Anunciado esta terça-feira pela EGEAC, a empresa municipal responsável pelos equipamentos culturais de Lisboa, o nome de Rita Rato está a ser contestado por vários historiadores, que sustentam que a ex-deputada comunista não tem currículo, experiência ou competência para assegurar a direção do Museu do Aljube. Inaugurado em 2015, nas instalações onde outrora funcionou a prisão da PIDE, o museu é dedicado à “memória do combate à ditadura e à resistência em prol da liberdade e da democracia”.
“Pergunto: o que é isto? Que escolha é esta? Alguém que não é nem historiadora, nem museóloga, mas apenas militante de um partido, da qual foi deputada e que, ao ser questionada, sobre o Gulag estalinista e prisões políticas na China, responde que não sabe de nada! E que tem uma licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais. Pergunto: não há concurso público para museus camarários, ou a escolha é por camaradagem?”, questionou a historiadora Irene Pimentel, que chegou a fazer parte do Conselho Consultivo do museu, esta quarta-feira no Facebook.
Ao longo de sete posts, a historiadora, autora de várias obras sobre a ditadura, Salazar e a PIDE, questionou a escolha da EGEAC (que não está efetivamente obrigada a concurso público) e expôs aquelas que considera serem as principais fragilidades da ex-deputada do PCP. A começar no facto de, argumentou, Rita Rato não preencher os três requisitos considerados essenciais, no aviso de recrutamento, para ocupar o lugar: ter “formação superior adequada à função (preferencialmente na área de história política e cultural contemporânea); Experiência em funções similares (preferencialmente na área dos museus); Experiência em programação e produção de exposições”.
https://www.facebook.com/irene.pimentel/posts/10217252606331171
Garantindo não ter concorrido ao lugar, Irene Pimentel escreveu ainda que o concurso “parece não ter tido qualquer transparência” e que vai ficar a aguardar que as atas sejam tornadas públicas. “Terão concorrido cerca de 60 candidatos/as e os/as que eu conheço preenchem os primeiros critérios dos perfis: têm muita experiência em museologia, são doutorados/as e pós-doutorados/as em História Contemporânea. São, além do mais, excelentes historiadores/as com vasta obra publicada”, acrescentou.
“Nascida em Estremoz, 1983, Rita Rato Fonseca é licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, foi deputada à Assembleia da República entre 2009 e 2019 e participou, como Coordenadora do Grupo Parlamentar na Comissão de Educação, Ciência e Cultura (2011-2015)”. Foi assim que a EGEAC, em comunicado publicado esta terça-feira no seu site, apresentou a nova diretora do Museu do Aljube. “Este processo contou com diversas candidaturas e resultou na seleção de Rita Rato Fonseca, que se destacou pelo projeto apresentado e pelo desempenho nas entrevistas realizadas com o júri“, juntou ainda o texto, onde pode ler-se também que a candidata escolhida iniciará funções no próximo dia 1 de agosto.
Ao Público, a historiadora acrescentou acreditar que a filiação de Rita Rato no Partido Comunista “é capaz de ter tido um papel importante” na sua escolha para o lugar.
“Há aspetos da geringonça que ainda se mantêm. E eu até era favor da geringonça, mas falta de transparência em concurso é que jamais. Esta pessoa não parece ter minimamente os pontos principais do perfil que eles próprios conotaram. Além disso, houve presos de vários partidos políticos [nas prisões da PIDE] e é preciso ter muito cuidado. Há o perigo de o [PCP] hegemonizar o património dessa memória. Sempre levantei muito essa questão.”
A de Irene Pimentel não foi a única voz a insurgir-se com a escolha do organismo presidido por Joana Gomes Cardoso que, a par de Luís Farinha, diretor que agora se reforma, Manuel Bairrão Oleiro (assessor para a área do património e dos museus) e Joaquim René (diretor de recursos humanos da EGEAC), fez parte do júri que tomou a decisão.
Logo na terça-feira, num post publicado no blogue Malomil, o historiador António Araújo acusou Rita Rato de não ter formação académica, obra publicada ou experiência curricular para ocupar o cargo para o qual foi eleita. “Tem, sem dúvida, uma apreciável dose de ignorância histórica a seu lado. Mais, Rita Rato, tal qual os alunos cábulas, não sabe História e não se interessa por aprender História”, escreveu o historiador, evocando a célebre entrevista a que Irene Pimentel também fez referência e que Rato, em 2009, então com 26 anos e acabada de chegar à bancada parlamentar do PCP, deu ao Correio da Manhã.
“Uma vez, perguntaram-lhe sobre os crimes do estalinismo. Respondeu a jovem deputada… ouçamo-la, vale a pena:
– Como olha para os erros do passado cometidos por alguns partidos comunistas do Leste europeu?
– O PCP, depois do fim da URSS, fez um congresso extraordinário para analisar essa questão. Apesar dos erros cometidos, não se pode abafar os avanços económicos, sociais, culturais, políticos, que existiram na URSS.
– Houve experiências traumáticas…
– A avaliação que fazemos é que os erros que foram cometidos não podem apagar a grandeza do que foi feito de bom.
– Como encara os campos de trabalhos forçados, denominados gulags, nos quais morreram milhares de pessoas?
– Não sou capaz de lhe responder porque, em concreto, nunca estudei nem li nada sobre isso.”
Ao longo do texto, o historiador e jurista, autor de vários livros e artigos sobre Direito Constitucional, Ciência Política e História Política, acusou Rita Rato de não ter competência para o cargo e atacou diretamente a escolha da EGEAC.
“O Aljube vai passar a ter, coitado, uma directora amnésica. Uma directora ignorante, falsificadora da História e assassina da memória, uma apparatchik que foi tremendamente gozada, e bem, pelo desconcerto completo das suas afirmações sobre Estaline ou a China”,escreveu.
“Nomeá-la é um insulto grave aos historiadores e investigadores portugueses, a gente competente e independente, aos cidadãos desta Lisboa, aos resistentes e às vítimas pela liberdade, a todas elas, sem excepção, aos que lutaram e sofreram no Tarrafal, em Auschwitz, no gulag, na Coreia do Norte, em Hong-Kong, em muitos lugares.”
Numa carta ao diretor, publicada também esta quinta-feira na edição impressa do Público, o historiador de arte Miguel Soromenho, do Museu Nacional de Arte Antiga, alinhou com o coro de críticas. Acusou Rita Rato de não ter, pelo menos, três dos nove requisitos considerados essenciais para ocupar o cargo — “e logo aqueles, cruciais, relativos à proficiência técnica exigida à coordenação superior de um equipamento desta natureza” —, recordou a mesma entrevista ao Correio da Manhã e concluiu: “A escolha da ex-deputada Rita Rato para a direcção do Museu do Aljube é uma vergonha”.