(Artigo em atualização)

A chegada de elementos de cara tapada percecionada de forma visual ou apenas através do barulho, a entrada dos invasores com o secretário técnico Vasco Fernandes a tentar fechar a porta do balneário sem sucesso, um indivíduo que trazia um cinto, o alarme de incêndio ativado pelo fumo, as marcas bem visíveis das agressões a Bas Dost. A seguir, o final da derrota do Sporting com o Marítimo, os insultos também junto ao autocarro, a altercação já na zona perto do check in no aeroporto. Por fim, as reuniões em Alvalade na véspera, a hora e marcação do treino. Em muitas das sessões do julgamento do caso de Alcochete, as perguntas e respostas costumam seguir quase uma linha condutora, que depois difere amiúde nas respostas consoante o posicionamento da testemunha no balneário ou a perceção da testemunha das palavras ouvidas. Por isso, este dia 24 tinha tudo para ser diferente.

William Carvalho foi o primeiro a prestar depoimento. O médio internacional português que chegou ao Sporting com apenas 14 anos e saiu “com 25 ou 26” para o Betis, e que começou a ser ouvido ligeiramente depois da hora devido a problemas técnicos da ligação via Skype, referiu inicialmente que conhecia alguns dos arguidos como Fernando Mendes ou Nuno Mendes (Musta), além de Valter Semedo, Elton Camará (Aleluia) ou Tiago Silva (Bocas) e fez uma primeira descrição sobre o que viu na chegada dos invasores.

“Íamos para o balneário calçar as botas para ir para o campo quando começámos a ver as pessoas a vir. Gritavam e faziam barulho, uns cerca de 40 indivíduos quando estavam uns 23 ou 24 jogadores no balneário. Fui agredido no peito e nas costas. Disseram que não era digno de vestir a camisola e agrediram-me três ou quatro vezes. O Rui Patrício foi tentar socorrer-me. Referências ao jogo seguinte da Taça de Portugal? Isso não ouvi ninguém a dizer. Vi que estavam a lançar tochas lá de fora, quando estava no balneário pequeno, mas lá dentro não vi. Sei que também estavam apenas porque não se via bem. E lembro-me do alarme de incêndio a tocar”, salientou, em resposta às perguntas que estavam a ser feitas pela procuradora do Ministério Público, Fernanda Matias.

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“Reconheci o Valter [Semedo] quando fui ajudado pelo Rui Patrício e consegui escapar para a casa de banho. Estava de cara tapada mas reconheci-o. Fábio Coentrão? Não, não o vi”, prosseguiu. “Se falei com o Valter? Não. Mas temos o contacto telefónico um do outro. Quando voltei ao balneário ainda lá estavam indivíduos de cara tapada. Cheguei a falar com eles mas não sei se deram explicações, não me recordo. Depois cá fora cheguei a falar com o Fernando Mendes, o Aleluia e mais uma pessoa. O Jorge Jesus tinha sangue no rosto e marcas vermelhas no pescoço. Não sabia o que fazer, era uma situação de pânico”, acrescentou, dizendo ainda que nunca falou com Valter Semedo e Aleluia sobre a situação e que tinham existido outras visitas, mas autorizadas.

Um depoimento um pouco diferente do que prestou em maio de 2018, horas depois do ataque à Academia, e perante a GNR. Segundo esse testemunho, a que o Observador teve acesso, além de ter dito que não ter reconhecido nenhum dos invasores, contou também que Rui Patrício sabia que “já existiam situações passadas de ameaças de adeptos aos jogadores”. No entanto, nunca fez qualquer alusão a este telefonema que Musta lhe tinha feito meses antes,

Sobre a reunião na véspera da invasão em Alvalade com o então presidente Bruno de Carvalho e outros elementos da Direção, William Carvalho voltou a revelar dificuldades em recordar em concreto o teor da mesma. “Essa reunião foi praticamente o presidente Bruno de Carvalho a dizer que, que, que… A dizer que… Perguntou se independentemente do que acontecesse estávamos com ele… Não me estou a recordar de mais”, disse. “Foi falado um suposto comportamento do Acuña e Bruno de Carvalho disse-nos que tinha um ou dois elementos da claque a ligar mas para estarmos tranquilos que ia resolver a situação”, completou.

Depois, o agora médio do Betis falou dos acontecimentos pós-Madrid e abordou uma conversa que Musta, ou Nuno Mendes, líder da Juventude Leonina, teve consigo. “A seguir a esse jogo houve uma reunião e uma altercação, sim. Disse que eu era o culpado daquilo tudo e que já devia ter saído há algum tempo. E eu disse que tinha vergonha do que ele estava a dizer. Houve um dia que o Musta me ligou a dizer que o presidente lhe tinha ligado e tinha dito para partir os carros e ameaçar os jogadores. Ligou só para dizer isso, sim. Não consigo precisar a chamada mas uns dois ou três meses antes da reunião. Se cheguei a perceber o porquê da chamada? Não, foi simplesmente para dizer isso. Quando disse a Bruno de Carvalho, ele saiu da sala e disse que ia telefonar ao Musta. Telefonou, perguntou-lhe e ele disse que não, que não tinha dito”, revelou William Carvalho.

