A intervenção ainda nem começou, mas a polémica já está instalada. Uma carta assinada por diversos intelectuais portugueses veio esta semana levantar sérias dúvidas sobre o processo de restauro dos Painéis de São Vicente, que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, pretende iniciar nos próximos dias. A carta diz que o “restauro coloca em risco a integridade patrimonial” daquelas seis pinturas com mais de 500 anos, atribuídas a Nuno Gonçalves. O “inesperado restauro é suscetível de ser afinal a repintura de um elemento decisivo da nossa iconografia”, sustentam os signatários, entre os quais se contam o sociólogo Luís Salgado de Matos, a historiadora Irene Flunser Pimentel, o ex-ministro da Justiça Vera Jardim, o escritor Nuno Júdice, a curadora independente Catarina Figueiredo Cardoso ou a historiadora Cecília Barreira.
A missiva tem data de 21 de maio e foi enviada ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, à ministra da Cultura e à Fundação Millennium (mecenas do MNAA e do restauro, para o qual vai doar 225 mil euros a três anos). Pedem às autoridades, “na exclusiva qualidade de cidadãos interessados”, que sejam tomadas “medidas cautelares” para que o restauro “não destrua” a peça. O texto foi divulgado na íntegra pelo jornal Expresso na última terça-feira.
Em resposta às críticas, a conservadora-restauradora Susana Campos, que lidera a equipa de especialistas deste histórico restauro, diz que “nunca faria” qualquer “repintura” dos painéis. O Observador pediu à especialista que comentasse três críticas principais abordadas na carta de 21 de maio.
No mesmo sentido, também a presidente do ICOM Portugal (Conselho Internacional de Museus) declarou ao Observador que “do ponto de vista técnico, a carta não faz, de todo, sentido”. “O que está em causa no restauro é precisamente salvaguardar a integridade da obra. Os conversadores-restauradores, ao contrário do que é referido na carta de forma menos correta, têm um código deontológico que os obriga a respeitar a integridade das peças. Não vão, com certeza, introduzir alterações”, defendeu Maria de Jesus Monge, licenciada em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em museologia pela Universidade de Évora.
Com base em conversas recentes que manteve com o diretor do MNAA, Joaquim Caetano, a presidente do ICOM fez notar:
“Trata-se de uma intervenção para estabilizar a peça, incluindo remover alguma adição posterior que esteja a criar problemas. Se são adições posteriores, não estamos a pôr em causa a integridade da peça. A forma de olhar os painéis pode ser ligeiramente alterada depois do restauro, claro que sim, é uma possibilidade. Haverá, quando muito, uma alteração no sentido positivo: devolver à peça uma leitura muito mais correta.”
“Há sempre riscos”, segundo diretor do MNAA
O restauro em causa é falado em público desde pelo menos agosto do ano passado, quando o diretor do MNAA afirmou ao jornal Público ser essa a sua intenção. Mas o tema já estava em cima da mesa, quando António Filipe Pimentel dirigia o museu da Rua das Janelas Verdes. Joaquim Caetano tomou posse em junho de 2019, depois da saída de Pimentel. O Observador tentou contactar, sem êxito, o antigo responsável.
A 18 de maio, dia da reabertura de museus e monumentos portugueses, após semanas de portas fechadas devido às medidas de contingência face ao novo coronavírus, a MNAA convocou a imprensa para adiantar pormenores sobre a intervenção no políptico de Nuno Gonçalves. Na ocasião, perante a ministra da Cultura, Graça Fonseca, o diretor do MNAA afirmou que o restauro será feito à vista dos visitantes, por detrás de uma parede de vidro, e que começará a 1 de junho, a próxima segunda-feira — com trabalhos preparativos de estudo, e não ainda com intervenção direta na peça.
A tarefa será “profunda” e “muito difícil”, classificou Joaquim Caetano. “Há sempre” riscos, porém “as figuras representadas não vão mudar”, garantiu. Prevê-se que o processo demore três anos, mas não está excluído o prolongamento do prazo, se durante os trabalhos forem encontradas novidades ou problemas inesperados.
De acordo com informações do MNAA, divulgadas a 18 de maio, o restauro dos painéis tem o apoio científico da conservadora e museóloga Mercês Lorena, do Laboratório José de Figueiredo (Direção-Geral do Património Cultural), do Laboratório Hércules (Universidade de Évora) e de consultores do Museu do Prado, do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, da National Gallery de Londres e da Universidade de Gante, entre outros.
A liderar a equipa vai estar Susana Campos, a mais antiga conservadora-restauradora do MNAA, com duas décadas neste museu. Fez licenciatura em conservação e restauro na Universidade Nova de Lisboa e estagiou no Laboratório José de Figueiredo (da Direção-Geral de Património Cultural). É especialista em pintura antiga, já interveio em dezenas de peças da coleção do MNAA, incluindo obras de Gregório Lopes ou o muito falado quadro de Domingos de Sequeira “A Adoração dos Reis Magos”.
Com ela, vão trabalhar diretamente Teresa Serra e Moura (também do MNAA) e Rita Oliveira (independente). “A experiência de um conservador-restaurador é decisiva. Aliás, existe regulamentação. Para podermos intervir em património classificado, é-nos exigida uma licenciatura de cinco anos, ou mestrado, e mais cinco anos de experiência”, pormenorizou. “O profissional da área é credenciado pela Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Portugal, de acordo com normas internacionais. Temos um código de ética internacional, seguido por todos os países”, acrescentou.
