Após ter sido noticiado que a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) autorizou a desmontagem de vestígios da antiga mesquita almorávida de Lisboa, os quais se encontram sob o claustro da Sé Patriarcal — situação denunciada pelo Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (Starq) —, esta quarta-feira de manhã o diretor-geral convidou os jornalistas para uma visita ao local, tendo afirmado que “não há outro objetivo que não seja salvaguardar e valorizar esses vestígios”.
Mas o que parecia ser uma ocasião para Bernardo Alabaça desmontar os argumentos do sindicato, inicialmente apresentados numa notícia do jornal Público, acabou por servir para contrariar a posição do próprio diretor-geral do Património. Duas arqueólogas responsáveis pelas escavações que decorrem na Sé de Lisboa — com vista à instalação de um núcleo arqueológico aberto ao público — confirmaram aos jornalistas que, afinal, “serão retirados do local e destruídos” alguns vestígios da antiga mesquita. Trata-se de um monumento que remonta a inícios do século XII, antes da conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques, em 1147.
Alexandra Gaspar, uma das duas coordenadoras científicas da escavação, afirmou: “O que o sindicato aponta, nós também. Estou de acordo com a crítica à desmontagem dos vestígios. Era possível fazer de outra forma, claro, há sempre maneira a nível de engenharia. Não podemos estar de acordo com a destruição de dois compartimentos de um monumento de caráter único como este. Deixamos em aberto a possibilidade de haver uma alteração ao projeto, para podermos manter visíveis estes dois compartimentos, juntamente com os outros que lhes estão contíguos. Depende do poder político”.
A arqueóloga assinou uma nota técnica favorável à conservação total dos achados, incluindo os da mesquita e outros de origem romana que ali se encontram, mas a DGPC decidiu noutro sentido. “Dissemos que não concordávamos com a desmontagem destes vestígios. O despacho superior foi que se desmontasse.” Quem assinou esse despacho foi a arqueóloga Catarina Coelho e o diretor-geral do Património, garantiu Alexandra Gaspar.
Não havendo alterações à decisão, no futuro núcleo arqueológico será apenas visível uma parte dos arcos do antigo vestiário da mesquita, desaparecendo o minarete e uma parede com uma janela. “Fica aqui um arco desgarrado, com uma parede de betão à frente”, descreveu Alexandra Gaspar.
Ana Gomes, a outra coordenadora científica, acrescentou que a decisão de desmontagem assinada pela DGPC está enquadrada na Lei de Bases do Património Cultural, de 2001. No entanto, “temos de contextualizar a lei”, disse. “O modo como as leis são usadas fica ao critérios das pessoas. A lei diz que não pode existir [preservação] se [o vestígio arqueológico] não for escavado na totalidade. Foi feita num período em que, com exceção das coisas mais extraordinárias que eram escavadas em Lisboa, o resto não era [preservado].”
Bernardo Alabaça: “Não se pode dizer que não há impacto nenhum”
Confrontado com estas duas opiniões, o diretor-geral do Património confirmou a musealização de apenas alguns vestígios islâmicos. “Temos de ter um equilíbrio entre a preservação do património e a estabilidade do conjunto. É um equilíbrio sempre difícil. Não é só uma questão científica, é também de segurança”, disse, referindo-se ao presumível risco de desabamento da muralha sul do claustro.
De acordo com o mesmo responsável, “a intervenção prevê a edificação de estruturas de betão armado que permitam criar uma cripta arqueológica visitável”. “Estas estruturas têm de ser plantadas em algum lado, não há outra hipótese, não havia outra forma.” Para Bernardo Alabaça, “o contacto das estruturas com solo tem algum impacto nos vestígios descobertos” e por isso “houve uma alteração ao projeto original”, de 2016.
“Nessa altura desconhecia-se a existência destes vestígios arqueológicos. Entretanto, adaptámos o projeto, minimizando o impacto. Não se pode dizer que não há impacto nenhum. Há, mas também há necessidade de conferir estabilidade a esta intervenção”, explicou Bernardo Alabaça ao Observador.
Apesar de ter afirmado inicialmente que não está prevista qualquer nova alteração ao projeto de instalação do núcleo arqueológico nos claustros da Sé, por este se encontrar “no ponto ótimo”, Bernardo Alabaça acabou por conceder, já no fim da visita, que ainda nesta quarta-feira seria enviado um pedido de reunião extraordinária à Secção do Património Arquitetónico e Arqueológico, do Conselho Nacional de Cultura (órgão consultivo do Governo para a área da cultura), para que este se pronuncie sobre possíveis alterações. Ou seja, para saber se a decisão atual é para manter ou para revogar.
“Desde já afirmo que nos vamos vincular àquilo que seja o resultado desse parecer. Se o parecer for negativo, temos de estudar alternativas, o que implica mais tempo de espera”, garantiu o diretor-geral do Património. Naquela secção do CNC têm assento, entre outros, o próprio Bernardo Alabaça e dois subdiretores-gerais do Património Cultural, de acordo com a lei.