Depois, já confrontado pela juíza Sílvia Pires, o internacional português reconheceu ter tentado ligar duas vezes para Elton Camará ainda no dia da invasão, mas ele não atendeu. “Possivelmente foi para falar do sucedido”, justificou. Perante a admiração da juíza, acabou por afirmar não ser “normal os líderes das claques ligarem aos jogadores”, apesar de acontecer com ele.

– Mas chegou a falar com ele?, perguntou a juíza.
– Não, respondeu William.
– Mas qual era a razão pela qual queria falar com ele?
– Possivelmente para falar do sucedido.
– Porque não falou na altura [ainda na Academia, quando Jesus falava com ele]?
– Porque estive mais a ouvir do que a falar?
– E como é que no meio da confusão conseguiu reconhecer Valter Semedo sem falar com ele?
– Quando saí do balneário vi-o e consegui reconhecer.
– Também telefonou a Nuno Mendes, ou Musta?
– Sim, perguntei ‘O que se passa aqui?’. E ele disse-me ‘O que se passa? O que se passa?’.
– Quem não percebe nada do que se passa aqui sou eu…

Em resposta a Miguel Coutinho, advogado do Sporting (que é assistente no processo), William Carvalho contou que contratou segurança depois do ataque. Ao mesmo tempo, Musta foi falar com o seu advogado para a zona do Tribunal de Monsanto para esse efeito, numa conversa a que se juntou Miguel A. Fonseca, advogado de Bruno de Carvalho. A juíza recuperou depois as declarações que tivera antes, quando referiu que “Bruno de Carvalho disse que se houvesse algum problema ele estava ali para resolver, ele ou o [André] Geraldes”. O médio confirmou.

Ao advogado de Valter Semedo, William Carvalho disse que não conhecia a mãe do arguido. “Curioso”, ouviu. “Então depois disto não voltou a falar com o Valter mas sabe que ele foi detido, é assim?”. “Sim”, respondeu o jogador, que acrescentou não se lembrar de falar com Valter Semedo à porta da casa de banho mas que tem ideia de que estava calmo e que nunca mais o viu nos momentos que se seguiram. Já ao advogado de Nuno Mendes, ou Musta, Rocha Quintal, o médio até deixou elogios. “Não éramos amigos mas tínhamos uma relação boa, já almocei com ele. Uma vez, na Aroeira, antes do jogo com o Atl. Madrid. Dei-lhe uma camisola. De vez em quando ligava a perguntar como estava, se estava tudo bem”, contou. “E recorda-se do telefonema em janeiro de 2018?”. “Não sei bem…”, atirou William Carvalho. “É difícil, tem aqui alguns lapsos de memória”, comentou Rocha Quintal.

Já a Miguel A. Fonseca, advogado de Bruno de Carvalho, o então capitão não confirmou que os jogadores tenham recusado falar com o presidente e disse ter ficado com a sensação que Musta não sabia de nada quando lhe ligou depois da invasão. “Senti-me aterrorizado, com impotência. Senti medo. Ainda hoje temo que uma coisa destas possa voltar a acontecer”, referiu também, antes de admitir que não teria dado importância à chamada anterior do líder da Juventude Leonina.

Antes do final da parte matinal da 24.ª sessão do julgamento, Elton Camará, um dos dois arguidos em prisão preventiva a par de Musta, pediu dispensa de presença à tarde. “Estão sempre doentes, tipo passarinhos… Deve haver um vírus qualquer naquela sala”, ironizou a juíza, antes de autorizar a ausência.

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André Geraldes, antigo team manager do Sporting que é hoje CEO do Farense, começou depois a falar através de videoconferência do Tribunal de Faro pouco antes das 14h30, respondendo logo ao Ministério Público que, inicialmente, não estava na Academia a 15 de maio. “No dia anterior, 14 de maio, tivemos um dia muito complicado, o presidente pediu para marcar reuniões [as três reuniões que se realizaram nesse dia em Alvalade], que foram bastante desgastantes até pelo estilo…”, mais tarde acabaria por referir-se ao estilo “bélico” do ex-presidente. começou por referir antes de ser interrompido pela procuradora do Ministério Público.

