O secretário de Estado do Cinema e do Audiovisual, Nuno Artur Silva, volta a estar debaixo de fogo, agora por causa da nova proposta de lei para financiamento do cinema, cuja votação marcada para esta terça-feira à tarde na Assembleia da República será provavelmente adiada. Um grupo de centenas de profissionais, onde se incluem produtores como Paulo Branco e Luís Urbano ou realizadores como João Salaviza e Teresa Villaverde, diz que as novas regras representam a “morte do cinema português”, para o qual alegadamente passariam a ser canalizadas verbas muito abaixo do que é possível.

Mas há um segundo motivo para a polémica: o Plano Estratégico para o Cinema e Audiovisual para os próximos cinco anos, documento a elaborar pelo ICA e ainda sem data de apresentação. A Plataforma do Cinema (que reúne a esmagadora maioria dos profissionais do sector, desde logo o Sindicato dos Músicos, dos Trabalhadores do Espetáculo e do Audiovisual; a Associação Portuguesa de Realizadores; e vários festivais de cinema de Lisboa e do Porto) pediu este domingo à ministra da Cultura que demita Nuno Artur Silva e o presidente do ICA, Luís Chaby Vaz, porque o plano estratégico a anunciar tem tido a participação da consultora britânica Olsberg SPI, o que é considerado “um atestado de menoridade política infligida pela tutela a si mesma e ao setor que regula”.

Na sexta-feira, em reunião com representantes do setor, em Lisboa, as linhas gerais e o calendário do plano estratégico começaram a ser apresentadas em língua inglesa, o que provocou a ira de vários presentes e levou ao cancelamento do encontro — entretanto sem nova data.

Netflix não tem de pagar taxa, mas pode querer pagar, adianta Ministério da Cultura

A chamada Lei do Cinema prevê hoje que as obras cinematográficas e audiovisuais sejam apoiadas pelo ICA, um instituto público, mas as verbas não têm origem no Orçamento Geral do Estado e sim em “taxas de exibição”, também chamadas “taxas de publicidade”, cobradas todos os anos a “exibidores, operadores de televisão, operadores de distribuição e operadores de serviços audiovisuais a pedido” com sede em Portugal.

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As novas regras em cima da mesa consistem na transposição para Portugal de uma diretiva europeia de 14 de novembro de 2018 e implicam alterações de fundo. Na versão do Governo, passaria a haver “maior abrangência e equidade” entre os diversos operadores do setor audiovisual, lê-se na proposta de lei. Além dos chamados operadores tradicionais — distribuidores por cabo Meo, Nos e Vodafone e canais por eles transmitidos cujo domicílio fiscal seja o território português — também os serviços de audiovisual a pedido — como a Netflix, a HBO, o YouTube ou canais como o AXN e a Fox, desde que tenham sede em países da União Europeia — começariam pela primeira vez a pagar uma taxa anual que reverteria para o ICA com vista ao financiamento de obras através de concursos públicos. Além disso todos seriam, cumulativamente, obrigados a fazer investimentos diretos no cinema e no audiovisual, sem intervenção do ICA.

Fonte oficial do Ministério da Cultura confirmou ao Observador esta interpretação e acrescentou que as taxas de exibição podem valer cerca de um milhão de euros. Em particular a Netflix não vai estar sujeita ao pagamento da taxa, por ser uma plataforma de streaming sem publicidade, mas pode escolher uma de duas opções: ou paga uma taxa ou faz “investimento direto em produção europeia em língua portuguesa”, revelou a mesma fonte, detalhando que o valor dessa taxa ou do investimento será “calculado com base no volume de negócios ou número de assinantes”.

Esta proposta de lei (número 44/XIV) tem vindo a ser discutida desde julho na comissão parlamentar da Cultura e já recebeu dezenas de contributos. Num desses contributos, o próprio ICA inscreveu uma frase que aparentemente contradiz a informação agora adiantada ao Observador pelo Ministério da Cultura: “Nenhum serviço está sujeito simultaneamente aos dois regimes [taxa de exibição e investimentos em produção], não havendo, pois, dupla oneração.”

