E se a imunidade ao novo coronavírus durasse apenas umas semanas e, depois, desaparecesse para sempre? É isso mesmo que sugere o terceiro estudo serológico feito em Espanha, publicado na revista Lancet. A imunidade de grupo é uma missão quase impossível, a não ser — escrevem os autores — que se “aceitam os danos colaterais de ter muitas mortes entre a população mais suscetível bem como a sobrecarga dos sistemas de saúde”.

A Lancet, a par deste estudo — feito em três rondas e que conclui que apenas 5,2% dos espanhóis têm imunidade ao vírus — publica comentários de dois investigadores que olharam para os vários estudos serológicos feitos no mundo. A conclusão? “À luz destas descobertas, qualquer proposta para alcançar a imunidade de grupo através da infeção natural é altamente anti-ética, como também inatingível”, escrevem Isabella Eckerle e Benjamin Meyer.

Na mais recente ronda do estudo espanhol, a escolha é entre más notícias e péssimas notícias. Em comum têm o facto de todas estarem ligadas à fraca imunidade que o ser humano está a ser capaz de criar em relação ao SARS-CoV-2, perdendo claramente essa batalha. Espanha, apesar de ter uma curva da pandemia descendente, continua a ser um dos países mais afetados, com quase 300 mil contágios e mais de 28 mil mortes, números que não são suficientes para chegar à imunidade de grupo: 95% da população continua sem anticorpos.

Voltemos ao estudo. Em primeiro lugar, a imunidade ao novo coronavírus está longe de ser aquilo que se esperava: “A imunidade pode estar incompleta, pode ser transitória, pode durar apenas um curto período de tempo e desaparecer”, afirmou Raquel Yotti, diretora do Instituto de Saúde Carlos III, um dos organismos envolvidos no estudo, durante a conferência de imprensa de apresentação das conclusões.

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Exemplo disso são os números agora revelados — 14% das pessoas que testaram positivo para anticorpos na primeira ronda de testes passaram a testar negativo nas semanas seguintes, ou seja, os anticorpos parecem ter desaparecido. Essa evidência foi observado com maior frequência entre os doentes que apresentaram sintomas muito leves ou que eram assintomáticos.

E isso leva-nos a outra má notícia: ter tido Covid-19 não é um salvo conduto para voltar a evitar a doença. Raquel Yotti deixou isso claro e apelou a todos os que já estiveram doentes, e consideravam estar imunes, para se manterem alerta. “Não podemos relaxar, temos de continuar a proteger-nos e a proteger os outros.”

Apesar disso, Marina Pollán, diretora do Centro Nacional de Epidemiologia, não quis deixar de dar uma pincelada de esperança num cenário negro. “Não ter anticorpos, ou sermos incapazes de detetá-los, não significa que as pessoas não estejam protegidas.” Simplesmente não há certezas, como em tantas questões relacionadas com o novo coronavírus.

“As ferramentas que usamos para detetar anticorpos não são perfeitas. Os dados são baseados em testes rápidos que não têm sensibilidade de 100%. Usamos as melhores ferramentas disponíveis, mas elas foram desenvolvidas nestes últimos meses. O fato de não detetarmos os anticorpos não significa que eles não estejam presentes e conhecemos doenças, como a hepatite, que geram imunidade, mesmo sem a presença de anticorpos.”

O estudo, pelo tamanho da amostra, é único no mundo: mais de 68 mil pessoas, de todas as idades e regiões de Espanha, participaram e foram acompanhadas ao longo de três meses. Durante esse período, foram feitos mais de 196 mil testes e recolhidas cerca de 174 mil amostras de sangue.