O que define um clássico? O passar sem beliscões o teste do tempo, o ser uma referência recorrente, o servir de bitola para quem vem atrás? Se é esse o caso, então Seinfeld é um clássico, um Aristóteles das graçolas, um “Lago dos Cisnes” do stand up. Não sei se ainda é cool gostar da obra de Jerry Seinfeld e não sei se as novas gerações têm noção de que há um Antes de JS e um Depois de JS na comédia. Mas Isto Tem Piada?, livro que reúne obsessivamente as notas do comediante ao longo dos últimos 45 anos, foi publicado esta terça-feira, dia 6, em lançamento mundial (Portugal incluído, com uma tradução competente) para nos relembrar que, sempre que um miúdo pega num microfone e se lança na arena de um bar bafiento, o deve de algum modo a um nova iorquino introvertido que nunca quis fazer outra coisa na vida que não comédia.

Dou aulas de escrita de humor desde 2007 e já apanhei todo o tipo de alunos, dos 14 aos 82 anos, dos espalha brasas aos arrasadoramente tímidos, dos wannabes da fama rápida às formiguinhas trabalhadoras. Quando entro numa sala já é raro o aluno que não consigo encaixar numa categoria. É também comum que, nos seus primeiros trabalhos, os escribas novatos emulem o trabalho dos consagrados. Numa primeiríssima abordagem, isto não é necessariamente errado. Os jovens pintores de outros séculos começavam por simplesmente imitar os seus mestres.

A capa da edição portuguesa de “Isto Tem Piada?” (Vogais)

Mas enquanto não encontravam a sua própria voz (spoiler: muitos nunca encontram), vi as marés a sucederem-se. Às vezes davam à costa uma data de Brunos Nogueiras, outras vezes de Sinel de Cordes, outras ainda de Eduardos Madeiras ou de Ricardos Araújos Pereira. Uns adoravam os Monty Python, outros queriam ser o Ricky Gervais, outros achavam que iam escrever o novo “Friends” e outros ainda queriam mostrar que conheciam o cómico de stand up mais indie e hipsterizado. Seinfeld ia sendo recorrente, claro – mas como todos os clássicos, parecia só uma aposta segura, previsível. Era um bom bife numa altura em que andava tudo doido era para descobrir o melhor ramen.

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O que talvez escape a alguns é que Seinfeld, mesmo parecendo algo datado, simboliza uma forma de fazer humor marcadamente da viragem do século, finais dos anos 90 em diante, em muito à boleia de uma série em nome próprio que explica no livro ser “sobre a forma como os humoristas obtêm material”. Pode não nos soar agora àquele fresco que buscamos no zapping de milhares de séries em streaming, mas sem Jerry Seinfield não teríamos as sitcoms tal como são, os talk shows como são, não teríamos algumas das coisas que hoje em dia consideramos vanguardistas. Só que é um tipo de humor de observação não participante que pode parecer algo ultrapassado num mundo da comédia cada vez mais autobiográfico e trágico – basta ver como exemplos Louie CK, Aziz Ansari ou Ramy Youssef.

Tudo o que sei desta vida aprendi com “Seinfeld”

Isto Tem Piada? vai buscar o seu nome à pergunta que os comediantes fazem entre si (ou a eles mesmos) quando estão na fase mais embrionária de produzir e testar material. O autor explica-o no início do livro, no capítulo que introduz os seus primeiros passos na comédia (as 500 páginas do livro estão divididas por décadas, dos anos 70 até aos dias de hoje). Estas entradas de capítulo são, aliás, a parte mais interessante da obra, deixando água na boca para uma eventual autobiografia. São introduções curtas, que se leem de um trago, e que servem de coluna vertebral a um compêndio de centenas e centenas de curtas piadas de stand up, organizadas cronologicamente — sendo possível, através de um índice remissivo, procurá-las por tema.

Para quem é, afinal, este livro? É para fãs:

a) de Seinfeld
b) da anatomia de construção de uma piada
c) ambos os casos ao mesmo tempo

Quem nunca esboçou sequer um sorriso com as suas considerações sobre ir visitar bebés ou sobre fazer a barba num avião não se vai deixar convencer por esta espécie de caderninho preto de notas transformado em publicação oficial. Quem procura algo altamente estruturado também sairá desiludido, porque estamos perante um raio x à cabeça do comediante no momento de cinzelar uma graça eficaz, sem nenhuma prioridade narrativa. Mas para todos os que passaram a olhar para os pequenos detalhes do quotidiano de outro modo por causa da análise de Seinfeld a anúncios a detergentes, é um maná de pequenas pepitas de ouro a serem garimpadas em frente aos nossos olhos.

“Ainda não sei ao certo de onde vêm as piadas. Talvez de uma mistura emocional de tédio, agressividade, intensa acuidade visual e um tipo de agilidade de mente que nos permite transformar o que vemos naquilo que queremos ver”, explica.

Até o mediano Seinfeld é sempre o incomparável Seinfeld

Para os estudiosos de como funciona a comédia (sim, somos uns chatos mas existimos), o primeiro livro do comediante desde 1993 — ano de lançamento de Seinlanguage, por cá editado pela Gradiva em 2004 — é uma autêntica sebenta. Para quem procura treinar o seu olhar cómico, pegar no banal e distorcer através do exagero, do anticlímax, da inversão, da incongruência, estamos perante um manual de excelência. O próprio refere-se a estas piadas selecionadas e depuradas como “ideias que surgem do nada e que não significam nada”, mas mostra aquilo que são na realidade: trabalho, muito trabalho. Explicado pelo próprio:

“Nunca encontrei um humorista de stand up que não fosse minimamente engraçado. Mas, na maior parte dos casos, foram os que se mataram a criar constantemente novo material de qualidade que conseguiram ir subindo muitos degraus na escada”.

E esta é recorrentemente uma desilusão para quem se inicia na escrita de comédia – o suor necessário até se produzir algo aceitável. Ser o tipo com graça na mesa de café, entre amigos, não chega. É talvez uma das mais importantes lições de Isto Tem Piada?: ninguém fica Seinfeld ou Ricky Gervais ou Bruno Nogueira ou sequer o terceiro miúdo a aparecer no line up do “Levanta-te e Ri” sem muito esforço e sem se perguntar constantemente se “isto tem piada?”. Muitas vezes, não vai ter e vai ser necessário mandar abaixo e construir de novo. Faz parte. Jerry fá-lo há 45 anos, ainda com um friozinho na barriga.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa