Neymar Jr tinha acabado de marcar em casa do Lille, quando se dirigiu para uma câmara de televisão: com os dedos de uma mão desenhou um 2 e com os dedos da outra desenhou um 4, de modo a perfazer 24; de seguida uniu as mãos, em sinal de oração e, ao virar costas para voltar ao centro do terreno, apontou para o céu.
O céu foi amigo de Kobe Bryant anos a fio, tantas foram as vezes em que ele pareceu parar lá em cima, antes de afundar na tabela adversária; mas no domingo o céu falhou a Kobe, quando o helicóptero em que o ex-jogador dos Lakers seguia (para um jogo de básquete da filha Gianna) se despenhou, tomando a vida de Kobe, de Gianna, de uma colega de equipa de Gianna e do pai desta, além de outras cinco pessoas. Kobe tinha 41 anos e será para sempre um gigante do básquete mundial.
Um gigante que partiu demasiado cedo e que estava a descobrir uma segunda vida – como investidor, mentor de jogadores e criador. Bryan Shaw, que partilhou o balneário com Kobe durante três anos, teve de comentar a notícia na TV; em 1993, Shaw perdeu os pais e uma irmã num acidente de viação; as lágrimas e a emoção não lhe retiraram o bom senso: pediu-nos, com a sabedoria de quem já sentiu isto na pele, que escolhêssemos recordar os bons momentos que passámos juntos.
Por onde começar a galeria dos bons momentos daquele que para mim foi o jogador mais belo que alguma vez vi? Talvez pelas três da manhã de domingo, hora portuguesa, quando LeBron James passou Kobe como terceiro melhor marcador de sempre da NBA. Kobe reagiu assim no Twitter:
Continuing to move the game forward @KingJames. Much respect my brother ???????? #33644
— Kobe Bryant (@kobebryant) January 26, 2020
É preciso ter-se um enorme amor ao desporto para ficar feliz por ser ultrapassado – e talvez, em última instância, seja esse o grande legado de Kobe: o seu tremendo amor ao basquetebol, desporto de que era um conhecedor (como se diz hoje) profundo. O que as homenagens espontâneas de hoje, vindas de todos os quadrantes, desportivos ou não, celebram é isso: não apenas o talento, não apenas a tenacidade, não apenas os títulos – mas aquele amor gigante ao desporto que ele escolheu.
Mas não foi sempre assim, Kobe não foi sempre o rapaz sorridente na primeira fila a apoiar os Lakers com a filha ao lado – durante quase toda a sua carreira Kobe esteve muito longe de ser consensual; era, até, o jogador que todos os adeptos adoravam odiar. (E que os adversários secretamente admiravam e temiam.)
A prová-lo está o anúncio que a Nike (marca que o patrocinava) criou quando Kobe anunciou que ia retirar-se: o público e vários antigos adversários cantam uma versão de “I’ve been loving you too long”, de Otis Redding, mas nesta versão canta-se “I’ve been hating you too long to stop now”.
Kobe sabia que era odiado – não era difícil sabê-lo, aliás: entre os cameos do anúncio acima está Phil Jackson, que foi seu treinador nos Lakers por duas vezes; em The Last Season: A Team In Search of a Soul, Jackson escreveu que enquanto treinar Shaq foi um prazer, já Kobe era “impossível de treinar”.
Há uma história que simboliza como Kobe funcionava, o seu nível alucinante de trabalho mas também e sobretudo o seu nível demencial de competitividade. Quem a conta é Jay Williams, que na altura jogava nos Bulls: nessa noite ia enfrentar os Lakers de Kobe e Shaq, de modo que resolveu chegar mais cedo ao pavilhão para treinar.
Quando lá chega dá com Kobe sozinho no pavilhão a treinar; note-se que estes Lakers eram campeões e os Bulls estavam muito longe de poder competir. Williams tinha decidido que não pararia enquanto não marcasse 400 cestos, passa meia hora e Kobe, que já estava todo suado quando Jay chegou, sempre a treinar; passa uma hora, hora e meia, duas horas. Jay farta-se e vai tomar banho, volta do banho e Kobe ainda estava a treinar. Senta-se a ver Kobe treinar e a dada altura já está ali há tanto tempo que decide ir embora, deprimido: nunca na vida, pensa, conseguirá chegar àquele nível de obsessão.
Chega a hora do jogo, Kobe marca 40, ganha e no fim Jay pergunta a Kobe o porquê daquela carga de trabalho alucinante antes de um jogo que sabia que ia ganhar. Resposta: “Porque te vi a entrar no pavilhão e queria derrotar-te mentalmente”.
