Faltavam ainda 12 minutos para a hora marcada quando o Dragon da SpaceX, tripulado pelos astronautas Bob Behnken e Doug Hurley, bateram à porta de Chris Cassidy (EUA), Anatoly Ivanishin e Ivan Vagner (Rússia) na Estação Espacial Internacional.
Do outro lado da escotilha quadrada, que demoraria duas horas a abrir-se para os dos recém-chegados, estava feita História. Menos de 19 horas após a partida do Dragon a bordo do foguetão Falcon 9, a cápsula da SpaceX chegava ao laboratório e fazia da empresa a primeira privada a levar humanos para a Estação Espacial. Aos ombros levava ainda outra responsabilidade: a de ser também o primeiro voo americano, e a partir de solo americano, desde 2011.
Pelo caminho, Bob e Doug, companheiros da exploração espacial e amigos de uma vida, batizaram a cápsula: “Endeavour”, “empenho” em inglês e, mais do que isso, o nome da nave espacial em que os dois astronautas se estrearam nas viagens ao espaço. Eram 18h02 quando acoplaram. Estava feita história.
This is the first time in human history @NASA_Astronauts have entered the @Space_Station from a commercially-made spacecraft. @AstroBehnken and @Astro_Doug have finally arrived to the orbiting laboratory in @SpaceX's Dragon Endeavour spacecraft. pic.twitter.com/3t9Ogtpik4
— NASA (@NASA) May 31, 2020
Um problema russo por resolver
Esse esforço simboliza um momento prestigiante para os Estados Unidos, considerou Rui Curado Silva, professor de Astrofísica e Instrumentação do Espaço na Universidade de Coimbra e investigador no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP).
“Esta missão é fundamental para a SpaceX para demonstrar que é capaz de dominar algumas das principais dificuldades das missões tripuladas, o que se traduzirá certamente por um ganho de credibilidade”, disse o coordenador do grupo de Instrumentação Espacial numa reação enviada ao Observador.
Mas também é mais do que uma questão de orgulho. É também um problema político e diplomático que os Estados Unidos tenham passado nove anos dependentes da Rússia para colocar americanos na Estação Espacial Internacional: “Em 2014, na sequência das sanções americanas a dirigentes russos pela anexação da Crimeia, o então vice-primeiro ministro Rogozin relembrou a dependência dos EUA para aceder à Estação Espacial Internacional”.
Dmitry Rogozin, atual diretor geral da Roscosmos, chegou a ameaçar os Estados Unidos com a cessação da colaboração na Estação Espacial Internacional, recordando que o segmento russo da do laboratório era independente do americano, mas o contrário não. Por isso é que “para o futuro da exploração espacial, estas cápsulas da SpaceX e as da Boeing, cujo desenvolvimento é financiado pelo Programa Tripulado Comercial da NASA, representam alternativas à Soyuz, que é atualmente opção única para transportar as tripulações de e para a Estação Espacial”, explicou Rui Curado Silva.
Ciente desta dependência, a Roscosmos — a agência espacial russa — aumentou em flecha os valores que cobrava aos Estados Unidos por cada astronauta a quem dava boleia para a Estação Espacial Internacional. É o que nos diz Rui Moura, do Instituto Geofísico e docente do Departamento de Geociências da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, um dos dois cientistas-astronautas portugueses. Em entrevista ao Observador, também ele considerou que o sucesso desta missão “terá certamente alguns impactos económicos para a Roscosmos”.
É que, além do “plano moral”, relacionado com “a restituição do orgulho e brio nacional dos norte-americanos”, e do “plano tecnológico”, já que foi a primeira vez que o primeiro estágio do Falcon 9 foi recuperado durante uma missão tripulada, realça-se também o “plano económico”, visto que “significa um custo por tripulante que baixou de cerca de 86 milhões de dólares para 55 milhões”.
Joana Neto Lima, do Departamento de Planetologia e Habitabilidade do Centro de Astrobiologia de Madrid, considera até que esta missão será “um golpe duro” para os russos: “Perdendo a quase exclusividade do mercado de lançar astronautas para a Estação Espacial Internacional, perde também uma fatia avultada de ingressos, encontrando-se também numa época de cortes orçamentais e atrasos na construção do novo cosmódromo”.
