Investigadores da Universidade de Harvard, Estados Unidos, descobriram como durante a gravidez o sistema imunitário protege o feto de infeções sem destruir as células infetadas, algo nunca antes descrito.
De acordo com os resultados da investigação, anunciados num artigo esta quinta-feira publicado na revista científica “Cell”, cuja primeira autora é a portuguesa Ângela Crespo, é possível eliminar infeções sem afetar o desenvolvimento fetal.
No processo estão em causa as células “natural killer”, ou exterminadoras naturais — que são conhecidas há décadas e que têm como função matar células infetadas — e uma proteína antibacteriana chamada granulisina.
Ângela Crespo, em declarações à Agência Lusa, lembrou que as células “natural killer”, que estão presentes em todo o corpo, normalmente eliminam células “em stress”, como as células cancerígenas, através de proteínas tóxicas. Mas numa gravidez normal, as células com proteínas tóxicas não são destruídas (o que colocaria em risco a vida do feto) porque essas células “são reguladas de maneira diferente” e “estão lá para ajudar”.
O que descobrimos é que essas células que vivem no útero, além das proteínas tóxicas, têm níveis elevados da proteína granulisina. Quisemos ver se tinham capacidade para eliminar infeções bacterianas e o que esperávamos é que elas, ao detetarem a célula da placenta infetada, eliminassem essa célula da placenta. O que nos surpreendeu foi que elas só transferiram (para a célula infetada) a proteína antibacteriana e não outras proteínas que matariam a célula”, explicou a investigadora.
Para já, “tentar usar granulisina numa infeção bacteriana é preliminar”, mas a investigação ajuda a compreender melhor o funcionamento do sistema imunitário na gravidez, disse Ângela Crespo, quando questionada sobre como a descoberta poderia ajudar na luta contra doenças.
Na gravidez, acrescentou, há muitas vezes infeções que não são detetadas. Por isso, “perceber como o sistema imunitário está envolvido é importante”. Aprofundando o estudo, poderá ser possível perceber como eliminar infeções congénitas antes que estas “criem problemas”, afirmou.
Durante a gravidez, o feto é um organismo semi-incompatível com o sistema imunitário materno, uma vez que metade dos genes provêm do pai. A investigação, segundo uma nota divulgada a propósito da publicação desta quinta-feira, quis perceber como consegue a mãe tolerar a presença de um feto e ao mesmo tempo manter a imunidade contra infeções. Se não forem controladas, essas infeções podem causar atrasos no desenvolvimento, anomalias congénitas ou mesmo o aborto espontâneo.
“Demonstrámos que as células ‘natural killer’ da decídua humana [zona onde a placenta invade o útero], que são as células imunitárias do útero mais abundantes durante o primeiro trimestre da gravidez, têm a capacidade de eliminar infeções bacterianas dentro de células da placenta, sem matar essas mesmas células”, e fazem-no formando um pequeno tubo entre si e a célula da placenta, injetando assim a granulisina na célula infetada, explicam os investigadores.
Esse mecanismo imunológico de eliminar uma infeção intracelular sem matar a célula infetada — uma estratégia que permite ao sistema imunitário manter a tolerância ao feto ao mesmo tempo que o protege de infeções — “nunca tinha sido observado antes”.
O trabalho de investigação envolveu o uso de células humanas mas também foram feitas experiências com ratos. Os ratos não possuem granulisina naturalmente, mas se for usado um modelo transgénico que a tenha, a probabilidade de abortos espontâneos é menor, disse Ângela Crespo.
Nos Estados Unidos desde 2010, a investigadora estudou biologia molecular na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, fez investigação em Portugal e escolheu para doutoramento a questão da tolerância da grávida a um feto que lhe é metade estranho. Depos de estudar em Coimbra rumou a Harvard.
Neste momento, Ângela Crespo está a acabar o pós-doutoramento no “Boston Children’s Hospital, Harvard Medical School” e, no futuro, gostava de trabalhar para a indústria biofarmacêutica. Para já está a trabalhar na investigação do novo coronavírus, que provoca a doença Covid-19.