Foi a vez de Bruno de Carvalho, o último arguido no caso Alcochete a ser ouvido no Tribunal de Monsanto sobre o ataque na Academia do Sporting. “O que se passou em Alcochete foi um crime hediondo”, começou por dizer para logo a seguir sugerir que os jogadores tiveram responsabilidade pela relação de proximidade que foram estabelecendo com as claques. Durante a sessão, Bruno de Carvalho chegou a emocionar-se e houve palmas na sala que teve de ser evacuada. No final, a juíza do processo, Sílvia Pires, retirou a medida de coação de Mustafá, o líder da Juve Leo, que sairá, assim, da prisão preventiva.
Foi quando falou das consequências pessoais do caso que o ex-presidente do Sporting se emocionou. “Devido à acusação a minha mulher fugiu oito meses com a minha filha. Tive uma filha a morrer e o Ministério Público fez-me uma miserável acusação. O que os jogadores passaram eu passei mil vezes”. Tanto que, a dada altura, perante a emoção de Bruno de Carvalho, a juíza diz:
– Vou tirar-lhe a palavra.
– Tire, já me tiraram tudo
Nesta fase, depois de duas horas a ser ouvido, o ex-líder leonino já estava a chorar e quem assistia, no fundo da sala do Tribunal de Monsanto, aplaudiu-o. A juíza teve de mandar evacuar a sala, já mesmo no fim do depoimento e imediatamente antes de ler o calendário: as alegações finais começam a 11 de março e ninguém está dispensado dessas audições.
Também no final, a procuradora do Ministério Público recomendou que pudesse ser retirada a medida aplicada a Nuno Mendes (Mustafá), que estava até agora em prisão preventiva. O líder da Juve Leo fica agora obrigado a apresentações semanais. A juíza não fez qualquer referência a proibição de o líder da Juve poder assistir a jogos de futebol.
A juíza Sílvia Pires avisou, no entanto, que “a Juve Leo ouve-se muita coisa, muitos conflitos. Vou-lhe dizer como juíza e como cidadã: que seja uma solução e não um problema”. Disse-o dirigindo-se em concreto a Nuno Mendes, que chamou à frente para levantar a medida de coação. Mustafá estava preso desde 17 de maio de 2018.
Os jogadores que se metiam em problemas e ligavam à claque para “os irem safar”
No começo da a audiência, Bruno de Carvalho pediu permissão para fazer “uma pequena introdução” antes do inquérito, para dizer que não compreende como está ali “dois anos depois” e fazer uma espécie de ponto de honra sobre o que aconteceu em Alcochete, a 15 de maio de 2018. “Foi lamentável, indescritível o que aquelas pessoas sofreram”, acrescentou acautelando logo eventuais reações ao seu depoimento nesta tarde: “Que nunca em resposta minha seja visto qualquer minimização ou não reconhecimento aos que se passou”. Pede ainda às juíza que “entenda” o seu “instinto de sobrevivência. Colocaram-me no lado errado da barricada“.
Depois, passou-se para o momento do jogo da Madeira, antes do ataque, com o ex-presidente do clube de Alvalade a recordar que não foi ao jogo e que soube dos desacatos no aeroporto do Funchal pelas televisões. “No final do jogo vi em direto. Em minha casa, mas in loco. Tenho acompanhado de perto o julgamento e nunca ouviu isto: estamos a falar de um fenómeno… jogadores que quando saíam à noite, como o William, se metiam em problemas e ligavam aos elementos das claques para os irem safar”.
O antigo dirigente diz à juíza presidente Sílvia Pires que conta estes episódios para “enquadrar” e que quando viu as imagens do que aconteceu no aeroporto Cristiano Ronaldo, não achou “nada anormal. Não que tenha gostado do que vi ou que alguma vez tivesse permitido”. E refere-se ao que aconteceu em Alcochete, dias depois, como “um crime” que destruiu os jogadores, destruiu o Sporting e destruiu o presidente do Sporting e a sua família”.
Mas sobre a Madeira, começa por clarificar a sua relação com Fernando Mendes, antigo líder da Juve Leo ouvido imediatamente antes em Monsanto esta sexta-feira: “Nós não gostamos um do outro, mas havia tolerância”. Por isso, quando recebeu uma chamada — “a primeira” entre os dois — na noite do jogo do Sporting contra o Marítimo, Bruno de Carvalho diz que não conseguiu perceber tudo: “Não sei se pelo adiantado da hora se por estar embriagado, que já é uma palavra simpática“, disse em relação a Mendes. Mas o que acabou por perceber “foi que havia um problema entre ele e o Nuno Mendes. Tirei muito mais a ilação que eram problemas da Juventude Leonina do que outra coisa”.
