Foram vários os cinemas de Lisboa que sofreram renovações e melhoramentos para continuarem apetecíveis, atraírem mais e novos espectadores ou para se adaptarem aos tempos. Mas nenhum como o Cinema Avis, que abriu fez 90 anos no início de Janeiro, teve três nomes, três proprietários e três identidades, entre 1930, quando foi inaugurado, e 1988, ano do seu fecho.

A primeira foi como Trianon Palace, mandado construir por Augusto Ornelas Mendes  no número 45 da Avenida Duque de Ávila, do lado oposto à estação de eléctricos da Carris, com projecto de Raúl Lino, para servir o público das zonas do Arco do Cego, Dona Estefânia e Avenidas Novas, onde faltavam salas de espectáculos. Foi um investimento arriscado, mas o cinema, com capacidade para 538 espectadores e aberto em Janeiro de 1930 com dois filmes mudos, “O Anel da Imperatriz”, com a estrela alemã Lili Dagover, e “Viva o Amor!!”, também de produção alemã, com Anny Ondra, e um documentário português, teve sucesso e o público habituou-se a frequentá-lo. As fitas eram acompanhadas por uma orquestra de nove elementos dirigida por Carlos Sá, que também tocava nos intervalos. “Elegante” era a palavra que Ornelas Mendes queria ver associada à sua sala. Nunca o viria a ser, antes um cinema de bairro melhorado.

O sucesso foi tal, que poucos meses depois de abrir, o Trianon Palace fechou para obras de ampliação: um balcão novo e mais frisas, aumentando a lotação para 768 espectadores. Reabriu no final de Janeiro de 1931, intitulando-se pomposamente “a sala mais bonita e mais bem aquecida de Lisboa”, rebaptizada Palácio e exibindo a grande produção “A Arca de Noé”, de Michael Curtiz. Era agora explorado por Vicente Alcântara, que também tinha a seu cargo o Odéon, com o qual passou a exibir filmes em conjunto. Em Março de 1955, o Palácio encerrou, vítima da decadência das instalações mas igualmente da concorrência de outros cinemas que entretanto tinham surgido na mesma zona, caso dos enormes e sofisticados Império, na Alameda, e Monumental, no Saldanha. Nem a fábrica de gelados que havia nas traseiras ajudava a chamar mais espectadores.

[“A Arca de Noé”, de Michael Curtiz:]

Trespassado a outra empresa, o Palácio renasceu no final de Novembro de 1956, profundamente modificado na sua estrutura pela mão do arquitecto Maurício de Vasconcelos, e com um nome novo: Avis. Um cinema de linhas modernas, espaçoso e confortável, com cadeiras novas e ar condicionado, integrado nos edifícios que o rodeavam, procurando cativar uma nova geração de espectadores. O filme inaugural voltou a ser europeu: “Fogo de Artifício”, com Romy Schneider e Lili Palmer. A programação, no entanto, não era famosa, e o Avis rapidamente se tornou num cinema de bairro cuja frequência passou a ser composta na maioria por estudantes do Técnico, do Liceu Camões e das residências universitárias que havia nas redondezas, por pessoal da estação de eléctricos da Carris e empregados dos vários cafés, cervejarias e restaurantes da zona.

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[“Fogo de Artifício:]

Ia-se ao Avis ver fitas de guerra, policiais, históricas, de acção e aventura e “westerns”, tudo de segunda e terceira divisão. Lá passavam os filmes de Roberto Carlos, Gianni Morandi, Cantinflas e Joselito, Lando Buzzanca e Adriano Celentano, espanholadas com cantoras célebres da época como Paquita Rico, e muitas foram as infortunadas crianças arrastadas para o Avis pelos pais para verem, na estreia ou depois em reposição, o lacrimejante “Marcelino, Pão e Vinho”, com o pequeno Pablito Calvo no papel de um órfão que vive num mosteiro e certo dia começa a conversar com Cristo na cruz, depois de Lhe oferecer pão. As de Verão reposições do Avis eram bem melhores que as estreias, e na Páscoa seguia-se a tradição de passar só filmes bíblicos, ou “de sandália”, como então se dizia.

[“Marcelino, Pão e Vinho”:]

O maior sucesso de público da história do Avis foi o “western spaghetti” cómico “Trinitá-Cowboy Insolente”, com Terence Hill e Bud Spencer, aquele no papel do título, o “cowboy” mais bedungoso da história do cinema, e que esteve um ano em exibição, entre 3 de Março de 1972 e 22 de Março de 1973, um feito hoje impensável. Formavam-se longas filas à porta do Avis para conseguir bilhete, em especial ao fim-de-semana, e as sessões esgotavam rapidamente. Havia pessoas que, para garantirem a cobiçada entrada, pagavam a outras para estarem na fila no seu lugar e o “Diário Popular” publicou uma entrevista com um sujeito que tinha visto “Trinitá-Cowboy Insolente” 30 vezes. (Seguiu-se, claro, a continuação, “Continuaram a Chamar-me Trinitá”, bem como vários outros filmes com Terence Hill e Bud Spencer, que se tornaram “fiéis” do Avis).

[“Trinitá-Cowboy Insolente”:]

Depois do 25 de Abril, o Avis recebeu o primeiro filme musical indiano estreado em Portugal, o melodrama “Bobby”, de Raj Kapoor, a que se seguiram vários outros, e a programação começou a ir por aí abaixo, passando a incluir filmes “softcore” e comédias eróticas de baixa extracção, que davam origem a muitas cenas surreais. Eis algumas, testemunhadas por frequentadores regulares e irregulares. A certa altura de “Calcinhas ao Léu”, com a italiana Gloria Guida, vulgo “A Bomba”, deu-se uma batalha com mochilas entre alunos do Camões com simpatias políticas rivais. Numa projecção do “softcore” francês “O Rali das Gozonas”, um tipo começou a despir-se em frente da tela, sendo manietado e levado para fora da sala pelos arrumadores e por um polícia. Um dia, mostrava o Avis “Emmanuelle Branca, Emmanuelle Negra”, quanto rebentou na plateia uma sessão de estalada entre um tipo que não parava de gritar “É baunilha ou chocolate!” quando as duas Emmanuelles estavam em cena, e outro que queria ver o filme sossegado. 

[Gloria Guida, “A Bomba”:]

Em 1988, e como muitos outros cinemas de uma Lisboa que se começava a habituar às salas multiplex e abandonar as salas tradicionais, fossem elas populares, grandes palácios ou estúdios, o Avis fechou e o prédio onde estava instalado foi demolido. Mas ainda há muita gente que se recorda dele, e de lá ter rido e vibrado com “Trinitá-Cowboy Insolente”, numa sala onde não cabia uma agulha, ou descoberto “O Sargento Negro”, de John Ford, numa reposição de Verão, com o ar condicionado encravado no máximo e uma plateia quase deserta.