Pouco ou nada há de digital nestas memórias que Alexandra Moura resgatou na mais recente empreitada criativa. Falamos da primeira metade da década de 90 e da criadora portuguesa cujo modus operandi assenta numa arqueologia das próprias vivências — da infância inocente e alegre aos primeiros passos em nome próprio, na viragem do século.
Este domingo, Alexandra voltou a Milão, agora sim com a aparelhagem virtual em velocidade cruzeiro. Mais do que um processo, “Subversão”, o título da coleção apresentada lado a lado com os grandes nomes da moda italiana, traduz um sentimento que faz a ponte com a época. É remontar aos anos de estudante no IADE, onde concluiu o curso de Design de Moda em 1996, mas também de habitué nas noites do Frágil e de uma mente em constante absorção.
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“Recuar aos anos 90 não é só recuar à altura em que comecei a estudar moda. Foi também aí que fiquei mais atenta ao que se passava à minha volta, ao cinema e à música, e em contacto com a classe artística”, recordava ao Observador a poucos dias de apresentar a coleção. Antes das referências culturais e dos elementos convocados a viajar no tempo, foi a tentação de subverter, própria da juventude, a abrir caminho para o próximo inverno. “Sentia, naquela altura, uma necessidade de ver isso na moda, de deturpar as formas, de misturar os tecidos e as cores, de ver peças ao contrário, de formas de vestir inusitadas”, continua.
O que outrora foi exercício estudantil, é hoje o reafirmar da linguagem Alexandra Moura, com reminiscências de uma década ainda analógica. “Quis explorar este lado mais plástico associado ao meu percurso como estudante. Fui aos meus trabalhos, aos meus sketchbooks, aos meus projetos finais. Era tudo manual, com fita-cola e camadas”, explica a criadora.
Sem perder de vista a matriz Alexandra Moura, a coleção é surpreendentemente nova, a começar pela cor. Entre os tons escuros — os prediletos da marca — há lugar para uma paleta enérgica, ácida até, inspirada pelo techno. O cetim e um outro material com acabamento de vinil datam ao de leve a coleção, como se os slip dresses que marcaram a década tivessem sido convertidos em silhuetas de streetwear. Outras peças foram concebidas para assumir o efeito de colagem, seja no sentido de uma composição criativa, que está na base de um novo padrão, seja enquanto sobreposição de camadas de fita.
Simultaneamente, há fórmulas das quais Alexandra não abre mão. Fluidez e estrutura revezam-se, bem como o justo e o oversized. Os géneros diluem-se na versatilidade da maioria das peças, há costuras viradas para fora, bainhas inacabadas, camadas, folhos, laçadas e franzidos. É com eles que a criadora portuguesa tem conquistado sucessivos lugares de destaque no panorama da moda — primeiro em Londres, depois em Milão –, bem como o seu público mais fiel, maioritariamente concentrado na Ásia.
Moda à distância: como é que Alexandra chega ao outro lado do mundo?
“Tínhamos tudo programado para ir a Milão, mas com o piorar da situação em Portugal acabámos por decidir ficar”, contextualiza. A alternativa ao desfile com plateia parece simples e imediata, mas não é. Há um ano, Alexandra viu o seu momento internacional cancelado, em pleno eclodir da pandemia em Itália. Em setembro, apanhou o avião, mas o desfile filmado e posteriormente transmitido não fez jus à natureza conceptual da marca. “Com tantas marcas que continuam a aparecer, sinto que ser só mais um desfile não fazia muito sentido. O nosso ADN tinha de estar na própria apresentação”, refere.
Rui Aguiar e Pedro Carvalhinho foram os primeiros a juntar-se. O primeiro na fotografia, o segundo na realização, ambos no exercício criativo que levou a equipa de Alexandra ao atelier de Pires Vieira, “um espaço já por si mágico”, como descreve a criadora. “Não basta fazer uma coisa extremamente bonita, sobretudo quando não pode ser tocada. Por isso é que é tão importante a imagem que criamos em torno da coleção, a forma como a comunicamos. Isso sim vai traduzir-me num maior alcance”, adiciona.
Comercialmente, não há escapatória — os entraves a viagens e contactos presenciais traduziram-se numa quebra nas vendas na estação passada. Sem poder tocar na peças, percecionadas ao longe nos novos showrooms digitais, a maioria dos clientes joga pelo seguro e acaba por favorecer nomes já implementados no mercado. “Não é fácil para um buyer que está no Japão comprar sem tocar”, resume. Por muito que se inove, a moda continua a precisar de proximidade.
Na fotogaleria, veja a coleção de Alexandra Moura apresentada, este domingo, em Milão.