“23 hours to kill” é o nome do mais recente espectáculo de Jerry Seinfeld, disponível na Netflix. Eu, não tendo tanto tempo para matar como gostaria, nesta espécie de quarentena prolongada, resolvi arriscar, se é que podemos considerar um risco “perder” uma hora com um comediante consagrado como Seinfeld.
Mais arriscada foi a entrada do humorista no show, precedida de mergulho de um helicóptero para o rio Hudson. Se estivesse em Portugal, Seinfeld terminaria a sua carreira, provavelmente, como participante do “Splash”, aquele programa da SIC em que celebridades (ou nem tanto) dão saltos da prancha para a piscina do Jamor. Felizmente (para ele), Seinfeld é americano, o que lhe permite ter uma vida suficientemente desafogada para correr o risco de se afogar no rio que banha Nova Iorque, só porque lhe apetece, antes de atuar para um Beacon Theatre cheio de fãs sedentos de se rirem com ele. Eu também fui com alguma sede a este pote, confesso, mas infelizmente senti que este especial não é nada de especial.
Antes de continuar, deixem-me já tirar este assunto do caminho, para que o leitor não tenha a mesma reação, ao ler este texto, que tem ao ler críticos de cinema com os quais discorda: o facto de eu dizer que não fiquei especialmente agradada com o que vi, não significa que considere que faria melhor. Pensei é que o Seinfeld pudesse fazer melhor. Este parece um aviso escusado mas, pelo que vejo todos os dias em caixas de comentários por essa internet fora, não é. Parece que se aceita melhor que alguém dê a sua opinião sobre um assunto do qual está muito distante.
[o trailer de “Jerry Seinfled: 23 hours to kill”:]
Ou seja, se eu escrevesse um texto sobre as migas de espargos servidas num determinado restaurante, era pouco provável que alguém insinuasse que eu era uma chef de cozinha frustrada. Quando digo que um futebolista fez um péssimo jogo, ninguém me acusa de não saber fazer um cruzamento em condições. Mas se estou a opinar sobre um tipo que faz piadas (e que por acaso é um estrela à escala planetária) sei que a tendência do leitor que discorda, e que é apaixonado por Seinfeld, será a de me insultar a mim enquanto modesta fazedora de piadas num não menos modesto Portugal. Por isso, caro leitor, sinta-se à vontade para me ofender, mas fique ciente de que isto não é um exercício comparativo.
Nem sequer é uma comparação entre o “velho Seinfeld” e o Seinfeld que aqui se nos apresenta. É uma mania que temos, não sei se em Portugal, penso que em todo o mundo, de valorizar um certo “antigamente” em detrimento do que temos agora. Comediantes, músicos, escritores… Antes é que eram bons. No primeiro álbum, no primeiro livro… O que, quando falamos em stand up comedy, é especialmente absurdo, já que uma certa tarimba é que vai apurando a técnica e aproximando o executante da perfeição. Acho que gosto tanto de Seinfeld agora como gostei em tempos idos. Sendo que nunca fiz parte do clube de fãs, embora tenha casado com um adepto fervoroso, o que me tornou simpatizante por afinidade. Mas vamos lá ao espectáculo propriamente dito, que este preâmbulo já vai longo. Coisa que o espectáculo não é, embora por vezes pareça.
Confesso que recorri ao comando da TV algumas vezes para ver quanto tempo faltava para terminar, o que é péssimo sinal. O início é um bocadinho arrastado, Seinfeld fala-nos sobre os amigos chatos que todos temos, e sobre o facto de hoje em dia ninguém querer estar em lado nenhum (no fundo, António Variações revisitado). O tema é bom, e inesgotável (pessoas), mas não há nenhum momento Eureka, daqueles em que exclamamos (para dentro, a não ser que sejamos o amigo chato) “como é que nunca pensei nisto antes?”. E é desses momentos que sinto falta ao longo da hora que se segue. Seinfeld fala-nos de restaurantes sofisticados e das suas ementas rebuscadas, e vi algumas críticas acusarem-no de ir para um tema batido. Não acho que seja um problema, o tema mais batido do mundo pode estar a precisar de uma pancada diferente. Só que essa pancada não chega.
