Está na altura da listagem anual dos álbuns mais vendidos, tabela a que a indústria discográfica nos habitou relativo ao processo arcaico de compra e venda que está definitivamente em vias de extinção. Hoje os álbuns são moldados à natureza volátil das plataformas de streaming, superados em protagonismo pelas canções avulsas. E segundo o Top 200 das canções mais ouvidas em Portugal no Spotify, disponibilizado diariamente e semanalmente pelo empresa desde o início de 2017, está prestes a terminar um ano que pode ser lembrado como um marco.
Em 2019, 47% do Top 10 semanal, ao longo do ano, foi composto por canções nacionais, um crescimento exponencial que atinge um zénite inaudito nesta época do streaming, a condizer com a proliferação e estabilização do hip hop português como a nova canção de massas. Em 2018, esta taxa estava nos 11% e em 2017 era de 3%. Esta revelação e a restante informação que detalhamos abaixo é sempre baseada numa depuração analítica dos dados públicos do Spotify referentes a Portugal, baseados nos dez lugares cimeiros que a plataforma disponibiliza semanalmente, parte do mais alargado Top 200.
Apesar de tanto a Apple Music como o Youtube — que revelou recentemente a sua lista dos vídeos e canções mais populares em Portugal — atualizarem diariamente as canções com mais rotação, somente o Spotify disponibiliza métricas ao longo do ano, que permitem, com a devida paciência, desbravar conclusões. No decorrer de 2019, debaixo dos nossos narizes, através das plataformas de streaming, aconteceu uma revolução no consumo de música portuguesa.
[“Señorita”, de Shawn Mendes, com Camila Cabello:]
O primeiro ponto fundamental nesta análise é entender a natureza das plataformas de streaming. Um argumento válido é que estas plataformas refletem um mercado essencialmente jovem, o que tem sido comprovado em sucessivos estudos de mercado. Porém, esta geração que representa a maior parte dos ouvintes das plataformas de streaming — entre os 18 e 34 anos segundo o Statista — é a mesma faixa etária que construiu a indústria musical desde a década de 50, que comprou CDs, cassetes e singles, e agora, ao invés de deixar um disco girar até à deterioração do material, carregam na tela do telemóvel, no botão do repeat. O que estas plataformas permitem é, pela primeira vez, contabilizar ao certo quantas vezes uma música rodou nos nossos ouvidos, em vez de, como antigamente, a quantidade de vezes que certo objeto foi adquirido. Numa época que os números governam as nossas vidas, desde os algoritmos das redes sociais ao ministro das Finanças, não existe melhor forma de compreender ao certo o que realmente ouve a maioria dos portugueses.
O que ouviram os portugueses em 2019
Em 2019, a canção de veraneio “Señorita”, de Shawn Mendes e Camila Cabello, é a grande recordista de semanas seguidas a liderar o Top 200 do Spotify em Portugal — 10 semanas, destronada apenas no início de setembro pela portuguesa Nenny. Aos 17 anos, esta miúda com um flow de gente grande — “Nenny vai calma, esse flow é arma” — é a artista mais jovem a liderar a tabela.
Depois de “Señorita”, os Wet Bed Gang, recorrentes nas listas recentes de popularidade, estiveram 9 semanas seguidas no primeiro lugar com “Bairro”, não que isso os impressione especialmente: “Eu não gosto de fama, não quis aparecer, eu não quero esse brilho”. Segundo o Youtube, “Bairro” é inclusive o segundo vídeo musical mais visualizado em Portugal. As outras duas canções que se destacaram pela longevidade na liderança são “7 rings”, da inevitável Ariana Grande (5 semanas) e, claro, um trap imenso que sempre esteve na corrida, todos os dias, sem se cansar, que “tava na ponta, passou pelo meio” e liderou durante cinco inebriantes semanas: “Tou Bem (feat. Lhast)” de ProfJam:
Não lhe peçam para abrandar — “Eles dizem calma, calma, calma”, a ode que benevolentemente podemos considerar que é uma metáfora para a sua inquietação de espírito, é mesmo a canção mais ouvida este ano em Portugal — 7 milhões e 469 mil audições. De seguida está a banda de Vialonga com “Bairro” — 7 milhões e 401 mil, e “Meu Deus” de Plutónio — 5 milhões e 785 mil, uma balada extremamente perspicaz, conseguindo com uma melodia mínima, uma linha de guitarra morna, embalar-nos para dentro desta “zona” desolada, de confrontos com a autoridade, sem comida no prato, sem propósito, um sorriso sempre pela metade. Ao contrário daquilo que o seu mediatismo sugere, Billie Eilish nunca conseguiu liderar o Top português. No entanto, a permanência estável de “bad guy” ao longo do ano deu-lhe a terceira canção mais ouvida pelos portugueses nesta plataforma.