Estes são os jogos de bastidores, mas ainda este domingo a Roscosmos chegou a elogiar a missão conjunta da SpaceX e da NASA: “É muito importante ter, pelo menos, duas possibilidades de voar para a Estação. No espaço pode acontecer qualquer coisa e é necessário ter pelo menos dois sistemas de transporte que garantam a presença de tripulações a bordo da Estação Espacial Internacional”, disse Vladimir Ustimenko, o porta-voz da agência.
Agência espacial russa Roscosmos aplaude lançamento com êxito da Crew Dragon
O mundo teve uma prova disso mesmo em outubro de 2018, recorda João Miguel Lousada, diretor de voo do módulo Columbus na Estação Espacial Internacional a partir da GMV. “ Isto representa o costumamos chamar um Single Point of Failure. Por exemplo, após o incidente de outubro de 2018 que levou ao abortamento do lançamento da Soyuz MS-10 já em voo, durante o período de investigação que se seguiu, não era evidente se (e quando) seria possível voltar a enviar astronautas para a ISS. Com o sucesso da missão da Dragon, passa a existir uma importante nova alternativa para todas as agências que enviam os seus astronautas para a estação espacial”.
Mas as raízes destes problemas da Roscosmos são muito mais profundas do que a missão deste fim de semana; e, na verdade, até se cruzam com uma crise iminente para todas as agências espaciais: o prazo de validade da Estação Espacial. José Augusto Matos, divulgador da ciência, explicou ao Observador que, mesmo com menos uma fonte de rendimentos, a agência espacial russa continuará os voos tripulados para a Estação Espacial. Até porque “já sabia há muitos antes que, mais tarde ou mais cedo, passaria a haver outra nave”.
A verdadeira crise virá dentro de cerca de cinco anos. “O que pode mudar um dia é quando a Estação deixar de estar a funcionar como tem estado, uma vez que ela será descontinuada. As empresas privadas podem ter interesse em colocar módulos para turismo e aí a vida será prolongada, mas os operadores estatais, daqui a meia dúzia de anos perderá o interesse”, descreveu José Augusto Matos.
Depois disso, “não sabemos o que será da Roscosmos” mas “ficará numa situação complicada”, adjetiva o astrónomo. “Falou-se ao longo dos anos de se construir uma segunda estação espacial e a Rússia anunciou várias vezes que o faria. Mas não o conseguiria fazer sozinha e os Estados Unidos, com o programa Artemis, não me parece que estejam interessados. Talvez possa encontrar parcerias com os chineses ou com a Índia e a Europa, mas é um tema a que se deve estar atento no futuro”, considerou.
Bem-vindo ao Resort Espacial Internacional
A missão deste fim de semana dá ainda mais solidez à ideia de transformar o espaço num destino turístico, algo que faz parte da ambição da SpaceX e que, na verdadeira, nem sequer é novidade, lembra José Augusto Matos. Entre 2001 e 2009, sete pessoas viajaram até ao espaço a título privado como astronautas. O que mudou? A empresa de Elon Musk entrou no panorama. E, para lá dos voos suborbitais vendidos pela Virgin e Blue Origin, abriu a possibilidade do turismo orbital.
Esse sempre foi um dos objetivos da SpaceX, recorda Rui Curado Silva:
“É conhecido desde os primeiros voos dos cosmonautas russos nos anos 60 do século XX, que o transporte de humanos com uma preparação física menos exigente em curtas missões orbitais, de algumas horas, ou suborbitais não representa um especial desafio para o corpo humano, nem um desafio técnico considerável. Se as cápsulas da SpaceX e da Boeing passarem estes testes, esse via fica seguramente aberta”.
Mas o cientista-astronauta Rui Moura não acredita tanto assim na iminência dessa opção comercial. E um dos motivos é o preço no início do milénio, os sete astronautas privados pagaram entre 20 e 50 milhões de dólares — um valor que não oscila tanto assim em relação aos preços praticados atualmente pela SpaceX. “Teremos de esperar ainda mais para que as operações de viagens orbitais baixem ainda mais”, considerou.
Uma coisa é certa: a “democratização do espaço”, uma expressão em que Elon Musk e outros gigantes do investimento aeroespacial têm insistido, não convence os especialistas portugueses. “Democratização, só se for no sentido em que pessoas com menos preparação física, científica e técnica terão a possibilidade de pagar um lugar num curto voo orbital, como por exemplo uma órbita completa durante cerca uma hora e quarenta minutos”, considerou Rui Curado Silva.
