A defesa José Paulo Pinto de Sousa, primo do ex-primeiro-ministro José Sócrates, pediu a abertura de instrução numa página apenas, mas em debate instrutório estendeu as suas alegações por cerca de três horas. De pé, com aquilo que parecia uma resma de papel em cima da mesa, o advogado João Costa de Andrade reservou quase uma hora a um ataque ferrado ao Tribunal Central de Instrução Criminal que, segundo afirmou, “devia mudar de nome” e passar a chamar-se “Tribunal do Carlos de Instrução Criminal, Sociedade Unipessoal”.
Aliás o advogado jogou maioritariamente ao ataque do juiz Carlos Alexandre explicando mesmo, a dada altura, que o seu requerimento de abertura de instrução — que o Ministério Público (MP) chegou a dizer não ter nada de palpável– era reduzido por uma simples razão: é que se esta fase, em que se decide se o caso segue ou não para julgamento, calhasse nas mãos de Alexandre, nem sequer estaria presente no tribunal.
“O que se esconde nas sombras dos tribunais portugueses hoje é perigosíssimo”, disse, acusando o juiz (sem nunca referir o seu nome) de trabalhar em equipa com determinados procuradores do Ministério Público. Basta fazer “o exercício de perceber a quem se distribui um processo de acordo com a origem”, disse. João Costa Andrade disse mesmo de que nada vale “lutar para que a distribuição do processo seja limpa”, porque “sabemos do que ali vem”. Já “deste juiz”, referindo-se ao único outro juiz do tribunal, Ivo Rosa, “entramos no filme Eyes Wide Shut”. Não sabe o que se espera, “mas o que sair sai da sua cabeça”, reforçou.
“Enquanto advogado fui confrontado com a situações mais inacreditáveis”, disse. “O que não me tinha acontecido era ser convidado a apresentar conclusões de um processo num tribunal ilegal”, disse, alegando que houve nulidade na distribuição do processo, cuja investigação do Ministério Público foi validada pelo juiz Carlos Alexandre.
A defesa de Carlos Santos Silva também já tinha deixado recados ao juiz Carlos Alexandre.
Depois do jogo ao ataque, o jogo à defesa
Só depois do ataque, começou a defesa de José Paulo Pinto de Sousa. À semelhança do advogado de Carlos Santos Silva, também João Costa Andrade apontou críticas ao inspetor tributário Paulo Silva. Um “Super Homem” que agora “sabe mais de Direito Penal” do que qualquer outro, ironizou. “A Operação Marquês devia chamar-se Paulo Silva”, disse, ao mesmo tempo que lembrava a sua intervenção no processo Monte Branco, “o saco azul do DCIAP”.
Pinto de Sousa, o primo, está acusado de dois crimes de branqueamento de capitais, em coautoria com José Sócrates, Ricardo Salgado, Hélder Bataglia e Carlos Santos Silva. Em interrogatório perante o juiz Ivo Rosa, o arguido garantiu sempre que todo o dinheiro que saiu das suas contas e que circulou noutras era dinheiro seu e não de José Sócrates.
Olhando para a acusação, o advogado alegou que o MP nem sequer estabeleceu uma data para “o pacto corrupto” que diz ter havido entre o seu cliente, José Paulo Pinto de Sousa, José Sócrates, Ricardo Salgado e Hélder Bataglia. Por outro lado, lembra, o MP acusa o primo de Sócrates de ter entregado ao ex-primeiro-ministro, entre 2006 e 2007, um total de 2 milhões de euros, em 17 movimentos, “mas não há nada que o comprove”. Disse-o “com o mesmo grau de certeza que podia ter afirmado que esses levantamentos foram para comprar armas, para tráfico de seres humanos ou compra de droga”, acrescentou.
O advogado diz que foi procurar na conta Gunter, uma conta na Suíça que o MP diz que era para Sócrates fazer passar dinheiro, e apurou um valor de 1,250 milhões de euros que o seu cliente ali colocou durante o período em que é acusado. Já todo o dinheiro da conta equivale a 3,2 milhões “que nada têm a ver com a imputação do MP”, disse. “Não é verdade que a prova financeira seja inatacável e muito menos esgotante”, afirmou.
“Há zero elementos probatórios de que José Paulo deu dinheiro a José Sócrates”, garantiu.
À semelhança do que disse anteriormente o advogado de Joaquim Barroca, também a defesa do primo de Sócrates alega que o MP não pode acusar o arguido de branqueamento uma vez que “ele tinha que conhecer a concreta origem do dinheiro”, e não há nada na acusação que o indique ou prove.
José Pinto de Sousa nasceu em Angola e é primo de José Sócrates pelo lado paterno. Segundo o Ministério Público, para além da relação de parentesco, os dois são muito amigos desde infância e essa relação de confiança “estende aos negócios”. É também em Angola que, ainda na infância, conhece Hélder Bataglia. Aliás, uma irmã de Pinto de Sousa acaba mesmo por ter uma filha com Bataglia.
O despacho de acusação da Operação Marquês diz que Pinto de Sousa conheceu o empresário Carlos Santos Silva através do primo Sócrates e que foi por isso que aceitou que as suas contas na Suíça, em nome de sociedades offshore por si controladas, fossem “utilizadas para movimentar fundos com origem ilícita”, entre 2000 e 2007, lê-se. Dinheiro que se destinaria, no final, ao primo José Sócrates.
