Há atos que definem um homem, como quando a 7 de novembro de 1991 David Stern, então comissioner da NBA voou de Nova Iorque para Los Angeles e sentou-se ao lado de Magic Johnson na conferência de imprensa que a então maior estrela do basquetebol americano deu para anunciar ao mundo que havia contraído VIH.
Sabemos como a história não acabou: Magic Johnson, ao contrário do que se previa, não morreu. Mas naquela altura todos pensámos que esse seria o seu destino – e que este chegaria depressa. Por esses dias, o VIH equivalia à sida, a doença que matava os homossexuais. Magic não teve de lutar apenas contra uma doença que ainda era, à data, terrível (e possivelmente uma certidão de óbito à espera de acontecer); também teve de lutar contra o preconceito e o medo: no imaginário popular apanhava-se sida só de respirar o mesmo ar que um infetado.
Mas Stern fez aquilo que não se esperava de um responsável por um negócio de milhares de milhões que se baseia, antes de mais, no entretenimento para a família: ficou ao lado da sua estrela e amigo. Mais: informou-se acerca da doença e, contra os preconceitos da época, o público e alguns jogadores, defendeu o direito de Magic a continuar a driblar, pavilhões fora. E Magic continuou e ainda representou os EUA nas Olímpiadas de 1992 – uma equipa que ficou conhecida por Dream Team.
[a conferência de imprensa de Magic Johnson em 1991:]
Que mais não fosse, só este ato de humanidade e luta contra o preconceito teria valido a David Stern, que morreu ontem aos 77 anos de idade, na sequência de uma hemorragia cerebral. Mas ele fez ainda mais: mudou a NBA para sempre, tornou-o um espectáculo de massas, uma fonte inesgotável de alegria.
A forma mais simples de explicar a influência de Stern é recorrer a símbolos óbvios: toda a gente conhece o logo da NBA, toda a gente conhece a imagem de Jordan de braço esticado a fundar, com as pernas abertas – mas quase ninguém sabe a quem se referem as imagens e o que simbolizam. A primeira é uma referência ao grande Jerry West, no seu movimento elegante de drible – sendo que quando Stern pegou na NBA a elegância não era a característica que a popularizava, antes os espectáculos de violência que não raro a agraciavam; e a segunda é o mais famoso movimento de Jordan no concurso de afundanços do fim-de-semana de All-Star, uma das medidas que Stern implementou para mudar o destino da NBA.
Dizer que Stern mudou a NBA é incorrer numa extraordinariamente excessiva forma de eufemismo. Posto de forma simples: não havia nada semelhante à atual NBA em 1984, não havia nenhum LeBron, nenhum Steph, nenhum Doncic. Não era sequer certo, em 1984, que houvesse NBA hoje, tantos eram os problemas que assolavam uma liga em queda de popularidade.
Basta dizer isto: em 1984 a NBA era transmitida com tape delay – isto é, o sinal chegava às pessoas segundos depois do real, de modo a poder censurar-se (indo para intervalo, por exemplo) as constantes cenas de pancadaria que assolavam uma liga de péssima imagem, constantemente envolvida em escândalos, como o de uso drogas (acima de tudo cocaína) por parte dos seus jogadores.
A tarefa de Stern era, antes de mais, limpar a imagem da NBA, torná-la civilizada – no fundo, consumível. O que para Stern implicava ajudar à criação de estrelas que as pessoas pudessem admirar, a que os miúdos pudessem aspirar. Desde cedo Stern apoio figuras como Larry Bird, Magic e Jordan; quando Bird e Magic dividiam os títulos, Stern passava para os media a ideia da batalha entre o branco metódico e o negro genial, entre os valores de trabalho de Boston e o espectáculo de Los Angeles. Stern era um bom homem, preocupado com o bem estar dos seus atletas – mas era, também, um supremo vendedor.