Carta “não duvidou da competência” dos técnicos
Luís Salgado de Matos respondeu a perguntas enviadas pelo Observador, indicando tratar-se de respostas dos signatários da carta, “pois foram consultados a respeito” delas. Disse que “o objetivo da carta aberta era obter garantias de que os painéis serão preservados na sua integridade e não serão objeto de intervenção que os desfigure não forma como os conhecemos”, garantindo que o documento “não se interroga sobre as intenções dos técnicos de restauro do MNAA, nem duvidou da competência deles”. Sublinhou também que a Casa Civil do Presidente da República informou os autores da carta de que “acompanharia o assunto da integridade patrimonial dos painéis”.
Por fim, o sociólogo deixou este sublinhado: “Os signatários souberam informalmente que o professor Joaquim Caetano, e a doutora Susana Campos deram garantias de que respeitariam a identidade das zonas críticas. A confirmar-se esta boa notícia, a questão da integridade dos painéis ficará resolvida.”
Três críticas e três respostas
Crítica: “Este inesperado restauro é suscetível de ser afinal a repintura de um elemento decisivo da nossa iconografia.”
Segundo Susana Campos, “claro que o restauro não é inesperado”, pois “já se fala nele há bastante tempo”. “A decisão foi tomada com mais certeza quando o doutor Joaquim Caetano passou a ser diretor do museu. Há vários estudos, nomeadamente aquele que está numa mesa interativa junto aos painéis, para o público poder consultar. Constam radiografias, reflectografias e outros exames. Todo esse trabalho já está ser preparado desde que o doutor Pimentel dirigiu o museu, tendo em visto um futuro processo de restauro”, contou.
Sobre a hipótese de partes da obra poderem ser pintadas por cima, a especialista respondeu que “o conservador-restaurador não faz repinturas, nem utiliza esse termo”. “Repintar é colocar uma tinta por cima e isso não acontece. Foi feito no passado por alguns restauradores, mas hoje está fora de questão. O que fazemos é tirar os vernizes antigos, sempre na ótica da estabilização da degradação da peça. Removemos eventualmente camadas que estejam a cobrir coisas que não se veem. O nosso trabalho não acrescenta nada, pode é revelar coisas ocultas devido à degradação do tempo, mas não vamos ocultar nada.”
Crítica: “O ethos [hábito] atual da restauração de pinturas antigas a óleo autoriza os restauradores a repintarem o quadro, baseando-se em princípios que excluem o respeito pela obra a restaurar.”
Segundo a conservadora-restauradora, esta crítica é rebatível face ao código de ética da sua profissão. “Temos o direito de recusar qualquer solicitação que nos seja feita para intervenções que não respeitem o código de ética. Obviamente, repintar e não respeitar a obra é contra as normas”, defendeu. “Nunca faria tal coisa. Queremos intervir o menos possível, é esse o padrão atual. Não vamos alterar nada, vamos manter o que existe e encontrar um equilíbrio de estabilização. Vamos manter tudo o que lá está.”
Restauro é uma coisa, conservação é outra, apontou Susana Campos. “Muitas intervenções são apenas conservação. Restauro é a última hipótese, só se faz quando necessário. A aplicação de um verniz não é restauro, é uma operação de conservação. O restauro é mais invasivo, ou interventivo, pode introduzir alguns elementos novos [na obra], não numa via estética, mas no sentido de permitir uma melhor leitura ou perceção da obra, mas sem se tentar disfarçar ou camuflar elementos. É por isso que o conservador-restaurador tem de interpretar e compreender. A primeira fase consiste sempre em estudar a obra.”
Crítica: “O problema emerge para o conjunto dos painéis mas coloca-se com particular acuidade em pormenores deles, nomeadamente as letras e números pintados no botim do adolescente no painel do Infante. Eles contêm a datação dos painéis (1445) e a sua autoria, um pintor cujas iniciais eram NG e que só não será Nuno Gonçalves se em 1445 houvesse outro pintor régio cujas iniciais fossem também NG. Estes elementos decisivos para a autoria e datação dos painéis são uma pequena área, fácil de repintar numa ‘melhor’ decoração. Houve quem entre os nossos respeitados historiadores de arte classificasse aquelas letras e números de ‘decoração’.”
Susana Campos referiu a tese do historiador Jorge Filipe Almeida, a que alude aquela passagem da carta de 21 de maio. “Na bota existe uma representação, dourada ou amarela, que se considera ter uma assinatura e uma data muito importantes para atribuição e classificação dos painéis. Ora, os conservadores-restauradores do MNAA não estão a pensar cobrir ou tirar o que quer que seja. Se essa representação lá está, claro que vai continuar. Se as pessoas mantêm as teorias depois do restauro, é um direito delas. Aliás, à primeira vista, pelos exames que temos, a zona do botim parece nem ter muita intervenção anterior. Provavelmente, passará até a ficar mais visível, porque o verniz que hoje lá está torna a zona mais opaca.”
[texto atualizado a 1 de junho de 2020, às 15h30, com respostas dos signatários da carta]