“Nessa madrugada, tinha acabado de receber uma notícia de outro processo [Cashball] e estava a tentar minimizar o impacto que isso causou na minha vida pessoal”, disse — um argumento que iria usar mais vezes ao longo da sessão. Quando invadiram a academia, Geraldes estava em Alvalade e a dada altura o então presidente, Bruno de Carvalho, disse-lhe para parar o que estava a fazer porque tinham que ir para lá. “Tivemos ali alguma discussão porque não sabia o que íamos para lá fazer e acabámos por ir juntos. Não tive noção da dimensão naquele momento, só depois de falar com dois ou três jogadores, até porque muitos viraram as costas ao presidente, é que percebi de facto a dimensão”, contou sobre os passos que foi tendo nesse dia 15 de maio.

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O Ministério Público quis saber se a mudança da hora do treino daquele dia tinha sido decidida nalguma reunião.”A hora do treino foi falada pelo presidente, saiu da reunião com a equipa técnica. Na outra reunião perguntou se, acontecesse o que acontecesse, estavam com ele”, acrescentou depois, antes de falar sobre os incidentes que se passaram na Madeira, após a derrota do Sporting frente ao Marítimo que deixou a equipa no terceiro lugar. “Só me apercebi que tinha havido uma altercação entre o Fernando Mendes e o Acuña no balneário. Alguns dos colegas estavam indignados. Na chegada a Alvalade, quando íamos para o estádio, a equipa técnica e nós todos ficámos retidos nas garagens de Alvalade porque foram invadidas”, recordou a esse propósito.

Geraldes falou depois da reunião na sede da Juventude Leonina, a 7 de abril. Segundo ele, os representantes de Núcleo da Juve Leo disseram que queriam tratar algumas coisas com Bruno de Carvalho, porque estavam insatisfeitos com a prestação da equipa. “A reunião foi liderada por Bruno de Carvalho. As claques queriam tomar uma posição de insatisfação para com a equipa e pode dizer-se que conversou com eles”. N aprimeira vez que falou sobre esta reunião, Geraldes sabia que Bruno de Carvalho tinha rematado a reunião com uma frase polémica, mas não se lembrava qual. Mais à frente acabou por recordar-se: ‘Façam o que quiserem’. “Mas não me recordo de ter sido falado nem de idas à Academia nem de violência”.

A juíza quis saber se ainda no dia 14 Bruno Jacinto, o oficial de ligação aos adeptos que é também arguido, lhe telefonou ou enviou uma mensagem a avisar que se estava a combinar uma ida à academia, como o próprio testemunhou em tribunal. Mas, por mais que uma vez, Geraldes disse não se lembrar de isso ter acontecido, até acabar por confirmar que tal não aconteceu. Já a 15 de maio, depois de uma madrugada “completamente embrigado” pelo problema do Cashball, Geraldes admite ter recebido uma chamada de Vasco Fernandes, já depois de almoço, por causa de uma ida à Academia. “Disse para falarem com o Ricardo Gonçalves [diretor de segurança]”, recordou, explicando que foi das únicas pessoas que atendeu naquele dia.

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Ao advogado Miguel Coutinho e à pergunta concreta: “Havia algum plano para fazer mal aos jogadores do plantel?”, André Geraldes disse “Objetivamente, não”. “E subjetivamente, já agora?”, perguntou a juíza. “O ambiente criado à volta pode ter propiciado a isso”, disse.

Lembrando, ao advogado de Bruno de Carvalho, que este “já tinha intenção de despedir Jorge Jesus ainda antes dos jogos com o Benfica e com o Marítimo”, ao mesmo tempo que também o técnico tinha intenção de sair depois do primeiro ano (2015/16)– mas que apesar de ser essa a a vontade de Bruno de Carvalho, dita por ele, uma parte da administração não concordava.

O advogado de Bruno de Carvalho, Miguel A. Fonseca, focou as suas perguntas na relação da SAD com a claque, pedindo a Geraldes que esclarecesse ao tribunal quem, até 2013, pagava as contas da claque, nomeadamente as multas por atirarem tochas para o campo, por exemplo. “Era o Sporting”, respondeu, “Sabe que havia uma conta corrente para fazer face a essa despesa? E quem é que devia dinheiro a quem?”, perguntou. “A claque”, respondeu Geraldes.

Já Francisco Varandas tinha avançado, quando inquirido como testemunha, que quando chegou à presidência do clube a Juve Leo devia 600 mil euros ao clube e que iria acabar com os bilhetes oferecidos aos apoiantes — que eles depois iam vender — assim como os 20 lugares gratuitos para membros das claques acompanharem os jogadores e equipa técnica em todos os jogos, em Portugal ou no estrangeiro.

O julgamento prossegue na próxima semana. Para a manhã de terça-feira está previsto ouvir o jogador Josip Misic, que também terá sido atingido com um cinto, já à tarde serão ouvidos Bruno Zanaki e Bryan Ruiz. Bas Dost será ouvido no dia seguinte, nessa tarde de quarta-feira também vão testemunhar os jogadores Rafael Leão e Seydou Doumbia. Na sexta-feira será  a vez de Frederico Varandas, atual presidente do Sporting e Radosav Petrovic.