Tinha de ser num dia assim: de súbito fez-se noite, um calor abafado que sufocava e, do nada, raios a caírem dos céus, iluminando as trevas que parecem não largar 2020. Quando os raios pararam de cair já cá estava Rapazes e Raposas, o álbum de regresso de B Fachada. Quem sabe, talvez aqueles raios não fossem mais que um streaming de dados dirigidos a um servidor, contendo a loucura que é Rapazes e Raposas, o disco que não sabíamos precisar (mas precisamos).
Bernardo Cruz Fachada, nascido em Lisboa em 1984, merece que os céus anunciem a sua chegada, como aconteceu na passada semana, merece ser visto como um Dom Sebastião da pop chunga e da chula estilizada, como o profeta da admirável confusão nunca domável que é Portugal: de 2008 a 2012, movido a um furacão criativo capaz de envergonhar Prince no seu estúdio, Fachada lançou tantos e tão bons discos que um tipo fica cansado só de os enumerar: em 2008 houve Viola Braguesa e Um Fim-de-Semana no Pónei Dourado, em 2009 B Fachada, em 2010 os espantosos Há Festa Na Moradia e B Fachada É Pra Meninos, em 2011 o furioso Deus, Pátria, Família e outro B Fachada, em 2012 a obra-prima absoluta Criôlo e uma revisão de Os Sobreviventes (com Minta e João Correia), além de O Fim, o disco que marcou o fim desta sucessão brutal de discos, uns mais outros menos conseguidos mas, em geral, todos de qualidade muito elevada.
Como todas as tempestades, Fachada amainou, foi ser pai (várias vezes), ver gatinhos na internet, fumar, ver a RTP África – ninguém sabe ao certo o que ele andou a fazer, que mudanças internas passou, se o fígado ainda está no mesmo sítio ou se os pulmões estão agora no lugar dos rins.
Do que temos certeza é que Fachada regressa agora mantendo algumas das suas obsessões – a natureza caricatural do portuguesinho médio e lambe-botas, por exemplo – mas transformado no criador de um novo género, a que poderíamos chamar “synth-folclore psicadélico”, e isto só porque é suposto inventarmos géneros para categorizar música.
Quantos discos conhecem que abram com meia-dúzia de canções assim (e peço desculpa mas vou ter de proceder a uma longa enunciação e descrição) como a primeira meia-dúzia de temas de Rapazes e Raposas?
[ouça “Rapazes e Raposas” na íntegra através do Bandcamp:]
“Regabofe d’abertura”, a canção que inaugura o disco, é um proto-funk insuflado de afro-pop, com toalhas de sintetizadores e palminhas, uma faixa tão estival quanto surpreendente e inqualificável; logo a seguir estamos na “Canção da rejeição”, que a dada altura descobre, por entre os synths, um dulcíssimo refrão polvilhado a u-uhs; e ainda só vamos na terceira canção quando damos por nós a celebrar essa maluqueira psicadélica que é Trad-mosh, uma faixa que consiste em empilhar uma data de sintetizadores por cima da viola braguesa e sobrepor uma série de melodias excecionais a cruzarem-se (esta é, já agora, a faixa que os Animal Collective queriam ter feito em Feels e não conseguiram).
Continuo ou paro? Vou avançar com a descrição de mais três temas: A mula e a raposa é uma das faixas mais difíceis de qualificar – nas notas que tirei ora escrevo que soa meio a Manu Chao, ora que lembra Diabo na Cruz; mas também apontei que há aqui um lado fado que me recorda da voz de Adriano Correia de Oliveira e lá pelo meio há um som que parece ser de theremin, antes de chegar o final cheio de coros. Esta curiosíssima peça tem o condão de poder ser dançável mas também melancólica, o que a torna propícia para um passo de dança num funeral.
