Madonna não precisa de conquistar ninguém, isso já não é objetivo. Conquistados já os fã estão, há muito, antes desta digressão, antes deste novo disco, antes até de saberem que ambas as coisas estavam a caminho. Madonna é a monarca que inspirou todas as que lhe seguiram com ambições de herdar um lugar na realeza da pop. Por isso faz o que quer: a vida como quer, os discos como bem entende, as digressões como as deseja. Mais de 30 anos depois de tours em arenas e estádios e outros latifúndios, ei-la em pequenas salas, como o Coliseu dos Recreios, em Lisboa (“a minha segunda casa”, confessa, para emoção de muito local) para poder receber os que a adoram com todas as regalias de quem sabe e pode acolher bem. Claro que os bilhetes são caros. It’s Madonna, bitches, não há volta a dar.
Não são permitidos telefones na sala, não há fotografias, vídeos, gravações, nada. Fotógrafo? Só o oficial. Quem quer vê-la, é ali, no palco, entre os fãs. No habitat natural da mulher que, na verdade, tem mais habitats do que é possível contar com os dedos das duas mãos. Madonna já foi tudo, mais o que é agora e que ainda não tinha sido. Diz-se e mostra-se em palco guerreira, agente secreta, semi-fadista pelo menos em espírito, feminista, ativista, política, dona e patroa das coisas em geral, cantora, guitarrista, dançarina, conversadora e quase humorista, senhora dona Madonna de 61 anos. Idade que para um comum mortal nunca bastaria para juntar tanta coisa no mesmo sítio, na mesma experiência e numa só voz.
[Ao lado de Dino D’Santiago, Madonna canta “Sodade” em Lisboa]
Os concertos da tour Madame X acontecem em espaços mais pequenos, mas o que se vê no palco não é minimalista, não é uma redução nas ambições de performance da artista. Bem pelo contrário. No mais recente disco, Madonna tem sexo e religião, tem mudança, tecnologia, política e como tudo isto vai e está a afetar a vida de todos. Como é que se transforma este novelo num espectáculo mais pequeno? Não transforma. Porque não é necessariamente mais pequeno. Madonna não tem jeito para downgrades desses. O espaço é menor que o habitual, mas com mais latitudes do que é normal para os limites em questão.
“Não queria ecrãs a separar-nos”
Antes do concerto começar, houve o que de melhor pode haver antes de um concerto de Madonna: mais Madonna. Com Gaspar Varela e Miroca Paris a dar a volta a uns quantos clássicos da americana, enrolados em fado e morna e outras coisas menos tradicionais, para aquecer uma sala que não esgotou, mas que estava lá perto. E é bom de ver como os fãs de Madonna são uma grande comunidade feliz e em sintonia, muito mais quando não há telefones como companhia antes da festa. Era vê-los a falar, a aplaudir, a gritar e a cantar, como fazem as pessoas umas com as outras. Bem bonito.
Ainda os telemóveis, que estavam com os respetivos donos mas numas bolsas fechadas que só voltaram a ser abertas à saída do Coliseu: como eram poucos os de relógio no pulso, quase ninguém via as horas. Vai daqui uma jura que o concerto começou atrasado, mas isso também não importa nada. Foram duas horas e quase meia, mais coisa menos coisa, e é essa contagem que vai ficar na história.
Começa o circo: palavras de James Baldwin no ecrã gigante (e era mesmo grande, o sacana). “This is your wake up call”, diz Madonna. “God Control”, disco sound coreografado ao detalhe, é como ver um teledisco em carne e osso e é ótimo. Festa no palco, mas a loucura das armas e seus perigos na letra não é engano, é ironia da boa. O público na mão. Está feito, já não saem mais dali.
A noite é quase toda assim, um misto de festa techno e de mensagens políticas e sociais. Com o foco apontado de forma evidente nas canções do álbum Madame X, mas com boa mão na hora de encaixar temas de outros tempos. Não muitas, é certo, mas bem trabalhadas. “Human Nature” (enorme cantiga) grita “express yourself, don’t repress yourself”, com direito a um pino com espargata incluída que terá deixado muitos a pensar na flexibilidade dos membros depois dos 60; “Vogue”, tal e qual como sempre a conhecemos, a lembrar que não importa “if you’re a boy or a girl”; “Future”, a versão Madonna das coisas que por estes dias fazem o cruzamento R&B-hip-hop-trap-etc, acompanhada por imagens que dizem algo “rapaziada, se não tomam cuidado acabam com isto tudo e não há outro mundo”. E a última, “I Rise”, com saída pelo centro da sala, fãs perdidos a tentar perceber como poderiam tocar na diva e outros em êxtase porque conseguiram-no. Abençoados sejam.
