Com muitos trabalhadores das artes cada vez mais descontentes com aquilo que consideram ser a falta de apoio do Ministério da Cultura no contexto da crise pandémica, protestos em 17 cidades do continente e das ilhas marcam esta quinta-feira, em vésperas de serem divulgadas pelo ministério de Graça Fonseca as regras definitivas para reabertura de teatros, cinemas e recintos de espetáculos a partir de 1 de junho.

Vigília Cultura e Artes, assim se chama a iniciativa, decorre em Almada, Angra do Heroísmo Aveiro, Caldas da Rainha, Coimbra, Évora, Faro, Funchal, Lagos, Leiria, Loures, Lisboa, Porto, Santa Maria da Feira, Setúbal, Sintra e Vila do Conde. Na capital, frente à escadaria Assembleia da República, já se ouviram críticas ao Ministério da Cultura, mas também apelos ao diálogo e medidas concretas. Ao início da tarde os organizadores divulgaram imagens no Facebook onde vários cidadãos aplaudiam os manifestantes.

A iniciativa, segundo os organizadores, teve origem inorgânica e foi combinada através de contactos pessoais e pela internet. “Complementa mas não está ligada”, asseguraram, ao protesto Unidos Pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal, do Movimento Ação Cooperativista, que vem enchendo as redes sociais e consiste na partilha de fotografias pessoais com aquela frase como hashtag.

“A vigília surgiu porque um grupo informal de pessoas do setor cultural e artístico decidiu dar visibilidade e materialização a lutas que estão a ser travadas, algumas há muito tempo”, disse ao Observador uma das mentoras do protesto, Joana Saraiva, de 42 anos, atriz e audiodescritora. “Não nos queremos substituir a sindicatos ou entidades representativas do setor, é com esses que o Governo deve continuar a dialogar”, resumiu.

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“Com a crise sanitária houve problemas que ficaram mais visíveis e adquiriram um carácter urgente”, explicou Joana Saraiva, dando como exemplo a intermitência laboral. No seu entender, a opinião pública deve perceber que não são só os artistas e criadores que estão afetados, mas também técnicos e outros profissionais das artes. “É um tecido muito diverso de gente que está impedida de trabalhar”, afirmou. “O nosso setor, tal como todos os outros, deve exigir condições, dignidade e direitos. Mas há especificidades da nossa área, como a suborçamentação ou a falta de um Estatuto da Intermitência, para que não estejamos ciclicamente desprotegidos, para que a nossa relação com a Segurança Social nos dê alguma proteção quando estamos entre um projeto e outro.”

A vigília em Lisboa começou às 09h00. O Observador testemunhou um ambiente calmo ao fim da manhã. Sob o olhar de escassos elementos da PSP que se encontravam nas escadarias do parlamento e de militares da GNR que habitualmente ali fazem guarda, os manifestantes ostentavam cartazes pretos com letras brancas onde se lia “#vigiliaculturaeartes – e se tivéssemos ficado sem cultura?”. Eram dez de cada vez e revezavam-se de meia em meia hora, quase todos com máscara facial de proteção. Tinham-se inscrito nos dias anteriores, através de contactos nas redes sociais da internet. Mantinham-se estáticos e silenciosos, com os cartazes virados para a Assembleia da República.

Num passeio próximo, os dinamizadores da vigília bebiam água e comiam bolachas enquanto coordenavam quem entrava no alinhamento e quem saía. Os cartazes estavam plastificados e eram limpos com um desinfetante antes de serem transferidos para a pessoa seguinte, que também esfregava as mãos com álcool. Perto do meio-dia, passou por perto um Volkswagen branco com uma condutora de máscara que começou a bater palmas ao reparar nos cartazes. Os manifestantes juntaram-se ao aplauso e a mulher gritou: “Força, força!”.

Joana Saraiva trabalha com diversos teatros públicos, como o Teatro Nacional São João, no Porto, ou Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, e também dá aulas de teatro e expressão dramática em várias escolas. Em ambos os casos, sem vínculo formal, a recibos verdes. Ficou sem trabalho em meados de março, quando escolas e teatros foram obrigados a fechar perante a pandemia. Pediu apoio à Segurança Social, no quadro das medidas criadas para trabalhadores independentes que tenham tido quebras de rendimentos de pelo menos 40%.