É “uma acusação insustentável” cheia de “histórias deturpadas e factos irreais”, diz advogado de Joaquim Barroca
Joaquim Barroca é acusado de corrupção, entre outros crimes, mas o MP não delimitou o tempo do crime entre 2005 e 2011, começou por dizer o advogado Castanheira Neves nas alegações que abriram esta sessão do debate instrutório da Operação Marquês. É “uma acusação insustentável” cheia de “histórias deturpadas e factos irreais”, disse a defesa do antigo administrador Grupo Lena.
Além de dois crimes de corrupção ativa, um deles de titular de cargo político, é também acusado de sete crimes de branqueamento de capitais, três de falsificação de documento e dois de fraude fiscal qualificada.
Em alegações, o advogado António Castanheira Neves voltou a dizer que o ex-administrador do Grupo Lena se limitou a abrir e a fechar uma conta na Suíça, desconhecendo por completo como foram abertas duas outras, onde o Ministério Público diz que passou o dinheiro de José Sócrates.
No interrogatório judicial, o empresário que contratou Carlos Santos Silva para o assessorar no Lena, admitiu mesmo ter assinado papéis em branco que poderão ter sido usados para outros fins. A defesa diz que Barroca abriu a conta através de Michel Canals e com o intermédio e apoio de Carlos Santos Silva a 12 janeiro 2007. Há duas outras contas na Suíça abertas em seu nome em dezembro desse ano e em 2011 que ele “desconhece como foram abertas”, assim como não sabe quais os movimentos que nelas foram feitas. Apenas sabe dizer que da conta que abriu pagou 1,25 milhões Carlos Silva pelos seus serviços de assessorias e pela sua “colaboração ativa e dinâmica”, alegou a defesa. Um valor que foi calculado no total da faturação que o empresário conseguiu em contratos no estrangeiro.
Interrogatório a Joaquim Barroca Rodrigues. “Como é que eu fui estúpido ou tão ignorante?”
Castanheira Neves, que alegou quase duas horas, atirou a toda a acusação do Ministério Público. Disse também que Barroca foi responsabilizado na acusação por todos os movimentos e bens de Sócrates ou mesmo de Santos Silva. O MP “mete no mesmo saco as aplicações financeiras realizadas por Santos Silva, ou as contas bancárias pertencentes ao BES com os que provêm de pagamentos do Grupo Lena”, diz, acusando o arguido por fraude fiscal.
“Pretende o MP responsabilizar Barroca por aquilo que outro cidadão não declarou às Finanças. Trata-se de uma imputação incompreensível”, disse.
Por outro lado, defendeu, Barroca também não pode ser acusado em coautoria por omissão porque à luz da lei o sujeito passivo desses imposto não pode ser punido. Já quanto ao crime de branqueamento capitais, o advogado lembrou que teria que haver um crime precedente que o MP não definiu.
“Só se lava o que está sujo, para se branquear capitais é porque há dinheiro sujo, o se pressupõe que é vindo de um facto ilícito”, explica.
Barroca é visto como o MP como tendo facultado o curso do dinheiro entre corruptor e o corrompido e segundo a defesa “estes atos não podem ser encarados como atos de execução do crime de branqueamento de capitais”. A acusação sustenta-se mesmo “numa falácia”, porque o MP partiu da premissa que o Grupo Lena estava envolvido em crimes de corrupção e “tentou prová-lo”.
No entanto, garante, o Grupo Lena não precisou do Governo de Sócrates para se internacionalizar. Recusando qualquer favorecimento, disse que em 2007 já o Grupo tinha 40 obras no Brasil e tinha faturados 37 milhões de euros, como mostram os documentos que entregou no processo e que diz que não foram valorizados pelo Ministério Publico. Entre 2005 e 2011, 69% das adjudicações do Grupo deveram-se à aquisição da Abrantina, explicou.”No Brasil só houve despesa”. E o MP, diz, focou-se nos mercados da Argélia e de Angola, “Países onde comprovadamente o grupo teve prejuízo exatamente no pedido assinalado”, quando o Grupo Lena tinha também negócios na Roménia, na Bulgária e em Marrocos.
A defesa do ex-administrador desacreditou também a acusação no ponto referente ao projeto de construção de uma linha de comboio de alta velocidade (TGV) que ligaria Poceirão (Setúbal) à fronteira do Caia. O Ministério Público diz que Sócrates beneficiou Grupo Lena, que estava integrado no consórcio Elos, para a sua construção. “A Brisa, que dominava o consorcio Elos, conhecia ao pormenor de todas as vias. Ia ser a Lena, que representava 13% no consórcio, a pagar por informação que o consorcio já tinha? O Grupo Lena não tinha qualquer influência no consórcio”, defendeu.
Um processo com 28 arguidos a chegar à reta final da fase de instrução
A Operação Marquês conta com 28 arguidos – 19 pessoas e nove empresas, todos com alegadas ligações ao ex-primeiro-minstro. José Sócrates está acusado de crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal qualificada.
Interrompida durante três meses por causa da pandemia faltam, esta sexta-feira será a vez da defesa dos arguidos Hélder Bataglia e Rui Horta e Costa alegarem. Depois a defesa dos arguidos que não pediram a abertura de instrução: o motorista João Perna, a mulher de Carlos Santos Silva, Inês do Rosário, Ricardo Salgado, Luís Marques e José L. Santos e XMI. A defesa de José Sócrates ficará para o final, a seu pedido, não se sabe ainda se antes ou depois dos arguidos que não pediram abertura de instrução.