E eis que chegamos a “Padeirinha e Padeirinha”, que merece parágrafo próprio, porque há dez anos uma faixa assim, com estes synths, seria qualificada como bem parola, excessiva no azeite, sendo que no mundo pós-B Fachada podemos sentir-nos livres para a considerar bem gostosa; e que ótimo refrão que dali sai (o azeite é saudável, o azeite é alegria). Nesta altura somos chegados a “Aritmática”, que (esta sim) lembra Diabo na Cruz, à conta do que parecem ser adufes e uma gaita de amolador, canção trad-avariada-futurista, que passa a ser a minha expressão para definir a música de B Fachada, pelo menos quando ele está nesta forma.
Acabei de vos fornecer seis longas e detalhadas descrições das seis primeiras canções de Rapazes e Raposas – e cuido que vós estareis confusos. Cuido que vos pergunteis: mas a que diabo soa isto, afinal?
Soa a um compêndio de tudo o que B Fachada já fez, mas não como um álbum de fotografias em que cada canção lembra uma foto do passado; não, o que aqui acontece é que todos os Fachadas passados (e são tantos) confluem para produzir o tal som “synth-folclore psicadélico”, o mencionado folclore trad-avariada-futurista: está lá a viola braguesa, estão os synths pelos quais posteriormente se apaixonou, está a música africana, está o nosso folclore e – talvez seja da produção – está algo de psicadélico, que concede às canções um condão de nos levar em viagem, como se pairássemos no cosmos e não soubéssemos quando a canção vai pousar.
Liricamente, Fachada continua a ser um mestre de sacar frases que podíamos escrever num post-it na porta do frigorífico, continua a manter um carácter lúdico único na forma como brinca com as palavras e continua a olhar para o país e dar-lhe porrada enquanto ri; “Lambe-cus”, faixa formidável, começa assim:
“Lambe-cus têm uma atitude excecional perante a vida”, entre xilofones e o que parece ser um violino, “és o máximo, fantástico, um gajo superior, de hora a hora estás melhor”, canta Fachada e é inevitável rir perante isto.
“Toma todos os partidos
lambe-cus está sempre rodeado de amigos (…)
Olha para os teus filhos
são a puta perfeição (…)
Lambe-botas, chupa-rabos, trata-bichas, lambe-cus, só quem é parvo não adora lambe-cus”.
O pré-refrão, a que a maravilhosa melodia regressa sempre, é “Lambe-cus está sempre rodeado de amigos”.
Não é difícil a um português reconhecer este tipo de figura entre os seus conhecidos; e não é difícil reconhecer o génio de Fachada, não só no retrato como na capacidade de musica um conjunto de palavras simultaneamente hilariantes e verrinosas, que não perdoam nada. Fachada, no seu jeito brincalhão, é um anarca sempre pronto a colocar bombas.
A aventura fachadista sempre teve um pendor de análise moral mãos dadas com a subversão, facto absolutamente notório em É Pra Meninos e que está escancarado neste “Lambe-cus”; mas também sempre foi uma viagem sensorial, com maior propensão em Criôlo, disco bem sexuado; essa atenção ao sexo regressa agora em à mínima atenção, em que um homem pondera a sua incapacidade de entender sinais femininos – Fachada faz isto sem entrar no discurso MeToo, sem entrar em qualquer discurso, apenas adotando um tom confessional (a lata deste homem é tanta que por vezes sentimos que estamos a espreitar-lhe o cérebro pelo buraco da fechadura – e é um buraco gostoso).
O único problema de Fachada, nos dias que correm, é o próprio Fachada – ou antes, a sua obra anterior, que é tão profícua, de tanta qualidade e tão concentrada num período esfuziante que tudo o que ele faça posteriormente, como Rapazes e Raposas, corre o risco de não ter o mesmo impacto dos discos lançados nesse espaço-tempo em que tudo parecia ser Fachada.
Se assim for quem perde é o português, porque o Fachadês, esse avança sem medos, com uma imaginação tremenda, orgulhoso das porradas que nos dá e das palavras que escolhe para nos caricaturar. Está demasiado calor neste mundo pandémico, mas de repente veio um raio de luz e podemos sorrir.