Por ordem, as dez músicas mais ouvidas pelos portugueses em 2019 no Spotify até à data de hoje:
- “Tou Bem (feat. Lhast)” de ProfJam – 7 milhões e 469 mil
- “Bairro” de Wet Bed Gang – 7 milhões e 401 mil
- “Meu Deus” de Plutónio – 5 milhões e 785 mil
- “bad guy” de Billie Eilish – 5 milhões e 305 mil
- “1 de Abril” de Plutónio – 5 milhões e 284 mil
- “Señorita” de Shawn Mendes e Camila Cabello – 5 milhões e 151 mil
- “Sentimento Safari” de Julinho Ksd – 5 milhões e 50 mil
- “Without Me” de Halsey – 4 milhões e 857 mil
- “À Vontade” de Profjam – 4 milhões e 591 mil
- “7 rings” de Ariana Grande – 4 milhões e 410 mil
(números arredondados)
Após conhecer as dez canções mais ouvidas em Portugal, é facilmente percetível que existe um género musical que se sobrepõe aos restantes: o hip hop. Mas antes de detalharmos o gosto musical português, convém sublinhar que as linhas que definem o género estão cada vez mais diluídas, mais incertas, sem verdades absolutas. Segundo os grandes sucessos globais do ano, a pop em 2019 aparenta ser uma miscelânea de reggaeton, dancehall e hip hop, desde “I Don’t Care” a “Con Calma”. Ou será que a vaga vigente de hip hop melódico é o novo pop? E o termo hip hop ainda faz sentido? Drake, Post Malone e, por exemplo, “Gravidade” de Dillaz, é hip hop? Independentemente das considerações que tenhamos sobre a mutação do género musical, para este objetivo analítico, baseamo-nos nas definições canónicas de estilos de música.
É incontestável que os portugueses no Spotify ouvem mais hip hop que qualquer outro género musical, representando 60% do Top 10 semanal do Spotify em 2019. A pop, desde a EDM às grandes baladas, representa 25%, enquanto o reggaeton e declinações variantes da América Central e Latina é conta 8%. Os restantes 7% são exclusividade do ritmo mais quente abaixo do Equador: o funk. Em comparação com o resto do mundo, uma das particularidades do consumo musical em Portugal é a presença constante de canções brasileiras. Recentemente, também baseado nos dados do Spotify, a Folha de São Paulo analisou a exportação da música brasileira, considerando que apesar do domínio do sertanejo no mercado interno, o funk é o género mais exportável, sendo Portugal o melhor exemplo desta exportação, equiparado somente com o vizinho Paraguai. Segundo o Youtube, o vídeo musical mais visto em Portugal foi mesmo “Terremoto” de Anitta e Kevinho, enquanto o funk mais bem sucedido no Spotify foi “Agora é Tudo Meu” de Dennis DJ (e Kevinho, outra vez) — 4 milhões e 285 mil audições.
A principal revelação dos dados da plataforma, como indicado no início deste artigo, é a preponderância de música nacional no Top 10, 47%. Os EUA são a segunda nacionalidade mais presente, com 27%, seguido do Brasil, 7%, Porto Rico, com 4,5%, Inglaterra e Canadá, ambos nos 4%, Angola, 2%, França a conseguir 1,5%, Austrália com 1% e 2% para outros países. Deduz-se rapidamente que, com a preponderância de música nacional e do hip hop, o ano de 2019 foi absolutamente dominado pelo hip hop tuga. Se é natural os artistas portugueses terem enveredado, assim como no resto do planeta, pelo hip hop que descrevemos aqui como melódico — trap mais cantado que rapado — é especialmente surpreendente a integração progressiva destas melodias aos ritmos e batidas africanas. Esta é também uma tendência em outros pontos do globo, como Inglaterra a França, que em Portugal foi representada sobretudo pela figura sorridente, e canções envolventes, de Julinho Ksd:
No final de setembro, o Top 10 semanal do Spotify, pela primeira vez, contava com oito portugueses, liderado por “Vivi Good” de Julinho Ksd. Em 2019, nenhum artista internacional conseguiu uma sequência de sucessos como Plutónio, Wet Bed Gang, Julinho Ksd, e Slow J. A expectativa perante o novo álbum do Slow J foi de tal forma que quatro canções entram automaticamente no Top 10, e as restantes na tabela alargada. Em outubro, novamente oito portugueses no Top 10, e novamente liderados por Julinho Ksd, desta vez “Hoji N’ka ta Rola”. Neste momento, a presença de portugueses continua em crescendo. Nas últimas três semanas estiveram sempre oito artistas de hip hop tuga nos lugares cimeiros, agora liderados por “Louco” de Piruka. Portugueses ou norte-americanos, outra preponderância é a supremacia de artistas solo masculinos. No total, ouvimos mais artistas solo (88%) do que bandas (12%). E apesar do recorrente featuring, isto é, de convidar um colega para cantar, esta prática representa somente 33%. O dado mais alarmante é a diferença abismal entre a quantidade de homens e mulheres que chegam ao Top 10 português do Spotify: 79% são homens, 21% são mulheres.