Só aqui se resumem algumas das características de Kobe: o trabalho incessante, a competitividade que o levava a querer não apenas ganhar mas estraçalhar o adversário. Mas há mais: uma qualidade técnica inacreditável no trabalho de pulso, de pés, uma leitura de jogo extraordinária.
Um currículo sucinto da carreira de Kobe Bryant mencionará cinco títulos da NBA, três com Shaq a seu lado (em 2000, 2001 e 2002), dois com Pau Gasol (em 2009 e 2010), MVP da regular season em 2007/8, MVP das finais em 2009 e 2010, 15 vezes parte da All-NBA team, 11 delas como parte do cinco ideal, 12 vezes parte All-Defensive Team (nove das quais no cinco inicial). Era, até domingo, o terceiro melhor marcador da história e eu podia estar aqui horas a debitar estatísticas.
Mas a magia de Kobe vai muito além de títulos e números – por exemplo, o facto de ele ter sido apenas uma vez MVP da regular season demonstra a má vontade que houve para com ele durante anos. A magia de Kobe consiste na capacidade que ele tinha de estudar e trabalhar o jogo de modo a usar o seu arsenal ofensivo, o seu génio, no pior dos momentos como se tudo lhe fosse fácil. Sem mais, convido-vos a gastarem 20 minutos neste vídeo com (possivelmente) as suas 50 melhores jogadas, que inclui um lançamento atrás da tabela (com um arco alucinante):
Neste vídeo, mais curtinho, com apenas 10 jogadas, atentem na 8ª melhor jogada, na receção imaculada (apoios perfeitos), a bola a rodar 360 graus por trás das costas e depois o 360 em salto vertical:
https://www.youtube.com/watch?v=T06yJR-Xzd4
E aqui aquela que é talvez a minha jogada preferida de Kobe, o pé de apoio (o esquerdo) perfeitamente colocado, o fake pump que faz o adversário saltar, o spin sobre o pé de apoio que tira o adversário de caminho, tudo perfeito, tudo tão extraordinário e imaginativo que Spike Lee só consegue rir:
Este foi um homem que marcou 81 pontos contra os Raptors, a 22 de Janeiro de 2006, a segunda melhor marca individual de sempre da história da NBA; que marcou 61 pontos no Madison Square Garden (que adorava odiá-lo), em fevereiro de 2009; que marcou 60 pontos no seu último jogo (a 13 de abril de 2016, contra os Jazz). Este foi um homem que rompeu o tendão de aquiles, com 36 anos, e voltou ao campo para marcar os respetivos lances livres – os Lakers ganharam esse jogo por dois pontos.
Momentos como esse foram o turning point da relação do público com Kobe – foi quando o público percebeu que por trás daquela fachada, daquela frieza, do bullying aos adversários, da cotovelada na cara de Sasha Vujacic (seu colega) num treino, às 9 da manhã, só para Vujacic se aperceber de que estava ali para ser campeão e que num play-off não se brinca, por trás de tudo isto estava uma vontade de vencer tão grande, uma capacidade de superação tão indómita, que Kobe só podia ser o último dos românticos, apaixonado pela sua musa, a bola, incapaz de não tentar mais uma vez colocá-la no cesto.
É que Kobe não esteve apenas a lutar para jogar bem – desde o primeiro segundo ele esteve numa demanda contra a História, a procurar ser o seu próprio mito, um dos Grandes, um dos Imortais.
Talvez Kobe tenha nascido já jogador de básquete, ou pelo menos com uma consciência inacreditável do que significava ser jogador de básquete, da história do jogo e das suas dificuldades e do trabalho necessário para executar bem a sua profissão: nascido em Filadélfia onde o seu pai, Joe Bryant, jogava na respetiva equipa da NBA (os 76ers), Kobe emigrou para Itália, onde o seu pai jogou durante oito anos, aos seis. Foi aí que aprendeu os fundamentos do básquete mas também do futebol, desporto do qual se tornou fã – uma vantagem, porque nos EUA desenvolve-se, acima de tudo, as estrelas e o 1 vs 1; mas na Europa os fundamentos são ensinados a todos, e o futebol ensina a arte da combinação.
Há uma história dessa época, deliciosa, em que Kobe, com 11 anos, desafiou Bryan Shaw para um “um contra um” – e até hoje garante que ganhou. Shaw já lhe tentou explicar que na altura o deixou ganhar, mas Kobe manteve sempre que isso é desculpa: ele ganhou e Shaw não sabe lidar com isso.
