Há uma rábula de Louis CK em que o comediante diz que entre os 40 e os 60 deixamos de existir: já não somos suficientemente bonitos ou suficientemente frescos ou suficientemente novidade para nos prestarem atenção, mas também ainda não somos suficientemente velhos para terem pena de nós e nos carregarem as compras ou nos ajudarem a atravessar a rua.

Presumo que seja consensual que haja uma dose de verdade nisto e que é essa dose de verdade que torna a piada simultaneamente empática e lúgubre; mas do que aqui tratamos não é de semiótica humorística, mas de música, sendo que na música também costuma ser assim.

Artistas vindos do nada que de repente captam a atenção do mundo são às pazadas, de Elvis a Rosalía; também não são raros os casos de artistas que, chegados a uma certa idade, conseguem usar a sua sabedoria e, inclusive, os seus falhanços, para revitalizar a sua carreira – Tom Zé, Johnny Cash e Elza Soares são disso excelentes exemplos.

[“Devils  & Angels (Hatred)”:]

Mas por norma, no universo da pop, há ali uma idade em que ninguém quer saber – acabam as capas dos jornais e das revistas, já não se enchem as maiores salas, faz-se discos para os fiéis e acaba-se a tocar em casinos. A pop é voraz, cruel, precisa constantemente de rostos novos, histórias novas. Quem quer ouvir um velho de 50 anos que não faz reggaeton e cujas letras se aburguesaram ou deixaram de desafiar as regras?

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Tudo isto significa que não era suposto que Rufus Wainwright, cantor e compositor de quase 47 anos, voltasse a ser relevante antes de, digamos, 2033, quando fizesse um disco country altamente orquestrado e dirigido por um produtor de hip-hop da moda, cantando temas de redenção com uma voz cava em gravações marcadas pela luta contra um enfisema pulmonar.

A história de Rufus Wainwright é muito simples: ele chegou e fez um (Poses, de 2001), dois (Want One, de 2003), três (Want Two, de 2004) grandes discos de seguida e depois perdeu-se em rodriguinhos, discos menores, obsessões que não interessam a ninguém e podia hoje ser um mito se simplesmente tivesse morrido de sobredose ou vítima de acidente bêbedo ao volante.

A capa do novo “Unfollow The Rules”, de Rufus Wainwright

Claro que não é isto, nunca é só isto – a história de Rufus é complicadíssima e isso nota-se em tudo, das suas melodias que herdam de uma tradição clássica ao seu narcisismo, o mesmo que lhe permitiu aqueles três discos fabulosos sobre a decadência e a auto-destruição e o mesmo que o fez afundar em si mesmo (e na dita decadência).

Rufus anunciou-se ao mundo em 2001, com “Cigarettes and Chocolate Milk”, o primeiro tema de Poses; tinha 28 e, sob uma simples melodia em compasso quaternário, cantava:

“Cigarettes and chocolate milk
These are just a couple of my cravings
Everything it seems I like’s a little bit stronger
A little bit thicker, a little bit harmful for me”

Havia uma viragem tonal, coros surgidos do nada, ligeiras dissonâncias e ele cantava:

“And then there’s those other things
Which for several reasons we won’t mention
Everything about ’em is a little bit stranger, a little bit harder
A little bit deadly”

Antes de se regressar a uma melodia clássica, de uma elegância tremenda, com cordas suaves em fundo; ele cantava:

“It isn’t very smart
Tends to make one part
So brokenhearted”

[“Cigarettes and Chocolate Milk”:]

Não era sequer preciso ouvir os 4 minutos e 40 da canção: em apenas um minuto e meio, Rufus exibia a sua tremenda voz de barítono, o seu fascínio pela decadência e pela auto-destruição, a sua obsessão pela pop clássica, a que vem do vaudeville e dos honky-tonks, o seu cuidado de arranjador (estamos a falar de uma canção que tem violinos, banjo e oboé) e uma faceta que raras vezes lhe é notada, a de ser experimental (nas tais mudanças tonais ou nos arranjos), pondo essa experimentação ao serviço da canção.

O resto do disco confirmava a promessa daquela primeira canção e era como se David Ackles, Elton John e Randy Newman tivessem tido um filho e lhe houvessem passado o negrume (Ackles), o espalhafato (John) e a acidez (Newman), além do simples talento musical. Mas não, Rufus não é filho de David Ackles, Elton John e Randy Newman – é filho de dois músicos folk, Kate McGarrigle e Loudon Wainwright III, que se separaram quando ele tinha apenas três.

