Em 1948, Edith Piaf ofereceu duas coisas a Charles Aznavour, que era então seu secretário, letrista e também aspirante a cantor: uma operação ao nariz e uma máquina de filmar de 16 mm Paillard Bolex. Aznavour descobriu-se picado pelo bichinho do cinema amador e passou a levá-la consigo para toda a parte e a filmar tudo em seu redor, à medida que se ia tornando cada vez mais famoso e os espectáculos, ou as férias com a família, o conduziam aos quatro cantos do mundo. Até ao final da vida, o cantor nunca parou de filmar, passando dos 16 mm ao Super 8, depois para o vídeo e para o digital.

[Ouça Aznavour em 1963 no Carnegie Hall:]

Pouco antes de morrer, em 2018, com 94 anos, Aznavour, que tinha todo este material catalogado e guardado num compartimento secreto da sua casa no Sul de França, confiou-o ao seu produtor e grande amigo Marc Di Domenico, também realizador de um documentário sobre ele, “Autobiographie”, para que o transformasse num filme, dizendo-lhe: “Tu vês coisas aqui que eu não vejo, avança.” Assim, Di Domenico escolheu, digitalizou e montou uma seleção de imagens, com a ajuda de um dos filhos do cantor, Mischa, que também participa na produção deste documentário.  

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E eis “Aznavour por Charles”, composto por imagens feitas entre 1948 e 1982 (Di Domenico não quis usar mais material depois desta data, que corresponde à altura em que Aznavour deixou de filmar em película e passou para o VHS) e que se situa algures entre o auto-retrato e o filme autobiográfico. A esmagadora maioria destas imagens estão inéditas. O cantor mostrava-as apenas em projeções caseiras, à família e alguns amigos, e a sua terceira mulher, Ulla, e os filhos, nunca tinham visto os filmes feitos por ele antes deste seu terceiro e último casamento. A narração (por Romain Duris) que acompanha “Aznavour por Charles” é composta por palavras de Aznavour, extraídas de textos seus, entrevistas e biografias.

[Veja o “trailer” de “Aznavour por Charles”:]

Para além de mostrar o gosto genuíno e o entusiasmo saboreado que Charles Aznavour tinha em filmar os lugares onde ia, o que lhe acontecia e os que o rodeavam, “Aznavour por Charles” é um registo da ambição de sucesso que movia o cantor (que ele aliás não esconde, e lhe deu cabo do primeiro casamento), e da sua busca de um amor perdurável e da felicidade em família, gozada no conforto e na segurança que as recompensas do seu talento lhe dariam, mas que chegariam apenas com a sua terceira mulher, a sueca Ulla Thorsell. Neste desvendar da sua privacidade, Aznavour inclui mesmo aquele que foi o maior desgosto da sua vida: a morte, por “overdose”, aos 25 anos, de Patrick, o filho que teve de uma relação extraconjugal nos anos 50.  

[Veja uma entrevista com Marco Di Domenico e Mischa Aznavour:]

Observador, generoso e sempre mais interessado nas pessoas anónimas do que nos monumentos, nos marcos históricos ou noutras celebridades como ele, Charles Aznavour filmava com a mesma emoção e espontaneidade com que cantava, fosse num bairro da lata de La Paz, fosse nas ruas da sua bem-amada Nova Iorque, fosse no bairro de Montmartre onde cresceu e vendeu jornais ao lado de outra futura vedeta, Lino Ventura. E nunca se esqueceu das suas origens nem da sua condição de filho de refugiados da diáspora arménia em França. Uma Arménia que visitou pela primeira vez 40 anos depois de ter nascido em Paris, onde conheceu a avó e outros familiares, acontecimento que deixou também registado em película.

[Veja um excerto do filme:]

Pelas imagens deste documentário ora efusivo, ora melancólico, reflexivo e confessional, que mapeia os altos e baixos sentimentais, anímicos, familiares e artísticos de Charles Aznavour através do olhar do próprio (tirando algumas imagens de arquivo, concertos e programas de televisão) sobre a sua vida, as pessoas e o mundo, passam as rodagens de filmes como “Disparem Sobre o Pianista” ou “Um Táxi para Tobruk”, os espectáculos em salas como o Carnegie Hall ou o Olympia, ou o convívio com outras grandes celebridades. Mas também momentos de descontracção em casa, de memórias íntimas e de interrogação pessoal, sempre associados ou desencadeados por filmagens feitas em Paris ou Hong Kong, Abidjan ou Erevan.

“Aznavour por Charles” fica ainda como um curiosíssimo documento visual sobre o mundo tal como ele era entre os anos 50 e o início da década de 80. O intérprete de “Formidable” e “La Bohème” captou dezenas e dezenas de horas de filme, e “Aznavour por Charles” dura 83 minutos. Marco Di Domenico pecou apenas por poupadinho.  É que nos deixa cheios de vontade de ver mais.