A venda de livros em supermercados e hipermercados vai ser permitida a partir de segunda-feira, depois de quase um mês de proibição, confirmou o primeiro-ministro, que se referiu à decisão como a “única exceção” às regras hoje em vigor e que transitam quase integralmente para o próximo Estado de Emergência, de 15 de fevereiro a 1 de março.

“A única exceção é a que resulta do decreto do senhor Presidente da República, que nos proibiu de proibir a venda de livros e material escolar nos estabelecimentos que se mantêm abertos, ou seja, supermercados e hipermercados”, afirmou António Costa, em conferência de imprensa nesta quinta-feira ao fim da tarde. O primeiro-ministro acrescentou ainda: “Temos de respeitar as limitações impostas pelo decreto presidencial e, portanto, estando proibidos de proibir a venda desses livros, temos de permitir a venda de livros e material escolar nos supermercados e hipermercados.”

As palavras do chefe do Governo levantaram duas dúvidas: se outras lojas, como as FNAC, os CTT e as papelarias — que estão a funcionar —, também já podem voltar a vender livros e se os livros passíveis de serem vendidos são de qualquer género e categoria ou apenas os destinados a estudantes.

Um comunicado do Conselho de Ministros publicado às 19h11 dissipou a primeira dúvida: “Passa a ser permitida a venda, nos estabelecimentos de comércio a retalho que se encontrem já em funcionamento, de livros e materiais escolares.” Ou seja, a autorização vai além dos super e hipermercados. Quanto à segunda dúvida, o presidente da RELI – Rede de Livrarias Independentes, José Pinho, disse ao Observador não ter ficado esclarecido sobre quais as lojas que podem abrir e se apenas os livros escolares estão autorizados. “Ainda tenho dúvidas, temos de esperar pelas próximas horas”, referindo-se à publicação do decreto-lei em Diário da República.

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Numa primeira reação, e já depois de ter lido o comunicado do Conselho de Ministros, o vice-presidente da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) disse ao Observador não ter dúvidas sobre a interpretação a dar às palavras de António Costa: “Estão autorizados todos os pontos de venda de retalho já abertos e estamos a falar de livros e também de material escolar, é a mesma frase do decreto presidencial”, entendeu Pedro Sobral.

À parte estas dúvidas, o vice-presidente da APEL, classificou a alteração das regras como “uma pequena boa notícia”. “Por um lado, resolve em parte o acesso da população ao livro, mas não resolve o problema do setor. As grandes livreiras e as livrarias independentes continuam fechadas e são os principais canais de venda de livros, não só porque vendem mais como também porque são os locais de eleição para a venda de livros no entender da APEL e da maioria dos autores”, explicou.

Segundo José Pinho, que é também proprietário da livraria Ler Devagar, em Lisboa, “a descofinar-se os livros, deveria ser também nas livrarias”, porque “se uns podem voltar a vender, os outros também podem”. “Seria mesmo muito estranho, seria uma péssima notícia, que os hipermercados, os correios e outros locais pudessem vender livros, menos as livrarias independentes”, sublinhou.

Últimos preparativos para a abertura da Feira do Livro do Porto, 26 Agosto de 2020. A edição deste ano realiza-se entre os dias 28 de agosto e 13 de setembro nos jardins do Palácio de Cristal. (ACOMPANHA TEXTO DE 27/08/2020) ESTELA SILVA/LUSA

Feira do Livro do Porto, em agosto do ano passado

Proibição portuguesa é “caso único” na Europa

A proibição de venda de livros, que cessa parcialmente a partir de segunda, foi uma das novidades introduzidas pelo Governo neste confinamento, em comparação com o confinamento de março e abril do ano passado. O próprio executivo reconheceu que se tratava de uma proibição — aplicada às lojas físicas, não ao comércio eletrónico. O despacho do Ministério da Economia de 15 de janeiro, que ordenou às grandes superfícies que vedassem a área de exposição de livros, para que não se criasse uma situação de alegada concorrência desleal face às livrarias fechadas, referia claramente que há “produtos cuja comercialização não é permitida” em lojas físicas, incluindo livros. E o decreto do Conselho de Ministros de 19 de janeiro, que restringiu ainda mais o confinamento, utilizava mesmo a palavra: “Proíbe-se a venda ou entrega ao postigo em qualquer estabelecimento do setor não-alimentar.” De resto, o primeiro-ministro utilizou esta quinta-feira a expressão “proibidos de proibir”

A diretora da Federação Europeia de Editores (FEP), que representa 29 associações nacionais incluindo a portuguesa APEL, afirmou esta semana ao Observador que “tanto quanto se sabe” Portugal “é o único país onde as livrarias não podem vender livros ao postigo enquanto estão encerradas”. A FEP apoia a posição da APEL sobre este assunto e anunciou a 2 de fevereiro que tinha escrito ao Governo português a pedir a reabertura das livrarias e o fim da proibição de venda em hipermercados e em todas as lojas físicas que já hoje estão autorizadas a funcionar no quadro do confinamento.

A partir de Bruxelas, a diretora da FEP, Anne Bergman-Tahon, acrescentou que “os cidadãos portugueses dependem muito mais da compra de livros em hipermercados do que os de qualquer outro país da União Europeia, pelo que a proibição tem um impacto enorme no sector editorial”. Uma posição indiretamente confirmada por Manuel Alberto Valente, antigo diretor do grupo Porto Editora, que no domingo gravou um vídeo no Facebook sobre este tema e admitiu que “a importância que os supermercados têm na venda de livros em Portugal é um bocadinho uma abencerragem que praticamente não existe em nenhum outro país da Europa”.