“Não obtive resposta nenhuma e por isso liguei para a Segurança Social, o que em si é todo um processo, porque ninguém atende e só se consegue falar ao fim de vários dias de tentativas. Analisaram o meu caso, disseram que havia uma dívida. Pedi um plano prestacional, mas disseram-me que só teria apoio depois de o plano ser aprovado. Ora, o pedido está em análise há um mês e meio”, relatou, garantindo que há muitos casos idênticos. “Há pessoas a ganhar zero desde março, ficaram sem qualquer rendimento e sem possibilidade de aceder apoios da Segurança Social. Poucos conseguiram apoio do Governo e os que o conseguiram têm valores absurdamente baixos.”

Apesar de a vigília ter como alvo o Ministério da Cultura, a escolha da Assembleia da República como cenário justificou-se, nas palavras de Joana Saraiva, por o debate quinzenal com a presença do primeiro-ministro ter estado previsto para esta quinta-feira — tendo acabado por se realizar na quarta.

O reduzido número de manifestantes de cada vez e os especiais cuidados com distanciamento social e higienização teve por objetivo, segundo a atriz e audiodescritora, “evitar comentários sobre a forma, para que tudo se concentre no conteúdo”. “Achámos que deveríamos fazer um protesto seguro, até para não excluir pessoas que estejam mais preocupadas com a sua saúde. Não quisemos que se criasse ruído em torna da questão sanitária”, acrescentou.

“Medidas anunciadas pela ministra são insuficientes”

A atriz Carla Bolito marcou presença no protesto em Lisboa por considerar que “as medidas anunciadas pela ministra da Cultura são insuficientes e fazem prova de que não está a assumir as responsabilidades que tem”. Argumentou que “muitas companhias não sabem como vão abrir portas a partir de 1 de junho”, data estabelecida pelo Governo para o regresso à atividade de teatros, cinemas e recintos de espetáculos.

“Esperamos que as regras sejam abrangentes e não se destinem apenas a salas grandes e teatros públicos, mas também a salas pequenas”, declarou a atriz, referindo-se às normas de reabertura que o Ministério da Cultura definiu com a Direção-Geral da Saúde, depois de ouvir o setor, e que em princípio serão conhecidas esta semana. Vários teatros de pequena dimensão entendrm que a proposta de regras que lhes chegou impossibilita um regresso à atividade. “A diminuição da lotação dos espaços impedirá que as receitas de bilheteira cubram, pelo menos, as despesas de abertura de sala”, considerou o Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE).

Conhecida por papéis em séries e telenovelas, mas também em filmes de Fernando Vendrell ou Margarida Cardoso, Carla Bolito contou que não tem tido dificuldades económicas nesta fase porque fez vários trabalhos nas semanas anteriores à chegada da pandemia a Portugal.

“Faço muitos trabalhos de locução para publicidade e consegui juntar economias, mas essas economias serviriam como um extra e neste momento servem para a sobrevivência diária. Aliás, se estivéssemos num período normal, estaria a gravar muito mais, porque as campanhas publicitárias de verão deveriam estar a ser lançadas agora. Portanto, também estou a ter um grande redução de rendimentos”, contou.

Carla Bolito mostrou-se “muito apreensiva” por outros criadores e técnicos afetados pela crise terem tido pouco ou nenhum apoio do Governo. “Fomos dos primeiros a deixar de trabalhar, porque as artes e cultura são na sua essência uma forma coletiva de estar com as pessoas. O teletrabalho, sobretudo para as artes performativas, não é possível. Sentimos que ao anunciar a reabertura dos teatros o Governo está a chutar para a frente, como se estivesse tudo normal. Desde março, grande parte destes trabalhadores não tem qualquer apoio e para voltarem a trabalhar precisam de estar em condições, desde logo anímicas.”

Um inquérito promovido em meados de março pelo Cena-STE apurou que a esmagadora maioria dos artistas e técnicos declararam ter tido trabalhos cancelados devido às medidas de contingência face ao novo coronavírus. Um outro inquérito, do recém-formado Movimento SOS Arte PT, mostrou que 75% dos profissionais das artes tiveram “fortes quebras no rendimento” devido à pandemia.

A vigília deverá terminar às oito da noite desta quinta-feira. Um dos manifestantes, que preferiu não ser identificado, disse ter esperança de que a ministra da Cultura pudesse dirigir-se aos manifestantes, já que se prevê a sua presença na Assembleia da República durante a tarde. Fonte do gabinete de Graça Fonseca disse entretanto ao Observador não ter qualquer indicação de que a governante se dirija à vigília. “Se a ministra aqui viesse eu dizia-lhe que tem mesmo de nos ouvir com atenção, a nós e aos representantes do setor. Tem de fazer um levantamento de necessidades e para já tem de resolver questões de emergência”, apontou Joana Saraiva.