Esta voracidade está presente em várias das suas decisões – como ir diretamente do liceu para a NBA aos 17 anos, em 1996. A sua evolução foi clara, mas só ao fim de três anos se tornou titular e o título escapava à equipa – o pior momento talvez tenham sido as 4 airballs em cinco minutos, contra os Jazz, no jogo 5 das semi-finais de conferência, no seu ano de estreia, em 1997.
O que aconteceu nessa noite definiu a carreira de Kobe: o avião da equipa chegou a LA tarde, Kobe não conseguia dormir, de modo que se levantou às 3 da manhã e foi treinar o lançamento até ao sol nascer. Durante as férias repetiu a rotina: acordar às três da manhã e treinar o lançamento até ao sol nascer. Durante o resto da carreira, sempre que tinha uma má noite acordava às 3 da manhã a ia lançar.
Em 1999 os Lakers recrutaram Phil Jackson, que, no passado, havia conseguido transformar um jovem genial mas individualista num jogador de equipa, levando-a a títulos: falo de Jordan e dos Bulls. Com Kobe e Shaq e Jackson, os Lakers conquistaram três títulos consecutivos – e o que Kobe faz contra os Blazers é das coisas mais extraordinárias que os fãs da NBA alguma vez viram.
Podiam ter conseguido mais se não fossem os egos: o caldo começou a entornar quando Kobe disse publicamente que Shaq havia regressado de férias gordo e que o poste era preguiçoso. Provavelmente Kobe estava certo, mas não deixa de ser uma forma cruel de lidar com um colega. Não que Kobe não fosse assim com, bem, todos os outros: quando os Lakers encontraram Portland nas finais de 2000, um jornalista perguntou a Bryant se ele tinha alguma mensagem para a cidade. Kobe disse que sim, que tinha uma mensagem:
“We’re gonna rip your hearts out”.
E de seguida, arrancou-lhes de facto o coração, com exibição monumental atrás de exibição monumental.
Cresci numa cidade de básquete, em que muita gente tinha uma tabela no quintal, era garoto aquando das querelas entre os Lakers de Magic e os Celtics de Bird e Parish e McHale e eu era dos Celtics, o único miúdo ao cimo da Terra que ficava contente quando Michael Jordan perdia. Mas naquelas finais, ao ver Kobe eviscerar o extraordinário Iverson, não consegui mentir-me mais: eu era dos Lakers agora, e por uma única razão: Kobe Bryant. Não por Shaq – por Kobe Bryant.
Em julho de 2003, Kobe foi acusado de violação – a queixa foi feita por Gerry Sandberg, uma rapariga de 19 anos que trabalhava na unidade hoteleira onde Kobe estava. Bryant reconheceu ter tido relações sexuais com a rapariga, mas negou que a relação não fosse consensual. Durante o julgamento foi descoberto que Gerry teria tido sexo com outro homem nas 24 horas posteriores à suposta violação, que no passado teria tentado o suicídio por duas vezes, e que tomava medicação usada em esquizofrénicos. Sandberg não chegou a depor e o caso acabou com um acordo extra-judicial.
A acusação, juntamente com o feitio frio de Kobe, tornaram a sua imagem mediática ainda mais negativa. Ao contrário do que seria de esperar numa estrela, ele não se lançou numa espiral de manobras de relações públicas – durante algum tempo tornou-se até ainda mais distante.
Mas teve direito a uma segunda vida. Phil Jackson regressou aos Lakers, Pau Gasol, um poste diferente de Shaq, mais técnico, menos físico, tornou-se o seu side-man e Kobe começou a mudar – tornou-se mais jogador de equipa, procurou melhorar os colegas e, sempre que alguém atacava Pau, dizendo que este era suave, Kobe defendia-o com a ferocidade com que um irmão mais velho defende o seu caçula.
Os ataques a Pau cresceram de tom com a derrota nas finais de 2008 contra uns Celtics extraordinários (Rondo, Paul Pierce, Kevin Garnett, Ray Aleen); mas nos dois anos seguintes os Lakers saíram vencedores frente aos Celtics. No jogo 7 da final de 2010 – uma duríssima e apertada partida – Kobe foi o melhor marcador, mas Pau, que supostamente era suave, conquistou uns espantosos 18 ressaltos.
Os anos seguintes ficaram marcados por lesões constantes que foram debilitando mais e mais a condição física de Kobe. No início da última temporada Kobe escreveu um poema dedicado ao basquetebol, que pode ser encontrado aqui. O poema foi posteriormente transformado numa curta-metragem com o mesmo nome, conquistando um Óscar.