Esperei, esperei, e enquanto esperava fui imaginando o que seria aquele mesmo texto dito por outro comediante qualquer. Teria menos gargalhadas de certeza. Não só porque Seinfeld goza do estatuto, conquistado por ele, de ser precisamente o Seinfeld, mas sobretudo porque é muitas vezes a forma que agarra o público, mais que o conteúdo. A sua fisicalidade, a entrega das piadas, o timing, tudo isso está no ponto. Mas o conteúdo não é surpreendente, e se o déssemos a um comediante mais desconhecido ou menos “animal de palco”, acredito que teríamos muitos silêncios vindos da plateia.
Um exercício que faço depois de ver qualquer espectáculo de stand up é ver quantas piadas me ficaram na memória. Um método que, admito, poderá ter os dias contados à medida que envelheço, porque a memória a curto prazo tende a deteriorar-se… mas até ver tem sido um bom barómetro da minha satisfação, ou falta dela. Desta bit sobre restaurantes, ficou-me a observação de Seinfeld sobre o comportamento humano em buffets. De repente, damos por nós a falar com estranhos! Dirigimo-nos a uma pessoa que não conhecemos, só para lhe perguntar onde arranjou aquela perninha de frango caramelizada. Seinfeld tem razão e tem piada. Um dos tais momentos “isto sempre esteve debaixo do meu nariz e nunca me lembrei de verbalizar”, que esperava que fossem mais constantes ao longo do show.
Mesmo nos tais temas já muito fustigados por comediantes de todo o mundo, como a nossa dependência dos telemóveis ou os WCs portáteis, confiava sempre no tal ângulo novo, que causasse surpresa e trouxesse o seu efeito secundário mais imediato e visível: riso. Ou um sorriso, vá, que estamos em casa vai para 56 dias e nem toda a nossa má disposição pode ser imputada ao comediante. É certo que quando se vai para um terreno já muito pisado, o risco é maior. E admiro isso. Melhor do que “não vou falar de mensagens de voice mail porque já 5678 pessoas falaram disso antes”, é “vou falar e vou dizer uma coisa de que ainda ninguém se lembrou”. É mais corajoso. Não esperava outra coisa de um sexagenário que vi saltar de um helicóptero minutos antes. E provavelmente Seinfeld até cumpriu o desafio, dizendo coisas que ninguém disse antes. Não as achei foi especialmente engraçadas.
Felizmente, a meio do espectáculo há uma espécie de viragem: saímos das observações sobre o mundo lá fora e passamos para o mundo lá dentro, o “pequeno mundo de Jerry”, como diz o próprio. E, de repente, foi bem melhor. Porque ser Jerry Seinfeld é um tema que só Jerry Seinfeld domina. Fala-nos de como é ter 60 anos, da liberdade que isso traz para fazer apenas o que lhe apetece (e da enorme expectativa com que encara os 70), fala-nos da família e prova que o assunto da relação homens/mulheres pode não estar estafado, desde que, mesmo aos 65, tenhamos energia para lhe dar a volta.
[veja aqui um excerto do especial:]
Foi outro dos momentos que, hoje de manhã, depois de uma noite de sono, ainda tinha na cabeça. Seinfeld diz que ser casado é como estar num concurso de TV, sempre na ronda final. Sente-se um concorrente a tentar responder a perguntas de várias categorias, como “filmes que acho que vimos juntos”, para duzentos dólares, ou “pormenores de uma conversa de dez minutos que tivemos às três da manhã, há oito anos”. A certa altura do espectáculo Seinfeld reflete sobre aquela coisa que se ouve muitas vezes, quando alguém vai desta para melhor: “ao menos morreu a fazer uma coisa que adorava”. E pergunta até que ponto será isso bom. Não será melhor falecer enquanto cumprimos uma tarefa que odiamos? Ao menos o suplício acaba.
Não sei de que forma morrerá Jerry Seinfeld. Tendo em conta a paixão confessa por automóveis, há alguma probabilidade de ser ao volante. Espero que, nesse caso, seja enquanto grava mais uma temporada do seu “Comedians in cars getting coffee”. Não sei se é coisa que ele adore fazer, estou só a ser egoísta, já que adoro ver. Mais do que adorei este “23 Hours to Kill”, mas prometi que não havia aqui comparações e esta seria, no mínimo, descabida, portanto vou evitar. Longa vida a Seinfeld.
Joana Marques é humorista, faz rádio muito cedo e deita-se demasiado tarde