No final de agosto, no jornal espanhol ABC, o jornalista Tomás González-Martín escrevia que este Mundial de Moto GP de 2020 não tinha, afinal, esse nome. Era o “Oto GP” — porque lhe faltava um M, o M de Marc Márquez. Este domingo, Joan Mir tornou-se o novo campeão mundial de Moto GP na etapa da Comunidade Valenciana, em casa. E mostrou a Tomás González-Martín, ao motociclismo e a Espanha, que a modalidade nunca ficou orfã de um M. Só passou a ter o M de Mir.

A lesão grave de Marc Márquez, contraída numa queda durante uma perseguição a Fabio Quartararo logo no primeiro fim de semana do Mundial, deixou o seis vezes campeão mundial fora do Campeonato — e arredado, pelo menos este ano, de chegar aos históricos sete títulos de Valentino Rossi. Sem Márquez, que domina a modalidade há sensivelmente uma década, a corrida pelo primeiro lugar da classificação tornou-se a mais aberta e disputada dos últimos anos. E este domingo, dia em que só precisava de terminar no pódio para bater Quartararo e Álex Rins, Joan Mir foi sétimo, aproveitou o abandono do italiano e confirmou o conto de fadas que o tornou o campeão mais improvável das últimas décadas.

Joan Mir sucede a Marc Márquez e é o novo campeão do mundo de Moto GP. Miguel Oliveira acabou em sexto em Valencia

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Aos 23 anos e a pilotar uma Suzuki, o espanhol natural de Palma de Maiorca está a terminar da melhor maneira aquela que foi apenas a segunda época no Moto GP, depois de ter sido campeão do mundo de Moto 3 em 2017. Uma conquista que, apesar de tudo, tem sido constantemente minorizada não só pela ausência de Márquez mas também pelo facto de esta ter sido uma temporada completamente atípica, mais curta do que o normal, devido à pandemia. Algo que nunca afetou Joan Mir, como o próprio explicou numa entrevista recente ao ABC.

“Não considero que este Mundial tenha menos valor porque ele não está. Não o sequestraram. Caiu enquanto dava 100% por este Mundial. Foi uma falha. Não lhe pode sair sempre tudo bem. Não é o super-homem, ainda que eu próprio o tenha pensado muitas vezes. É o homem a bater e é o mais rápido. Mas não se pode ganhar todos os anos. Às vezes há outros pilotos que estão mais fortes ou que gerem melhor o ano”, que até começou o percurso desportivo através do skate, já que o pai tinha uma loja de skates e patins. Aos 10 anos, optou por seguir o legado de Joan Perelló, um primo distante, que entre 2009 e 2011 chegou a estar em várias corridas de 125 cc.

Poucos, em condições normais, conseguem tornar-se profissionais no motociclismo e no automobilismo depois de começar tão tarde. Mas, nesta altura, Joan Mir só queria sentir a velocidade. Em plena era dourada de Jorge Lorenzo — e assim como havia feito o primo anos antes –, Mir inscreveu-se na escola do pai do três vezes campeão do mundo de Moto GP, em Palma de Maiorca. Só ficou um ano e nunca se adaptou realmente ao método de Chicho Lorenzo. Apoiou-se na Federação Balear de Motociclismo e foi a partir daí que chegou à Red Bull Rookies Cup e, já em 2015, ao Mundial de Moto 3. Passaram apenas cinco anos desde que entrou no circo das motas, apenas 13 desde que trocou o skate pelas duas rodas: período temporal que chegou e sobrou para o espanhol mostrar que o prazer que tirava da velocidade estava acompanhado por um enorme talento.

“A carreira dele é muito curiosa por causa disso. Começou muito tarde mas queimou etapas muito rápido. Ainda que tenha vencido o Mundial de Moto 3 em 2017, não é muito conhecido pelo grande público. Mas é muito bom”, explicou Paco Sánchez, representante do piloto, que ao El Mundo recordou ainda que Joan Mir é um dos mais altos do pelotão, com 1,80 metros, algo que não é propriamente habitual. Fora das pistas, o espanhol leva uma vida mais do que normal: vive em Andorra, com a namorada e os três cães que partilham, longe das festas e da agitação que seriam naturais. É um “miúdo de Maiorca, apaixonado por este desporto”, que se afasta de tudo em todas as segundas-feiras depois de um Grande Prémio.

MOTO-PRIX-AUS

O espanhol foi campeão em Moto 3 há três anos, com a Leopard Racing Honda

“No primeiro dia depois de um fim de semana desses desligo de tudo. Quando chego a casa faço coisas totalmente diferentes, passeio os cães… Vivemos na montanha e agora com a Covid-19 só podemos passear pela montanha porque não podemos descer ao centro da vila. Sem Covid, costumo ir para perto do mar. Faço esse tipo de coisas, despojar-me”, confidenciou o piloto.

A primeira vitória, apesar de estar na liderança da classificação há algumas semanas, só apareceu no fim de semana passado, neste mesmo circuito Ricardo Tormo, em Valencia, mas no Grande Prémio da Europa. “Custou. Dois anos. Parecia que estava a chegar mas nunca chegava. O que fez com que o sabor tenha sido muito melhor. Chegou na melhor altura”, comentou. O truque foi a consistência e os quatro pódios consecutivos que conquistou nesta final do Campeonato e que a Suzuki não tinha desde 1994 — uma Sukuzi que voltou a ter um título mundial 20 anos depois, desde que Kenny Roberts Jr. foi campeão em 2000.

Joan Mir ganhou o Mundial mais disputado da última década, inscreveu o nome na história do Moto GP e tornou-se o elo mais forte no ano em que Marc Márquez não esteve em competição. O Mundial pode ter ficado sem M durante algum tempo — mas Mir apressou-se a garantir que a letra voltava ao sítio certo. E a resposta que deu, na semana passada, quando foi questionado sobre a pressão de estar à beira de ser campeão mundial, mostra que é muito mais um “miúdo de Maiorca” do que uma super estrela.

“É certo que sinto menos pressão do que os meus rivais. Fui sempre muito duro de cabeça, talvez isso me beneficie. É que isso tudo da pressão… Há pressões muito piores do que estar num Mundial. Pressão é tudo o que está a acontecer com a Covid-19, as pessoas que não conseguem pagar a renda… Comparado com isso, a minha pressão é uma piada. Se sou campeão de Moto GP, fico muito bem; se não sou, também fico bem. Desportivamente, é um momento importante, é aquilo para que trabalhei a vida toda, mas pressão é o que se está a passar com muitíssima gente estes dias”.