A votação na especialidade está prevista para esta terça a partir das 14h00, mas antes terá de ser votado o pedido de adiamento que o Partido Comunista apresentou esta segunda-feira. O adiamento é dado como certo, até porque o Partido Socialista veio entretanto defender um período mais alargado de discussão, o que de resto vai ao encontro do pedido deste domingo da Plataforma do Cinema, conforme noticiou a Agência Lusa.

Profissionais estão divididos

Da parte dos profissionais do setor há duas correntes de opinião face à transposição da diretiva europeia. De um lado, produtores, realizadores, atores e técnicos que trabalham maioritariamente em cinema de autor. De outro lado, produtores de cinema e empresas de audiovisual com uma visão considerada menos estatizante. As divergências entre ambos não são novas e registaram-se, por exemplo, em 2017, quando esteve em causa a escolha de jurados para os concursos de financiamento do ICA.

Os primeiros entendem que a proposta de lei do Governo, pela qual dá a cara Nuno Artur Silva, “revela uma total desconsideração pelo setor do cinema e pretende destruir décadas de políticas públicas de incentivo e promoção do cinema português”. Num abaixo-assinado divulgado pelo jornal Público no domingo, e que na tarde de segunda-feira já tinha ultrapassado as seis centenas de subscritores, acusaram o Ministério da Cultura de “reverência a empresas privadas e grupos económicos estrangeiros”, em referência à Netflix e a serviços idênticos.

Argumentam que as contribuições previstas das plataformas não-tradicionais são irrisórias, quando comparadas com o que deverá ser exigido que paguem em França e noutros países europeus, e pretendem que o Governo posso exigir pagamentos mesmo que aquelas empresas não tenham presença em solo comunitário.

“Esta proposta de lei não é clara e está cheia de ambiguidades e armadilhas”, afirmou a realizadora Marta Mateus, uma das promotoras do abaixo-assinado. “Não há garantias de que os operadores tenham de fazer investimentos em produtoras portuguesas, acreditar nisso é uma ingenuidade. Além disso, países como a Alemanha têm vindo a exigir pagamentos avultados a plataformas como a Netflix, enquanto cá se está a falar de valores ridículos.”

Representantes da outra corrente de opinião vêm na proposta do Governo uma oportunidade para se criar o que antecipam ser uma indústria portuguesa audiovisual mais liberal e voltada para a exportação. Estão contra o adiamento da aprovação da proposta do Governo, mas à partida já perderam nesta frente. Também fizeram publicar uma carta no Público, nesta segunda-feira, com mais de uma centena de assinaturas.

“A grande tendência na Europa é a convergência entre cinema e séries de ficção, por isso, faz sentido que autores e realizadores possam ter outras oportunidades de trabalhar sem terem de estar passivamente à espera dos resultados dos concursos do ICA”, disse a argumentista e produtora Pandora da Cunha Telles, da Ukbar Filmes. “Deve haver espaço para todos. O ICA não tem de ser a única esperança de quem quer fazer cinema, até porque muitas pessoas que ficam de fora dos concursos têm boas ideias e boas histórias para filmar.  Sou pela diversidade de cinematografias e acho que a diretiva europeia vai permitir essa abertura”, acrescentou.

Uma porta-voz do gabinete do secretário de Estado Nuno Artur Silva disse que, por enquanto, o governante não quer fazer comentários. No domingo, à Agência Lusa, Nuno Artur Silva tinha declarado que a proposta de lei, tal como está, “reforça” e “não tira um euro ao sistema” de financiamento do ICA. Disse ainda que os custos de funcionamento do ICA (despesas com pessoal, instalações), no montante de 3,7 milhões de euros, passarão a ser alocados ao Orçamento do Estado, o que permitirá canalizar aquele montante para concursos de cinema e audiovisual.

Notícia alterada a 14 de outubro, às 15h10, para correção da referência ao Plano Estratégico do ICA, que em rigor é designado Plano Estratégico para o Cinema e Audiovisual para os próximos cinco anos.