Para ele, do ponto de vista social, “os corpos de astronautas das agências espaciais representarão sempre uma amostra mais democrática da sociedade”, uma vez que muitos deles vieram de meios modestos, sobretudo os astronautas russos. Em contrapartida, “os potenciais turistas serão certamente sobretudo milionários de todo o planeta e algumas honrosas exceções constituídas por vencedores de concursos que envolvam méritos particulares”, afirmou o astrofísico.
A verdade é que nem toda a gente está preparada para enfrentar o espaço, muito menos numa missão como a completada este domingo por Bob e Doug:
“A partir do momento que se inclui um ser humano dentro de um sistema, diversos novos fatores entram em ação: manter um nível de oxigénio adequado leva a que seja necessário transportar e fornecer este gás; não elevar os níveis de dióxido de carbono significa que são necessários filtros e processos químicos ou físicos adicionais para remover este gás que os astronautas expiram; manter uma temperatura compatível com o corpo humano significa adaptar o sistema em cada momento, dependendo do calor e humidade que os astronautas libertem nesse momento”, enumera João Lousada. E a lista continua.
A simbiótica missão da NASA e da SpaceX
A NASA precisava da SpaceX para sair das mãos da Roscosmos, a SpaceX precisava da NASA para financiar alguns dos planos mais exuberantes de Elon Musk. Quem precisava mais de quem? José Augusto Matos acredita que a perceria foi “simbiótica”:
“Para a SpaceX abre perspetivas diferentes, até porque assim surge como empresa líder. Para o marketing da SpaceX é excelente. Para a NASA também é importante porque apostou nisto a sério. Como, na anterior administração, foi decidido privatizar o voo espacial tripulado, era importante que as coisas corressem bem”.
Sobretudo depois da nova administração ter seguido o mesmo modelo de parceria para o regresso à Lua.
João Lousada concorda que “tanto a SpaceX como a NASA beneficiam enormemente com esta missão”: “Por um lado, a SpaceX foi capaz de continuar a desenvolver os seus sistemas no contexto de um contracto da NASA, algo que é crucial nos planos de desenvolvimento da empresa e para o seu futuro. Por outro lado, a NASA consegue libertar recursos para outras atividades e, ao mesmo tempo, ter um transporte mais fácil e mais flexível para os seus astronautas”.
Ainda assim, não deixa de ser um feito importante para Vasco Pereira, fundador do Grupo Espacial Português. “É preciso notar que a SpaceX é uma empresa que só conseguiu chegar pela primeira vez à órbita da Terra em 2008, com o seu pequeno foguetão Falcon 1. Isto foi apenas há 12 anos”.
Desde então já muito mudou na vida da SpaceX: construiu-se o Falcon 9, normalizou-se a utilização deste foguetão e até já há outro a caminho — o Falcon Heavy. “Para uma pequena empresa que até 2008 esteve à beira da falência, nestes curtos 12 anos conseguiu lutar contra os pesos pesados da indústria aeroespacial americana, e vem agora demonstrar mais uma vez a sua agilidade e capacidade de engenharia, ao construir e operar este fantástico veículo espacial que é a Crew Dragon”, sublinha Vasco.
Quanto às outras empresas privadas na mesma corrida que a SpaceX, os acontecimentos deste fim de semana não deixam de ser positivos. O astrónomo José Augusto Matos nota que o sucesso de Elon Musk “abre um clima de confiança para que outras parcerias surjam” e, por isso, “a NASA vai sentir-se confiante e vai abrir mais a porta”. Joana Neto Lima, astrobióloga, concorda: “O sucesso desta missão, e uma vez mais o sucesso e a inovação da SpaceX abrirá portas para mais empresas e investidores no sector espacial, levando a uma maior acessibilidade das oportunidades que este oferece”.
Daqui para a frente, não há mãos a medir para o que vai acontecer após esta primeira missão tripulada da SpaceX à Estação Espacial Internacional. A Boeing, concorrente direta da empresa de Elon Musk nas contratações da NASA, terá a mesma oportunidade de provar ser capaz de voar com astronautas a bordo para o laboratório. A NASA abrirá as portas do programa da Lua à ambição privada. E, mais cedo do que estamos à espera, teremos pessoas comuns — mas com carteiras especiais — a vaguear pelo espaço.