O que isto tudo significa?
O Spotify também revelou as músicas e artistas mais ouvidos globalmente em 2019. Post Malone foi o artista mais ouvido em 2019 — 6,5 mil milhões de streams, seguido de Billie Eilish, Ariana Grande, Ed Sheeran e Bad Bunny. No ano passado o top era dominado por homens e pelo hip hop — Drake, Post Malone e XXXTentacion, o que se enquadra mais ao cenário português de 2019, onde o hip hop é a principal música de massas, e as canções de sucesso são dominadas pelos homens. Além disso, no ano passado, segundo estes dados globais, J Balvin, Ozuna e Bad Bunny estavam no Top 10, sendo que Bad Bunny conseguiu repetir a proeza em 2019. Ou seja, a presença em Portugal de artistas de Porto Rico e do reggaeton é sintomática de uma tendência global.
[“Sunflower”, de Post Malone, o artista mais ouvido no Spotify em 2019:]
Analisando ainda os dados globais da plataforma, “Señorita” é mesmo a canção mais ouvida do ano, seguido de “bad guy”, “Sunflower”, “7 rings” e “Old Town Road – Remix”. No verão, o Spotify já tinham revelado outros sucessos do Top 10 global, como “I Don’t Care”, “Beautiful People”, “Goodbyes”, “Ransom” e “Loco Contigo” — canções que foram sucessivamente ouvidas em Portugal. De certa forma, Portugal acompanha os sucessos do resto do mundo. Por outro lado, os números não mentem, é especialmente relevante que Billie Elish não tenha conseguido liderar em Portugal, e muito menos Post Malone que teve um impacto muito reduzido por aqui, apesar de ser o artista mais tocado globalmente em 2019.
A análise às canções mais tocadas em Portugal comprova que existe um desfasamento entre o mediatismo e a quantidade de vezes que realmente alguém ouviu a música. Se analisarmos por exemplo o top que a Blitz divulga em parceria com a Cision, que analisa a presença dos artistas nos meios de comunicação em Portugal, seria de esperar que os artistas portugueses mais ouvidos do ano fossem Conan Osiris, Salvador Sobral, António Zambujo ou Carolina Deslandes. Porém, estes artistas estão muito distantes dos lugares cimeiros. Por outro lado, a internet move-se de forma mais veloz que os outros meios. No ano passado, Carolina Deslandes estava entre os artistas portugueses mais ouvidos, sendo parte da representação tímida de músicas nacionais nos lugares cimeiros da plataforma (11%), em comparação com os 47% deste ano.
O dado mais relevante a retirar desta história é que os portugueses ouvem cada vez mais música portuguesa, sobretudo hip hop. Hoje o hip hop tuga é líder absoluto de audiências. Em 2017, os 3% de música nacional no Top 10 do Spotify eram maioritariamente devidos aos fenómenos Salvador Sobral e Piruka, enquanto no ano seguinte, os 11% estavam repartidos entre uma maior diversidade de artistas, liderados por Wet Bed Gang e Blaya. Neste ano assistimos a uma explosão de consumo de música nacional, não existem propriamente fenómenos pontuais, mas uma indústria prolífera de hip hop a operar das margens, desde os concelhos de Vila Franca de Xira (Wet Bed Gang e Nenny) a Cascais (Plutónio, Piruka).
Por fim, a desigualdade alarmante entre homens e mulheres no Top 10 português do Spotify — 79% homens e 21% mulheres — será uma consequência do domínio do hip hop, normalmente associado a artistas masculinos? Globalmente, Billie Eilish e Ariana Grande só foram superadas por Post Malone. Porém, o nosso consumo de música não foi dominado pelas estrelas pop, mas sim por artistas masculinos do hip hop tuga. Se compararmos com o ano passado, a clivagem era um pouco menor: 68% homens; 32% mulheres. Mas este não é um fenómeno exclusivo de Portugal. No ano passado, quando o Spotify revelou os artistas mais tocadas da história da plataforma, noticiou-se de imediato que existiam apenas 2 mulheres entre os 10 artistas mais populares do mundo. Em Portugal, se mantivermos esta tendência de consumo massivo de hip hop nacional, a nossa melhor aposta para derrubar esta desigualdade é apoiar jovens mulheres como Nenny, que no último single, “21”, deixou-nos a dica: “Nigga eu vim partir muros sem ferramentas”.