirá a única e curtíssima antologia de Sena  que o leitor comum conhece.

“Eu sou daquela espécie de quem se diz depois da morte:

– A sua melhor obra foi morrer.” [Jorge de Sena]

O livro mostra a amplitude da escrita de Jorge de Sena, não se resumindo a alguns poemas sarcásticos ou boutades. O que é que Portugal ainda não percebeu sobre a importância deste escritor?
Esta antologia, embora destine um espaço generoso à faceta mais azedamente sarcástica de Sena — abre bastante o leque: a relação mantida com as artes (a pintura, a música, o cinema), a ficção, teatro, textos ideológicos, crónica. E  inclui  textos que há muito não eram reeditados, como é o caso de “Carta a um jovem poeta”, cujos conselhos não são nada fáceis de seguir por exigirem práticas ao alcance de poucos, ou essa peça assombrosa e divertida (para quem a souber ler) que é o prefácio às “Quibíricas”, de Grabato Dias. Sena é um escritor inteiro e que surge num momento em que muitos se perguntavam já: e depois de Pessoa? Depois de Pessoa, Sena; depois do fingimento poético, o testemunho do mundo que nos cerca.

Jorge de Sena. O homem que queria ser tudo

Mais de 40 anos depois da sua morte em que pé está a relação de Portugal com Sena?
Parece-me que é uma relação que se baseia hoje nas artes do fingimento: Portugal finge que está tudo bem, que se reconciliou com Sena, que lhe perdoou os reparos, as críticas contundentes, que esqueceu os modos descompostos, azedos, as inconfidências, o sarcasmo impenitente, a inteligência devastadora, a independência, a grande sombra que a sua figura deitou e até o toque de megalomania ou a postura vertical e orgulhosa, essa  forma lúcida de quem é grande se reconhecer quem é. Lê-se-lhe hoje um poema como “No País dos Sacanas” e Portugal até lhe encontra alguma graça, como se a poesia de Sena não tivesse mais caminho a fazer, como se este  poema fosse um mero efeito de estilo, como se não fixasse novos alvos — a atraírem como um íman. O mesmo se passa com o poema “Provavelmente” e outros que atacam o meio literário.

Estará ele destinado a ser sempre um escritor só para uns quantos privilegiados?
Jorge de Sena, desde os seus começos poéticos, nunca foi um escritor de muitos, bem ao contrário. Eu sei que se escreveu que há inúmeras expressões (incluindo, curiosamente, a que dá título a esta antologia), saídas do campo poético de Sena, “a correrem livremente de boca em boca”. Mas de que bocas falamos? Das do meio literário, das bocas da nossa Academia, cheias de trejeitos citacionistas, as mesmas bocas que se elogiam e se mordem?

As novas gerações estão a descobrir Jorge de Sena?
Creio que para as novas gerações Jorge de Sena é praticamente um desconhecido, mas está nisto muito e bem acompanhado: Nemésio, Ruy Belo, para citar apenas dois nomes grandes da nossa poesia portuguesa do século XX. Os jovens estão desconfiados de que a literatura, e a poesia em particular, é uma grande estopada. Os que de quando em vez põem o pé nos colóquios veem muitas vezes estas suas suspeitas confirmadas. É preciso dizer-lhes que a poesia de Sena, cheia de lances narrativos, não tem música para adormecer nem é uma coisa desligada do mundo. Muito ao contrário.

Na obra de JS as pessoas continuam a ler amargura e ressentimento onde há sobretudo inteligência, espírito crítico e riso?
Há zonas da obra de Sena onde a amargura e o ressentimento estão bem à mostra. A questão é que ele os transforma em literatura. Nele, o sarcasmo mais feroz, a indignação que acusa e e despejada com intensidade furiosa, é ainda uma forma superior de expressão literária. O que não é muito comum. Veja-se, por exemplo, o Camilo do sarcasmo polemista, resvala quase sempre para a grosseria e não dignifica a sua obra de romancista.

” Esclareça-se: uma coisa é a literatura comprometida

ou não

e outra coisa é a literocambada,

ou seja uma pandilha ou várias

assaltando à naifa e gritos de bolsa ou a vida…”

[Jorge de Sena]

Porque é que continua a ser quase apagado como poeta e amplamente silenciado nos seus estudos sobre Camões?
Antes de mais, que  para Jorge de Sena não há posteridade possível nem panteões. Os seus leitores mais constantes sabem que ele não aceita que a obra, que é o espelho do seu carácter, seja menos que o homem. Sena não é o poeta, o ensaísta, o ficcionista, o camonista e por aí fora. Sena, que é de uma abrangência e de uma inteireza totais, é tudo isso. Não é seccionável, não se pode cortar e servir à posta, é uma espécie de mistura transbordante. E, também por isso, não é um autor cujo retrato se contemple, como é por exemplo o de Sophia. E verificámos isto mesmo por estes dias, em que se notou que o país não estava preparado para o centenário de Sena, como se nos tivesse apanhado desprevenidos. Ele não aceita a convenção, a artificialidade nem as tentativas de captura: não se deixa fixar, extravasa das molduras. O seu retrato mostra-nos a fuga. Ora, a posteridade precisa de retratos.

Por outro lado, a sua obra funciona como uma espécie de cursor no tempo, desliza para trás e para a frente, girando em todas as direções. Não é por acaso que ele inaugura nos estudos camonianos uma moderna corrente que pretende pôr fim ao “pastelão patriótico-clássico” em que Camões estava transformado. Sena dispôs-se a desalojar Camões do pedestal mítico onde se encontrava respaldado num plano de grandeza estereotipada e de intocabilidade. E nem o único teto que a lenda lhe deu escapou. Tirou-o de uma  gruta onde não cabia sequer um anão. Ofereceu-nos um Camões nas suas fraquezas de homem comum, nas suas prosaicas produções, ao alcance de um qualquer Luís.

O meio literário continua a ser dominado por aquilo que ele, com muita graça, chamava de “literocambada”?
Pois, não há como negar. E continua a ostentar pequenas publicações, participações em festivais – hoje eu no Barlavento, amanhã tu no Alto-Douro –, prémios, títulos, representações em pipas e pipas de antologias como quem exibe um casaco de bom corte ou um penduricalho pouco visto. A “literocambada”, ontem como hoje, preza a hierarquia e a ordem que a sustenta e dificilmente se ascende ao topo  sem as roldanas da troca de favores. E continua hierarquizada em graus que descem do associado, o agrupado ou o direto servidor até aos Jeremias, sempre de mãos estendidas, que procuram não perder o direito à sua meia dúzia de linhas de prosa de jornal  distribuída ao ritmo das estações. Quando vão a ver, é a desilusão: a prosa que lhes cabe, tantas vezes pejada de qualificativos piedosos, poderia servir a mais uns quantos. Eu diria que a literocambada se uniu e multiplicou. Está de pedra e cal. Não há picareta que a abale.