Segundo Anne Bergman-Tahon, é difícil caracterizar com rigor o que se passa nos restantes países europeus ao nível da venda de livros “porque as situações são díspares”. Mas disse ter conhecimento de que “mesmo nos países em que as livrarias estão fechadas estas podem vender ao postigo”. “Só em França é que os hipermercados foram proibidos de vender livros, mas por um período curto. Em Itália e na Bélgica as livrariam foram consideradas lojas essenciais e mantiveram-se abertas no segundo confinamento. Nos países nórdicos as livrarias nunca fecharam apesar das óbvias restrições no número de clientes autorizados a entrar”, resumiu a diretora da FEP.

Quanto vale o mercado do livro em Portugal?

A venda de livros em Portugal estava a crescer ligeiramente antes da chegada da pandemia e as grandes superfícies eram as que mais beneficiavam desse aumento. Aliás, nas primeiras 11 semanas de 2020, ainda sem Covid-19, venderam-se 2,2 milhões de livros (mais 60 mil unidades do que em 2019, um crescimento de 3%), o que correspondeu a 27,4 milhões de euros (mais 200 mil euros). Mas depois veio o primeiro confinamento.

Entre 16 de março e 31 de maio o mercado do livro caiu 53% (19% nas grandes superfícies e 70% nas livrarias). Entre junho e dezembro a perda estancou-se e foi de apenas 14% (12% nos hipermercados e 15% nas livrarias). Contas feitas, no primeiro semestre de 2020 saíram 2.791 novas edições, muito abaixo dos 4.696 títulos do primeiro semestre de 2019, e o valor total de vendas cifrou-se nos 49,2 milhões de euros — menos 19 milhões do que em 2019. Quanto a perdas totais de 2020, chegaram a 26 milhões de euros.

Os dados fornecidos ao Observador pela APEL têm origem nos estudos semanais da consultora GFK e ilustram a crise que vai tomando conta deste setor da economia. Os diversos agentes do mercado — incluindo livreiros independentes, muitos dos quais estão fora destes estudos —, tendem a considerar que “painel de retalho” da GFK é um instrumento fiável e atualizado sobre vendas de livros. Os números do Instituto Nacional de Estatística ou do Banco de Portugal apresentam vieses, como seja desde logo a não inclusão de grandes empresas do setor, como os hipermercados, cuja atividade é classificada como “comércio não especializado”.

Os dados da GFK, conhecidos como “Painel Retalhista de Livros”, cobrem cerca de 88% de todos os pontos de venda de livros novos e não-escolares em Portugal e medem o mercado “à saída de caixa”, ou seja, consideram o preço pago pelos clientes por cada unidade. O painel avalia dois segmentos: “livrarias e outros” (grandes redes como a Bertrand, a Almedina e a LeYa; algumas livrarias independentes como a Lello, a Multinova ou a Americana; postos dos CTT; rede FNAC; Worten; El Corte Inglés; Staples; Notes, entre outros) e ainda mass merchandisers ou grandes e pequenas superfícies (Continente, Modelo, Pingo Doce, Auchan, Press Linha, Toys’r’Us etc.). De fora estão as livrarias online, tabacarias, papelarias e muitas livrarias independentes, ou seja, cerca de 12% do mercado.

Perdas totais do setor livreiro chegaram a 26 milhões de euros no ano passado

Romance comercial e autoajuda nos hipermercados, ficção e ensaio nas livrarias

Fechado 2020, as grandes superfícies representaram 26,1% do valor total de livros vendidos, enquanto as livrarias tiveram uma quota de 73,9%. Isoladamente, o mês de dezembro, que é sempre considerado o mais importante para o setor livreiro, mostrou uma recuperação extraordinária face às perdas da pandemia: apenas menos 2% de vendas do que em dezembro de 2019. Segundo a APEL, já em 2021, janeiro e fevereiro tiveram “indicadores positivos”, daí que a proibição de venda de livros em lojas físicas tenha sido recebido como “um cenário catastrófico”.

A mesma fonte mostra que os hábitos de compra dos portugueses se mantiveram inalterados, antes e durante a pandemia, no que à tipologia de livros diz respeito. As grandes superfícies continuaram a vender mais romance, autoajuda, livros infantis e juvenis. As livrarias e outros (onde se insere FNAC e a Notes, por exemplo) venderam sobretudo ficção de pendor menos comercial, ensaio e livros para adultos.

Quanto às vendas online, perfizeram entre 8 a 10% das vendas totais de livros em 2020, mas 80 a 90% dessas transações registam-se apenas no Grande Porto e na Grande Lisboa, de acordo com a APEL. Já as livrarias independentes, centenas das quais não estão incluídas nos estudos da GFK, foram estudadas isoladamente em fins de 2019 pela APEL. São esses os dados mais recentes e mostram que as livrarias independentes representam 1,2% dos pontos de venda de livros (tendo em conta todos os canais de vendas, desde hipermercados a tabacarias, passando pelos gigantes do retalho livreiro) e contribuíram com cerca de 3% das vendas totais de livros naquele ano em Portugal.