Por seu lado, a arqueóloga Catarina Coelho, diretora do departamento dos bens culturais, da DGPC, declarou que “não há contradição entre a nota técnica e o despacho”.
“As colegas arqueólogas responsáveis pela intervenção em curso advogam que se deve manter in situ os vestígios do banco e estrutura do vestiário e o alicerce do minarete. O despacho hierárquico, sem prejuízo do valor patrimonial dos vestígios, foi exarado tendo em conta o parecer do projetista de estruturas, segundo o qual o projeto de estabilização tem de ser executado sob pena de ruir parte do paredão sul da Sé. Não é a coisa de que mais gostaria, mas como membro de uma hierarquia tive de decidir em prol da segurança do edifício e das pessoas”, esclareceu Catarina Coelho.
Sindicato diz que DGPC encontrou uma “desculpa para desculpar o indesculpável”
No exterior da Sé, já depois da visita às ruínas, encontrava-se a dirigente sindical Jacinta Bugalhão (que é também arqueóloga na DGPC). Declarou que “a alegação de que é preciso destruir parte da mesquita por causa de problemas de estabilidade surgiu pela primeira vez num comunicado da DGPC em resposta às notícias da semana passada”. “Estou absolutamente escandalizada com esta estratégia da DGPC, é uma desculpa para desculpar o indesculpável”, afirmou.
“A DGP, que tinha este processo fechado a sete chaves tomou esta decisão e esperava que ela passasse. Mas isto chegou à esfera pública. Os arqueólogos não conseguiram engolir isto e começaram a falar, foi assim que a informação chegou ao sindicato. E só depois é que a DGPC tirou da cartola este argumento maravilhoso de que o claustro cai. As pobres da ruínas da mesquita é que estão a fazer perigar a muralha do claustro? Estão brincar, se calhar pensam que as pessoas são estúpidas. Não há informação nenhuma neste processo que diga que a conservação daquelas ruínas coloca em risco o claustro da Sé ou a própria Sé. Não há aqui património contra património, isso é mentira”, acrescentou Jacinta Bugalhão, que preside à assembleia-geral do Starq.
Ao lado de Regis Barbosa, presidente do sindicato, Jacinta Bugalhão reafirmou o que já constava num comunicado sindical emitido na segunda-feira: “Este processo é secreto, é de lei que seja público, mas ninguém o pode ver.” Disse também que o Starq ainda não pediu para ver o processo, porque está a reagir a uma informação que lhe chegou há poucos dias através de arqueólogos sindicalizados, mas sugeriu ter informações fidedignas do seu lado.
Sindicato e Fórum exigem que DGPC justifique “destruição” de antiga mesquita em Lisboa
A sindicalista congratulou-se perante o anúncio de que a DGPC vai pedir um parecer ao Conselho Nacional de Cultura. “Fico contente, porque é assim que se cumpre a lei.” Por enquanto, sublinhou, “o despacho que permite afetar a mesquita é nulo, é ilegal, porque vem de um órgão que não é competente”. “A DGPC pode propor, pode levar o assunto ao Conselho Nacional de Cultura, pode levar à senhora ministra, mas não pode decidir sozinho e foi o que fez.”
Se o parecer do CNC for no sentido de manter a decisão atual, Jacinta Bugalhão coloca um cenário de contestação. “Nessa hipótese remota, contestaremos, que é o que se faz em democracia. Há contestação técnica, científica e legal.”
Na interpretação de Jacinta Bugalhão, a DGPC decidiu afetar uma parte dos vestígios da mesquita porque “tem dificuldade em alterar o projeto” atual de requalificação, “o que é custoso, dá trabalho e é difícil”, e porque “há timings e convém haver inaugurações” com “o dirigente que lá está para inaugurar.”
“Mesquitas como esta só na Argélia”
A obra de “recuperação e valorização” dos vestígios arqueológicos Sé de Lisboa foi adjudicada pelo Cabido da Sé Metropolitana de Lisboa por cerca de quatro milhões de euros e tem a DGPC como entidade gestora e responsável pela intervenção. O arquiteto Adalberto Dias, responsável pelo projeto, não esteve presente esta quarta-feira.
A exploração arqueológica da área iniciou-se em 1990 e decorreu até 2004, tendo sido retomada por escassos meses entre 2010 e 2011. A atual campanha arqueológica iniciou-se em novembro do ano passado e nesse contexto emergiram, já este ano, novos e inesperados vestígios da antiga mesquita.
“São únicos a nível peninsular e de Marrocos. Mesquitas almorávidas como esta só têm paralelo na Argélia”, informou a arqueóloga Alexandra Gaspar. “Ficou enterrada a partir de finais do século XII, quando se construiu o claustro da Sé.”