As explicações eram “descabidas”, disse ainda sobre o telefonema que o apanhou a “descansar” ao lado da filha bebé: “O tribunal não perguntou mas eu tinha uma filha a morrer“. Nessa primeira conversa, ficou com a ideia que o problema de Fernando Mendes era com a liderança da Juve Leo e os riscos — de que já se falava — de entrarem na claque elementos da extrema direita. Depois dessa conversa acabou por avisar os jogadores sobre a turbulência na claque. “Avisei os jogadores porque o que vi no final do jogo da Madeira e no aeroporto… e não leve nada como minimização, apesar de estar do outro lado da barricada… em 2013, quando chego ao Sporting, os jogadores, vários, falaram-me de idas a casa, à Academia, etc. Sempre disse a todos que comigo mandava uma pessoa e o resto é para apoiar”.
Mas, perante aquela conversa e aviso, dos jogadores diz ter recebido apenas “despreocupação”, nomeadamente de Acuña, Battaglia e William, “Temos uma tendência para proteger aqueles que gostamos”, sugere sobre uma eventual relação próxima entre a claque e alguns jogadores. “Levei para o lado da crise da Juventude Leonina, mas é a teoria da panela de pressão. Às vezes é só tirar o pipo e sai tudo”.
Sobre a noite no aeroporto do Funchal disse que Acuña se meteu com o chefe por ter “sangue caliente” e o mesmo para Battaglia. Já William, “não tinha nunca sangue quente”. E sobre este último jogador acusa-o de ser “useiro e vezeiro em mentir”, por o ter acusado de mandar Nuno Mendes [lºider da Juve] partir os carros dos jogadores, numa reunião a 7 de abril: “Nunca pedi nada”. William “disse aqui que nunca tinha havido nada com o presidente. Esqueceu-se de dizer que o pai dele ameaçou de morte um administrador da SAD, o Guilherme Pinheiro, e a mim. Até pedi para se fazer queixa”.
No dia do ataque, conta que quando chegou à Academia, a primeira coisa que ouviu quando saiu do carro foi Wiliam dirigir-se a ele: “Pensa que não sei que foi você?”. “Fui recebido assim, mas depois ele falava com que lá tinham estado ao telefone“.
A juíza recua até à reunião de abril, com a claque Juve Leo, e diz que foi lá perante a insistência de André Geraldes (diretor para o futebol). E descreve a reunião como “um pesadelo autêntico. Dezenas de pessoas todas as gritos. Só não me chamaram santo. É verdade que não me quiseram agredir, não teve ponta por onde se lhe pegasse. Umas pessoas a fumar charros e os seus posts, os posts… Não ouvi ninguém falar de ir à Academia”. E acrescenta ainda que “toda a gente” sabia que ele mesmo “era contra isso”. “Absolutamente contra”.
Mustafá “fazia-me rir”
Nesta ronda de questões, ainda é confrontado com a relação com o líder da Juve, Nuno Mendes: “Acabei por gostar dele. Faz-nos rir. Apesar dos disparates e abusos, fazia-me rir, era genuíno, uma pessoa mesmo genuína”. E que as próprias forças de segurança o identificavam mais como “uma solução do que como um problema”. Recusa que fosse a sua “guarda pretoriana”.
Passa a Fátima Almeida, a outra juíza, que questiona sobre a segurança do clube no período antes do ataque. Bruno de Carvalho diz que durante o período pós-Madrid, “todos os jogadores saíam em ombros. Eu era o único assobiado e podia ter aumentado os índices de segurança e não aumentei”. Garante que na Madeira, o que viu falhar foi a segurança e que depois do ataque instaurou “um processo de inquérito a Ricardo Gonçalves, chefe de segurança. Ficou na prateleira nessa altura e entretanto foi promovido”.
Responsabiliza Jesus pela retirada das barreiras de segurança — entrada com cartões — em Alcochete. “Ricardo Gonçalves disse que as portas estavam sempre abertas por ordem de Jorge Jesus. As ordens que dei para colocar portas com cartões foram retiradas sem saber. Retiraram as medidas de segurança”.
Aliás, ainda sobre a segurança em Alcochete, Bruno de Carvalho volta a responsabilizar Jorge Jesus que, lembra, em 2017, autorizou a entrada da claque na propriedade. “A única coisa que lhe disse foi que a próxima vez que me voltasse a desautorizar estava na rua“. Já confrontado sobre a ida de elementos da claque às garagens onde estavam os carros dos jogadores diz que só soube desses episódios pela carta de rescisão de Rui Patrício, antigo guarda-redes da equipa de futebol do Sporting.
No dia anterior ao ataque, houve uma reunião do staff do presidente onde Bruno de Carvalho quis ouvir se tinha o acordo de todos, porque tinha em equação despedir Jorge Jesus, depois dos maus resultados da equipa de futebol. E depois conclui: “Estavam duas pessoas para serem despedidas no final da época. O Jorge Jesus, que acabou condecorado, e o Varandas, que acabou presidente. E o despedido fui eu”. Já sobre a alteração da hora do treino garante que não teve qualquer intenção e que “a verdade” é que queria ir à Academia nesse dia e “que não queria que Jesus desse mais nenhum treino”, já que ia ser afastado.