Em 1975, Tom Waits editou o seu terceiro disco, num formato até então inusitado e que, a menos que o Alzheimer já se tenha instalado definitivamente, não terá sido usado desde então: Waits reuniu uma série de amigos, de forma a emular o ambiente de um cabaret (habitat natural das suas canções) e gravou Nighthawks at the Diner (de 1975), um – por assim dizer – falso disco ao vivo, quase exclusivamente compostos de originais, mas repleto de piadas na introdução das canções, paragens, aquele para-e-arranca típico dos concertos íntimos, que normalmente desaparece da mistura final de um ao vivo.
Por mais arriscado que o formato fosse (e era-o), também não deixava de ser uma escapatória: depois da ótima receção de Closing Time, o seu disco de estreia, de 1973, repleto de temas apropriados a um Frank Sinatra sem dinheiro para um fraque novo, o velho puído e roto nos cotovelos, um Frank Sinatra cuja carreira tivesse caído na sarjeta dos clubes minúsculos de strip, repletos de empresários de má fama e prostitutas cansadas, depois da ótima receção de Closing Time, dizia, Waits levara uma certa porrada com o seu segundo disco, The Heart of Saturday Night, de 1974 – não que as canções fossem más, notavam os críticos, era só que aquela mistura de canção afilhada de Gershwin para um crooner com problemas crónicos de fígado, e as narrativas repletas de (surpresa) prostitutas cansadas e amores impossíveis já não eram novidade.
Waits não foi o primeiro nem o último artista a confrontar-se com o problema do segundo disco, ou do disco a seguir ao primeiro disco de sucesso. Que fazer? Manter a fórmula do anterior? Mudar tudo? Confiar na inspiração e gravar o que da pena brotar? Os artistas congeminam as suas obras durante anos em anonimato, e um dia começam a ser falados por meio mundo – e esse feedback, juntamente com a expectativa do que fará a seguir, alteram para sempre as condições em que o artista trabalha.
Nighthawks at the Diner era um disco extraordinário, que não fugia particularmente às diretrizes dos anteriores, mas colocava as canções no ambiente certo: o cabaret para onde se dirigiam os solitários, os desesperados, os casais adúlteros, gente que algo encravado na espinha, que queriam tanto ouvir canções como deparar com uma voz amiga, empática, que entendesse os dilemas da existência. Waits conseguia isso tanto nas canções como nas introduções às mesmas, arrancando gargalhadas – dos amigos, é certo, mas ainda assim gargalhadas. (E dos ouvintes também.)
Quarenta e cinco anos depois, a estratégia repete-se, não com Tom Waits, que por esta hora estará na sua garagem a limpar peças de um trator da II Grande Guerra, ou a observar à lupa o interior de uma barata, mas com Marlon Williams, o menino-rapaz que em 2018 viu o seu segundo disco, Make Way For Love, explodir no mainstream, contra todas as expectativas – antes de mais porque apesar de ser um disco folk era um disco de folk tremendamente esquisita, negra, para lá de desesperada, sónica e liricamente sufocante.
Não que lhe tenha perguntado, mas não é difícil imaginar Marlon acordado à noite, entre rebound girls, a perguntar-se “Mas o que raio faço a seguir?”. Não foi um falso disco ao vivo repleto de piadas de bêbedo a introduzir as canções, essa era a cama de Tom Waits, não a de Marlon Williams – este deita-se num colchão folk todas as noites, com uma coberta country a aquecê-lo. É essa a sua génese, o quinhão de pauta onde ele mais facilmente encontra oxigénio. E foi exatamente a esse universo que ele voltou, num disco de canções simples, sem grandes adornos, que no seu cômputo total ocupa apenas 29 minutos – e é escrito a meias com um duo de amigos, Kacy & Clayton. Sim, é uma fuga, é uma forma de evitar o “disco a seguir ao primeiro disco de êxito”, mas é uma bela fuga.
[“Isn’t it”:]
Uma fuga que nem sequer é propriamente novidade: a carreira de Marlon a solo é escassa (dois discos) mas a meias com outros há meia dúzia de outros discos: com os The Unfaithful Ways gravou dois (Four First Songs, de 2009, Free Reign, de 2011) e com o amigo Delaney Davidson editou três discos de country, Sad But True: The Secret History of Country Music Songwriting Volume One (2012), Sad But True: The Secret History of Country Music Songwriting Volume Two (2013) e Sad But True: The Secret History of Country Music Songwriting Volume III (2014). A palavra fuga talvez não seja, então, adequada – recuo seria mais apropriado, regresso à casa partida, à casa da mamã, ao útero musical.