Rufus ficou a viver com a mãe em Montreal e revelou desde muito cedo talento para a música – começou a tocar piano aos seis e aos 13 já andava em digressão com o grupo de família The McGarrigle Sisters and Family, que era composto pela sua mãe, Kate, a sua tia, Anna, ele e a sua irmã, Martha.

Kate McGarrigle e Loudon Wainwright III são realeza folk, mas a realeza não é conhecida pela sua capacidade de ser compreensiva – e o facto de Rufus ser gay (e, segundo o próprio pai, ser muito claramente gay desde cedo) não terá sido, segundo o próprio Rufus, muito bem recebido no seio da família. Rufus dizia, até há uns anos, nunca ter havido uma conversa séria entre ele e qualquer um dos pais sobre a sua homossexualidade.

[“Trouble in Paradise”:]

Rufus foi vítima de violação aos 14 anos; ter-se-á mantido em abstinência durante os sete anos que se seguiram, tendo posteriormente vivido anos de promiscuidade misturados com abuso de substâncias tóxicas e uma elevada frequência de festas em que o deboche era obrigatório.

A promiscuidade, as drogas e o trio de discos constituído por Poses e os dois Want, bem como o exibicionismo e o narcisismo com que se Rufus se apresentava, devem ser lidos à luz destes factos: um rapaz homossexual que cresce rodeado de pais incomuns, igualmente autocentrados, privado de um crescimento comum e que um dia é violado. Rufus não tinha apenas um trauma para ultrapassar – tinha um trauma e dois pais artistas, o suficiente para uma vida de psicoterapia.

Duas coisas surpreenderam-me, quando o conheci, para uma breve entrevista: a sua timidez e o seu pragmatismo. Quando lhe perguntei se estava cansado da viagem, respondeu: “É melhor que ser trolha”; no final da conversa – em que foi absolutamente profissional – perguntou-me, matreiro, se eu precisava de alguma declaração outrageous para apimentar o meu texto. Podia ser uma estrela em ascensão, mas tinha absoluta consciência do seu papel e de como as coisas pop funcionam. Mas não, eu não precisava de nada outrageous.

Os dois discos Want eram avassaladores: tudo ali (a voz, as melodias açucaradas, os arranjos) era tão sobredeseado que corríamos o risco de morrer de sobredose de Rufus; o próprio Rufus corria esse risco e não foi surpreendente ver a sua carreira disparar em várias direções, aparentemente sem um rumo fixo – como fazer de Judy Gardland na Broadway.

O mundo mudou ou foi mudando e hoje os miúdos não esperam uma estrela como Rufus – a cockyness está reservada para as Rosalías. Mas os anos em que deixou de ser capa de jornal trouxeram outras coisas a Rufus, que se notam em Unfollow the Rules – nomeadamente maturidade: há 13 anos conheceu Jörn Weisbrodt, que entretanto se tornou seu marido; há nove anos foi pai de uma rapariga, Viva, cuja mãe biológica é Lorca Cohen, filha de Leonard Cohen. Lorca e Rufus, melhores amigos, partilham a custódia da criança.

Talvez fosse impossível ao jovem Rufus criar uma canção “Unfollow the rules”, que dá nome ao novo disco, e que é praticamente só piano e voz e uma melancolia de homem vivido – a canção cresce, mas só no fim e ainda assim não explode por completo; esta contenção antes seria impossível.

[“Damsel in Distress”:]

Em “Romantical man” ele soa a um Randy Newman sem um pingo de cinismo; as cordas e os coros que surgem realçam a canção e não procuram chamar a atenção para si mesmos; em “This one’s for the ladies” há uma harpa maravilhosa que abre ainda mais uma melodia que se expõe à redenção; e em “Devils and Angels (Hatred)” um arranjo cinemático traz urgência a uma canção com muito de Broadway, mas mantida em rédea curta.

O que isto traz a Unfollow the rules – que é uma frase de Viva, a sua filha – é uma qualidade relaxada, quase de harmonia, que nunca esteve presente na obra de Rufus. “Trouble in paradise”, o primeiro tema do disco, é toda country e honky-tonk e esses seriam géneros que antes Rufus se recusaria a integrar.

Talvez tudo isto seja um truque, talvez Rufus esteja a antecipar já os discos da velhice, a fazer o álbum da redenção quando ainda mal entrou na meia-idade. Mas o certo é que ele foi descobrir à felicidade a boa forma quando já não dávamos um pacato furado por ele.

Bem vindo de volta, senhor pai e marido Wainwright.