“Finalmente estou num sítio onde não preciso explicar o que é o fado”
Portugal e Cabo Verde aparecem no miolo da noite. Madonna, conversadora nata, com um timing humorístico que sim senhora, conta a história da sua aterragem em Lisboa, de como veio porque o filho vinha jogar para o Benfica, mas, de repente, “futebol, andar a cavalo na Comporta, bacalhau e vinho do Porto” não lhe chegavam. Aparece a única amiga na cidade, diz-lhe que assim não dá, sai de casa, conhece gente, Celeste Rodrigues, Dino D’Santiago, bota os ouvidos no fado, na morna, gosta de tudo, gosta de todos, começa a trabalhar um disco novo, atira para uma espécie de bimby da pop o que foi ouvindo (que chegou até ao reggaeton) e agora em palco agradece.
Canta um fado com Gaspar Varela (não é fadista, mas é Madonna a cantar o fado e isso vale) e canta “Sodade” de Cesária Évora. Momento que, escreva-se aqui, foi roubado pelo mesmo Dino que lhe ensinou a cantar o clássico da velha Cize. O homem D’Santiago e a sua voz assombrosa. Se há adjetivo é de usar, estamos de acordo. Demasiado forte para Madonna poder ganhar. Pelo meio, as Batukadeiras, para tocar e cantar “Batuka”. Há neste momento muita coolness de quem sabe como funciona a indústria, como quem diz “olhem quem eu descobri, eu é que sei, deem-me atenção”. Mas Madonna gosta genuinamente do que conseguiu com este cruzamento de referências. Claro que gosta. É notório, impossível negar.
Verdade que Madame X, o disco, soa a grande confusão, voltas e reviravoltas em que a paisagem não é assim tão sedutora, de quando em vez parece faltar-lhe estrutura, elemento que costuma fazer a diferença entre as grandes canções e as outras. Mas em palco, há um enquadramento que aparece. Continua a existir uma enorme confusão, mas de repente é um caos que faz sentido. Como se a música tivesse sido criada para permitir que isto que acontece por estes dias no Coliseu dos Recreios pudesse vir ao mundo. Não surpreende que assim seja. Madonna sabe bem como isto funciona: o showbiz, o entretenimento, a vida em palco, a pop. Até porque, convenhamos, em boa parte foi ela que a (re)inventou. Agora faz uso do seu brinquedo como bem entende. E essa vontade de nunca deixar de criar merece uma vénia.
“O meu ego precisa de ser satisfeito”
E vénias teve muitas. Bastantes. Madonna procura-as. Precisa delas para viver. “O meu ego precisa de ser satisfeito”, diz a determinada altura. Explica que só sabe um palavrão em português, mas repete-o sempre que pode, em voz alta: “cara**o”. Um mimo. “Não falem quando eu falo”, avisa, para depois dizer “eu também te amo” quando alguém berra “I love you”, coisa que aconteceu ao longo da noite.
É a política de proximidade a funcionar, a tal intimidade que a própria artista explica ter sido um dos seus desejos com esta digressão. Declama slogans políticos e saúda os portugueses por não terem “um psicopata no poder”. Leva os filhos ao palco, cantam e dançam, diz a toda a gente que há ali uma perna que não está bem, ela coxeia, é o que é, que ninguém se assuste. Faz brindes com as garrafas que compõem o cenário, a cerveja está quente, mas e então?Todas as noites tem uma polaroid única com um retrato seu para vender. Conseguiu mil euros esta terça feira. Nada mau. Dinheiro em cima da mesa, vivinho da silva. E senta-se ao lado de um garoto alemão, de soutien em bico, só porque sim, porque este é o seu “Late Night”, um programa em direto com uma apresentadora mais que experiente. “Talk show host” com futuro, alguém lhe dê uma chance.
No final, Madonna chega a “Crave”, dancing para bola de espelhos, e parece óbvio: mesmo mal de uma perna, está feliz, serena, realizada, mas sempre incompleta, o que lhe dá imenso jeito na hora de ir fazendo novo e regressar ao velho que se mostra intemporal. Atira com “Like a Prayer”, do disco que em 2019 fez 30 anos. Está vestida de pregadora e ocupa bem o lugar. Tem o gospel todo no coro obrigatório e uma multidão de fiéis prontos a testemunhar um qualquer milagre. Santa Madonna e seus pecadores. Ainda haveria encore com “I Rise”, mas a profissão de fé já estava feita. E há mais seis destas em Lisboa.