[documentário sobre Magic Johnson/Larry Bird:]
E um supremo aplicador de multas: Mark Cuban, o dono dos Mavericks, largou cerca de dois milhões de dólares para pagar multas que lhe eram aplicadas por discutir com os árbitros. Para Stern era fundamental que os espectadores em casa pudessem assistir um jogo em casa sem se preocuparem se os filhos estariam a ser expostos a um espectáculo degradante. As idas das estrelas às escolas, para espalhar a mensagem do desporto e do coletivo, também começaram no reinado de Stern, e serviram não só para limpar a imagem da NBA, como para criar a ideia comunidade. Quando hoje vemos LeBron a construir pavilhões e hospitais na sua terra natal – esses foram os valores pelos quais Stern lutou.
Para a expansão da marca foi essencial a venda de direitos televisivos para o estrangeiro – que fizeram de Magic e Bird estrelas mundiais. E, quando o mundo já estava atento, explodiu Jordan, o mais talentoso desde Doctor J, lindíssimo, esguio, sublime. Até hoje não é certo quem fez mais pela NBA, se Jordan ou se Stern. Jordan era o génio supremo, o melhor jogador da história desde Doctor J – mas ninguém saberia quem era Jordan, ninguém compraria um par de Air Jordan se não fosse Stern.
Advogado de profissão, Stern não foi apenas um homem das luzes da ribalta, preocupado com a imagem exterior (como as cores com que os pavilhões eram pintados, a iluminação dos mesmos ou até o número de câmaras usadas para filmar os jogos). Algumas das suas medidas mudaram por completo o desporto, mesmo que na altura tivessem sido polémicas. Foi acusado de socialismo quando, em 1983, numa altura em que ainda não era comissioner (uma espécie de CEO) negociou o primeiro teto salarial da NBA, que impunha limites aos salários dos jogadores e orçamentos das equipas mas, em contrapartida, oferecia aos jogadores uma redistribuição dos lucros.
Temeu-se o pior mas Stern tinha razão: não só o limite salarial salvou a NBA da ruína, como tornou a liga mais competitiva; mais ainda, teve um profundo impacto nas atitudes dos joadores: o ser humano quando tem oportunidade de ganhar mais dinheiro tende a melhorar. Os jogadores tornaram-se mais limpos, começaram a participar em eventos publicitários, humanitários e, até, como as atitudes de LeBron demonstram, a dar de facto de volta à comunidade. É que se antes viam o básquete como um escape à miséria, a partir do momento em que puderam pôr as mãos nos lucros da empresa NBA tornaram-se verdadeiramente ricos. Redistribuir compensa.
Os embates entre Bird e Magic foram os primeiros momentos de grande visibilidade mundial da NBA, bem como a subsequente ascensão de Jordan – mas o momento em que a NBA explode é mesmo com o Dream Team de 1992, que junta na mesma equipa Bird, Magic e Jordan. E Stern conseguiu reuni-los contra a vontade dos donos das equipas, que temiam que os jogadores se lesionassem. Só que Stern viu nessa uma gigantesca oportunidade publicitária – e, como sempre, tinha razão.
[documentário sobre a Dream Team da NBA de 1992:]
https://www.youtube.com/watch?v=mdM049s3Md0
A publicidade não é nada se não nos fizer sonhar. Como um miúdo nascido em 1975 numa terra de básquete (Ovar), a transmissão dos jogos da NBA (ou, naquela altura, a venda dos compactos) mudou a minha vida: fez-me acreditar em gente que supera, gente que acredita na sua equipa e na comunidade. Vi a Ovarense vencer o colosso Benfica de Carlos Lisboa – mas via negros e brancos abraçarem-se no fim de finais da NBA e isso foi tão importante. Todos sonhávamos ser Jordan, Shawn Kemp, John Sotckton – não fomos, mas seríamos piores pessoas sem o exemplo de superação e de crença na comunidade que a NBA, de forma sincera ou cínica, publicitava.
Stern defendeu quem tinha VIH e quem era gay e quem era negro. Mudou as regras para proteger os artistas, baniu os viciados em drogas e mudou a imagem da NBA para sempre. Podem ser valores aborrecidos no mundo do rock’n’roll ou da alta finança – mas para todos os miúdos de terras pequenas deste mundo, todos os miúdos pobres que cresceram sem qualquer futuro que o de caixa de supermercado, ele fez uma coisa inacreditável: fez-nos sonhar.