O Kobe Bryant dos últimos anos, quando se tornou claro que não iria chegar aos seis títulos de Jordan, bem como o Kobe pós-NBA, é talvez uma das maiores histórias de redenção da história do desporto: o rapaz gélido e distante dos colegas e dos espectadores começou a elogiar adversários, a transmitir os seus ensinamentos sobre o jogo aos mais novos, a partilhar de forma aberta a sua paixão pelo jogo.
Kobe virou-se para os negócios e telefonava a malta das startups às 3 da manhã para fazer perguntas; não raro, quando alguém nas redes sociais falava de um livro ,ele mandava mensagem privada a pedir mais info sobre o título em questão. A sua curiosidade sobre tudo e mais alguma coisa era lendária – foi, com a exceção de Kareem, o basquetebolista mais lido das últimas décadas e a sua capacidade de comunicação é extraordinária: ouvi-lo falar de básquete é um espanto. (Also, o homem falava cinco línguas e dava entrevistas em italiano e espanhol.) Mais calmo, mais terno, começou a responder informalmente a jornalistas (coisa que nunca tinha feito) e até chegava ao cúmulo de telefonar a dar os parabéns por este ou aquele texto ou a convidar para um café.
Também se tornou uma espécie de ícone das redes sociais, não só porque tinha verdadeiro jeito para comunicar através do Instagram (era ele que tratava das suas redes sociais), mas também porque surgiram na net um par de vídeos em que ele saiu do carro para ajudar vítimas de acidentes rodoviários. Quando não estava a ser rei nas redes, dedicava-se aos negócios e à filantropia.
Mas acima de tudo dedicou-se às quatro filhas, em particular Gianna, que demonstrava enorme talento para o basquetebol. Não era raro que partilhasse imagens dos dois a treinarem juntos nem era raro serem vistos em jogos de básquete, com Kobe a discutir com a filha as jogadas, um tremendo sorriso na cara que nunca lhe víramos quando era uma estrela no campo.
Há uns tempos, numa aparição no programa de Jimmy Kimmel, Kobe contava que às vezes quando estava com Gianna os fãs se abeiravam dele e diziam-lhe que tinha de fazer um filho para continuar o legado. E que Gianna se virava para eles e dizia:
“Yo, eu estou aqui. Esse legado vai ter continuidade”.
“E ela está à altura do desafio?”, perguntou Kimmel.
“Podes ter a certeza”, respondeu Kobe, com aquele ar assassino que já não lhe víamos há anos.
O meu puto tem várias camisolas de clubes de futebol (várias do Porto, do Barça, do Besiktas, etc) mas de básquete só tem camisolas de um jogador, Kobe Bryant. Tive de ter a conversa sobre a morte de Kobe; ele sabe que as camisolas de Bryant (a 8 e a 24) foram retiradas e perguntou-me:
“Achas que eu não devia usar mais a camisola dele?”.
Não é fácil isto de ser pai e ponderar o que devemos transmitir e ter sempre uma resposta. Sei lá eu o que os outros devem fazer – não sei para mim, quanto mais para os outros.
Se calhar isto demorou apenas uns segundos, mas acho que pensei em tudo, na crueldade de Kobe a chamar preguiçoso a Shaq, na tirada assassina dirigida ao povo de Portland, em cada fade away jump, nos buzzerbeaters, nos voos para a tabela por entre um mar de cotovelos, nos 360 graus, nas bolas disputadas no chão, nos lançamentos de costas para a tabela, na acusação de violação, no amor fraternal por Pau, no desportivismo dos últimos anos. Pensei naquela declaração no último ano, quando disse que algures pelo caminho tinha percebido que o grande legado não eram os títulos mas a influência que se tinha sobre os outros à nossa volta. Pensei em como é estúpido chorarmos por alguém que não conhecemos (não que eu chore, sou muito homem) e que muito possivelmente terá tido bastas falhas como ser humano e ter um amor estúpido por alguém só porque essa pessoa ama o jogo que amamos ainda mais que nós. E pensei nas palavras de Bryan Shaw, que nos aconselhou a lembrarmos os bons momentos que passámos juntos; e pensei no sorriso de Gianna e em como ele amava aquela garota e morreu a seu lado.
Virei-me para o puto e a única coisa que consegui dizer foi:
“Usa essas camisolas até se gastarem, puto”.
Não sei se o que disse está certo ou errado mas ele deu-me a mão e disse
“Quando chegarmos a casa podemos ver vídeos do Kobe?”, e deve ter começado a chover ou a ventar porque de repente houve qualquer coisa que me entrou para o olho.