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Springsteen e Obama contam-nos histórias daquilo que não vimos

Este artigo tem mais de 3 anos

The Chief e The Boss fizeram "Renegades", um podcast que é uma viagem política por uma América que querem resgatar. Fora algumas ironias, vale pelo embalo, pela mística e pela profundidade inesperada.

O eterno The Boss e o antigo Commander in Chief, juntos num bate-papo on-line. Disponível no seu telefone. De novo, the times are a-changin’, como cantava outro ícone d’América
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O eterno The Boss e o antigo Commander in Chief, juntos num bate-papo on-line. Disponível no seu telefone. De novo, the times are a-changin’, como cantava outro ícone d’América

O eterno The Boss e o antigo Commander in Chief, juntos num bate-papo on-line. Disponível no seu telefone. De novo, the times are a-changin’, como cantava outro ícone d’América

Até que se tornou uma expressão risível: “A América”, os dois primeiros “A” bem abertos. Para trás ficaram os horizontes sem fim, o sapateado de Gene Kelly, o homem da Marlboro, Rocky a gritar por Adrian, estádios a gritar por Bruce. Para trás ficou também a parte de nós que sonhava com a terra dos justos, dos livres e das oportunidades. Nas duas eleições de Barack Obama, esse ideal ainda palpitou, mas já todos éramos demasiado cool e corretos. Falávamos em “Estados Unidos” e nuns asséticos “EUA”. 2020, entretanto, estava ao virar da esquina.

“Como é que aqui chegámos?”, pergunta o mesmo Barack Obama, no arranque de “Renegades: Born in the USA”. A pergunta é retórica. O ex-presidente dos Estados Unidos está no Spotify a apresentar o podcast que acaba de lançar com o músico Bruce Springsteen. É natural que a mera enunciação destes dois nomes provoque um sobressalto. Mais ainda neste contexto. O antigo Commander in Chief e o eterno The Boss juntos num bate-papo on-line. Disponível no seu telefone. De novo, the times are a-changin’, como cantava outro ícone d’América.

Obama explica: depois de oito anos na Casa Branca, vieram um sucessor que lhe foi em tudo antagónico, um país cada vez mais dividido e uma pandemia. Vieram conflitos raciais e as mais mirabolantes teorias da conspiração. “Como é que aqui chegámos? Como poderemos encontrar um caminho de volta a uma história americana mais unificadora?” Ao longo do ano passado, diz, a questão dominou muitas das suas conversas com família e amigos, incluindo Springsteen, que conheceu durante a campanha de 2008 e de quem se tornou próximo. Trocariam, pois, algumas ideias sobre o assunto e partilhariam o resultado com a Internet.

[ouça “Renegades: Born in the USA” através do Spotify:]

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Será no mínimo ingénuo pensar que um programa disponibilizado em streaming na forma de ficheiro áudio possa mudar o mundo. Como quem acha que palavras organizadas na forma de frases podem levar a revoluções. Mesmo que encabeçado por duas estrelas globais. Mesmo que com um som cristalino, uma edição irrepreensível e uma extensa equipa, tudo pouco habitual num meio conhecido pelas produções caseiras e low-cost. Só que “Renegades” surge como parte de uma consistente estratégia de soft-power que o casal Obama tem vindo a empreender, com livros, palestras, playlists, documentários – e agora podcasts. Este é o segundo em parceria com o Spotify, depois de “The Michelle Obama Podcast”, que se estreou em julho. A produtora chama-se Higher Ground, que é também o nome de um tema de Stevie Wonder, que é também o autor do primeiro disco que o jovem Barack comprou, como ficamos a saber no terceiro episódio dos três já disponíveis, “Amazing Grace: American Music”.

Aquela que será uma série de oito episódios de cerca de 40 minutos cada foi gravada em poucos dias na quinta de Springsteen, entre cães, cavalos e “um milhar” de guitarras, no “grande estado da Nova Jérsia”. O tom é o de uma longa conversa entre dois amigos. Imaginamo-los sozinhos, a meia luz, copo de whiskey na mão e o silêncio da noite como companhia. Pura ilusão, claro. Desta intimidade controlada emergem duas vozes hipnotizantes, a solidez de um a contrastar com a suavidade do outro. E se às tantas a bonomia se torna quase irritante, depressa se resolve em investidas precisas por temas instrumentais, da raça à diferença. Obama assume os comandos. Introduz, pergunta e também responde. Por vezes na qualidade de pai, outras como quando era filho, sempre como político. Um olhar mais cínico não resistirá a constatar a evidência: são dois homens de meia idade, poderosos, privilegiados, de uma era que talvez já tenha passado, a discorrer num estúdio de luxo sobre as glórias e tragédias da América. Sic transit gloria mundi.

Os americanos são ótimos nisto. A arquitetura de uma boa história. O poder de um pormenor. “Estava a tentar lembrar-me da primeira vez que nos vimos”, arranca Obama, drigindo-se a Springsteen. “Lembro-me de pensar, ‘ele é muito discreto, talvez até um pouco tímido’.” E assim, sem darmos por isso, mordemos o isco. “Tímido.” Passados mais de dez anos, o primeiro afro-americano a ter ocupado a Casa Branca conclui: “somos os dois ‘outsiders’”. E é isso que os une, diz, e serve de mote ao episódio de estreia, “Outsiders: An Unlikely Friendship”, uma inteligente demonstração de como de uma narrativa de diferença pode nascer outra de pertença.

Springsteen e Obama: desta intimidade controlada emergem duas vozes hipnotizantes, a solidez de um a contrastar com a suavidade do outro

Talvez por ser mais espontâneo, Springsteen é encantador. Aquele que simbolizou durante décadas as lutas da classe trabalhadora americana fala do pai esquizofrénico, conta como foi ser diferente de todos os outros no liceu, refere os mecanismos de defesa e o poder redentor da música. Surpreendem a profundidade das palavras e a honestidade das pequenas histórias. Quanto à “timidez”, explica, não é incomum no meio. De que outra forma se explicaria tamanho desespero por se fazer ouvir? “E havia muita dor na invisibilidade”, conclui. Uma frase que diz bastante mais do que parece.

Obama fecha o círculo a recordar um dos seus discursos preferidos, aquele que proferiu no 50.º aniversário da marcha de Selma e que se resume numa única ideia: a América é de todos. É essa a narrativa que quer resgatar e o propósito desta empreitada. “Renegades” é afinal política. “De facto, aquilo que faz da América ‘A América’ são todos os que são diferentes [outsiders] e os desajustados [misfits] e as pessoas que tentam criar alguma coisa a partir do nada.” O volume da trilha sonora sobe, a cadência da enumeração transporta-nos, a sobreposição do Obama de então com o Obama de hoje sugere-nos que nos emocionemos: os imigrantes, os agricultores, os sobreviventes do Holocausto, os escravos que construíram a Casa Branca, os rancheiros e os caubóis. Os contadores de histórias. A América é de todos.

Se há alguma verdade nisto? Talvez tanta como nos anos dourados de Hollywood e no facto de uma nação acreditar que nasceu para correr. Talvez tenha sido sempre assim. E talvez seja isso que importa: a mística, o ideal, a convicção de que os bons serão recompensados e que todos podemos ser essas pessoas. Está nesse embalo o poder de “Renegades”. E o universo sabe como, neste momento, precisamos todos tanto disso.

Título: “Renegades: Born in the USA”
De: Barack Obama e Bruce Springsteen
Disponível: Spotify

Para quem: todos aqueles que alguma vez sonharam fazer o coast to coast, ainda acreditam em política e não têm vergonha de se emocionar com “Born to Run”.

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