Isso explica as canções de Plastic Bouquet, menos ornadas, menos produzidas, menos sufocantes que as de Make Way for Love: isto é folk simples, country trôpega, uma toalha com pão, queijo, chouriço e vinho, nada de sofisticação, hipsterismos ou desvios gourmet. E honestamente, não é preciso mais nada: pegue-se em “Plastic Bouquet”, um honky-tonk que teria caído na perfeição na obra de Hank Williams: a voz principal é de Kacy Anderson, metade do duo Kacy & Clayton, que ainda se compõe de Clayton Linthicum, que usualmente se ocupa da guitarra; Marlon surge nos coros e divide as guitarras tradicionais com Clayton e durante dois minutos e 57 segundos somos embalados pela doce melancolia de uma carroça arrastada por um cavalo velho e cansado, enquanto espreitamos a pradaria.
“Light of Love”, uma lindíssima e simplicíssima canção, leva Plastic Bouquet da década de 1920 para a década de – digamos – 1940, o a trama das vozes de Marlon e Kacy a cruzarem-se na perfeição. Kacy possui uma daquelas vozes pelas quais a country anseia: com alcance, capaz de uma suavidade fantasmagórica, mas sem nunca perder carnalidade, que nunca se dá a volteios excessivos e tem aquele nasalado natural que de imediato torna cada canção mais credível.
[“You’re Mind is Walking Out”:]
Quando ela puxa pela voz lembra ligeiramente uma Angel Olsen, ainda que menos desvairada, menos megalómana, uma Angel Olsen ainda rootsy, que ainda não tivesse descoberto os sintetizadores ou os arranjos de cordas. Percebe-se o que Tweedy viu ou ouviu nela, neles – o líder dos Wilco convidou-os para fazerem as primeiras partes da banda, isto vai para meia década, e depois produziu o quarto álbum da dupla, The Siren’s Song.
Depois de mais um belo dueto, “Your Mind’s Walking Out”, chega o primeiro tema em que Marlon lidera: Kacy surge nos coros com um sibilar semelhante a Margo Timmins dos Cowboy Junkies, uma guitarra slide atravessa como uma lâmina esta canção lenta e triste e, caramba, que coisa estranha é esta de sentirmos prazer com tamanha tristeza dos outros.
Talvez as pessoas que gostem de canções tristes sejam pessoas que nunca aprenderam a lidar por completo com a sua tristeza, a guardá-la na gaveta certa, a arquivá-la com a etiqueta exata, e lhes seja mais fácil lidar com a tristeza dos outros, cristalizada nos 3 minutos de uma canção – a canção aborda um assunto de forma sintética (que é o que três minutos permitem), o ouvinte consegue facilmente criar empatia com o tema e, embalado pela melodia, encontra ali o conforto que nunca surge no fim das suas próprias tristezas.
E talvez as pessoas que escrevem canções tristes sejam pessoas que nunca aprenderam a lidar por completo com a sua tristeza, a guardá-la na gaveta certa, a arquivá-la com a etiqueta exata, e lhes seja mais fácil lidar com a tristeza escrevendo canções sobre o que os magoa e de repente forma-se um triângulo, em que há o ouvinte, a canção e a tristeza e o ouvinte consegue triangular a sua tristeza, filtrá-la de forma segura através da canção, enquanto o criador encontra no reconhecimento do ouvinte a recompensa pelo seu sofrimento.
[“I Wonder Why”:]
Tudo isto é especulação de um quarentão aborrecido – o facto é que Marlon Williams ouviu uma canção de Kacy & Clayton na rádio e de imediato se enamorou daquela voz, pensando que fosse alguma antiga cantora dos anos 40 ou 50 recentemente recuperada ou reeditada, como tantas vezes descobriu. Quando percebeu que era um duo de gente viva o seu espanto foi de tal ordem que não descansou enquanto não se encontrou com eles, o que ainda implicou algum esforço, visto Kacy & Clayton serem provenientes de Saskatchewan, uma terreola perdida no Canadá, sem direito a ponto no mapa.
A empatia entre as duas vozes é notória e em alguns momentos dei por mim a sorrir, a pensar que dado o seu track record de se apaixonar por cantoras é muito possível que Williams tivesse aberto a boca para cantar sempre embeiçado. Da última vez que se envolveu com uma cantora, Marlon acabou com o coração espezinhado e daí nasceu Make Way For Love.
Não vou torcer para que Williams e Kacy se envolvam e depois corra tudo mal, só para ter um álbum de génio de Marlon um dia destes. Não preciso: estou a ouvir a extraordinária “Last Burning Ember”, penúltima faixa de Plastic Bouquet e neste exato instante, a minha tristeza triangulada através de uma canção perfeita, nascida de um sofrimento que (hossana) não é o meu – e não preciso de mais nada (exceto, talvez, chocolate e whiskey, que me esqueci de comprar antes das 13 horas).