Longe do cinismo das cidades, do urbanismo desenfreado e das sociedades pós-modernas do alcatrão, vive uma Criatura composta por dez corpos mais preocupados com a tradição, com a canção popular e com a sua silhueta contemporânea. A forma inicial da Criatura — aquela que atirou a primeira pedra — conhece-se por Edgar Valente (músico natural da Covilhã), esse ser insistente que durante uma residência de 7 meses no Musibéria, em Serpa, durante o ano de 2014, começou a amealhar músicos de diferentes formações e geografias. Foi assim que nasceu a Criatura, que já tinha alguns elementos d’Os Compotas, banda funk fundada por Edgar Valente e que já existia anteriormente.
Apesar de já ter tido outros elementos, como o trompetista Yaw Tembe (nascido na Suazilândia e residente em Portugal há alguns anos) e Eloísa d’Ascenção (que na Criatura assumia vozes e percussões), a Criatura é hoje composta pelos seguintes músicos: Edgar Valente (voz, piano, teclados, adufe); Gil Dionísio (voz e violino); Cláudio Gomes (trompete); Alexandre Bernardo (bandolim, guitarra acústica e cavaquinho); Acácio Barbosa (guitarra portuguesa); Fábio Cantinho (bateria); Iúri Oliveira (percussões e mbira); João Aguiar (guitarra elétrica); Paulo Lourenço (baixo elétrico); Ricardo Coelho (gaita de foles, flauta transversal, ocarina e palheta beiroa).
É esta rapaziada toda que acaba de editar o segundo disco, Bem Bonda, isto depois de em 2016 terem editado Aurora. E se nessa primeira cria já se sentia o resgate do tradicional para cama mais moderna, tudo agora parece maximizado, ampliado a um detalhe que torna esta Criatura digna de toda a nossa atenção. Em Aurora, até por ter sido um disco idealizado e começado em Serpa, escutavam-se os sobreiros e as samarras. Em Bem Bonda, como Edgar Valente confirma, ouve-se a geada matinal da Beira Baixa, o terreno menos plano, mais acidentado, embora nada seja calculado matematicamente:
“Há processos criativos mais conceptuais, connosco não é tanto assim, é mais pela força intuitiva da coisa. Mas a expressão ‘Bem Bonda’ é um reflexo claro de uma relação com a Beira, tal como a passagem pela Serra da Estrela. É natural que se fizermos residências rodeados de montanhas, a música transpareça essas montanhas. Ao final de algumas composições percebemos que tínhamos um disco altamente montanhoso.”
Mas a Criatura não exclui geografias, não se deixe enganar, estimado leitor. Se há coisa que a Criatura parece ter é esse desejo de ser para todos: “Há a vontade de que a Criatura seja um espectro emocional e espiritual de tudo o que nos representa como cultura. E houve também desde o início esta preocupação de fazer uma música que fosse transgeracional, transversal a vários tipos de pessoas, no fundo, com uma ideia de unificação, os netos poderem ouvir a nossa música com os avós, levar o novo ao velho, o velho ao novo”, esclarece Edgar Valente.
Tudo, por estas bandas, dá a ideia de querer ser outra coisa. Isso está em toda a comunicação e promoção do conjunto para este segundo disco, mas está também, seguramente, na distância de meia década entre discos, está na franca noção de coletivo e de horizontalidade, está no tamanho pouco comum da sua formação. É a proposta de um outro tempo, como assegura Paulo Lourenço (Paulinho para os amigos):
“Uma das condições da vida é não conseguirmos controlar o tempo. Mais vale fazer as pazes com isso e deixar as coisas acontecerem da forma mais natural. Neste caso, já existiam algumas músicas, isso foi amadurecendo em castas de qualquer coisa. Nós que falamos tanto do ‘ser’ e do ‘fazer porque se sente’, então temos de pensar que os sentimentos não se conseguem programar, sábado às 19h vamos todos sentir uma coisa porque precisamos de criar uma música assim… A verdade é que somos muitos músicos e dependemos um bocadinho das residências artísticas que fazemos, como lugar de criação e de experimentação.”
De residência em residência, de planície em montanha, de noite em noite, a Criatura foi percebendo o que era. E para isso não há pressa, nem fórmula mágica de aceleração: “O disco demorou o tempo que demorou. Estes cinco anos fomos nós a perceber quem fomos, quem somos e qual é a nossa relação com o mundo. Lançamo-nos ao abismo, mas com muitas certezas, queremos muito saber como é. Como somos dez, esta lógica do grupo faz com que isto tudo ganhe proporções épicas”, admite Gil Dionísio.
E o tempo também lhes foi ditando o caminho. Quando editou Aurora, esta Criatura tinha rascunhos de canções que só agora podemos ouvir. Em março de 2019 gravaram uma primeira vida de Bem Bonda. Em fevereiro de 2020, chegaram àquilo que achavam ser quase o estado final do objeto. Depois veio a pandemia e as águas de bacalhau. Resultado: só o finalizaram completamente no último semestre do ano passado:
“Tínhamos este disco praticamente gravado antes da pandemia começar. E, sinceramente, estávamos naquele Portugal do turismo, tudo na boa, e às vezes ouvia o disco e parecia que estávamos a gritar no vazio. E de repente todo o mundo muda, tudo isto se atrasa, e o disco sai num momento que nunca imaginámos. Tudo faz mais sentido agora”, diz Edgar Valente.
Então e afinal que expressão é esta que dá título ao disco? Ora, essa é uma expressão beirã que Edgar Valente ouviu pela primeira vez numa conversa com a tia, algures em 2014. Significa “já chega”, mas não é dita assim sem mais ou menos: “Não se usa a expressão ‘bem bonda’ sozinha numa frase, há sempre algo que vem a seguir, é muito usado como o ‘quanto mais’, bem bonda é quase ‘como se não bastasse isto, quanto mais aquilo’. Não é só um já chega, perde-se muita energia a dizer apenas já chega, é preciso uma nova forma, uma sobra de energia para se passar à ação, explica Edgar.
[ouça “Bem Bonda” na íntegra através do Spotify:]
A capa de Bem Bonda é uma pedra multicolor que João Catarino e Catherina Cardoso — responsáveis pela fotografia e artwork da Criatura — resgataram de um passeio à Mina de São Domingos, depois de um concerto que a banda deu em Serpa. Quando a dupla enviou a imagem dessa pedra, a Criatura ficou enamorada e logo ficou na calha para ser capa do próximo disco.
Mas a história não acaba aqui: “Depois, o que aconteceu, foi um pão que andou o verão todo no tablier da carrinha d’Os Compotas e chegou ao final do verão e aquele pão era uma pedra. O Paulinho agarra naquilo e diz: ‘Isto é que devia ser o disco’. A seguir falei com o Diogo Vaz Cavaleiro, um amigo artista que já andava a trabalhar em pão, e que disse logo que adorava fazer um disco que fosse um pão. A Câmara Municipal do Fundão, que já tinha mostrado interesse em trabalhar connosco, apoiou a ideia. E o melhor foi que o Diogo tinha acabado de saber, dois dias antes de lhe ligarmos, de um fornecedor com corantes naturais para pão, que ainda não tinha. No meio disto aparecem duas músicas que falam de padeiros e ainda a frase da ‘Bem Bonda’: ‘Bem Bonda o pão que está caro, quanto mais a fome’. Tudo se ligou”, conta Edgar Valente.
Assim chegamos à Pedra-Pão, um disco/pão/obra de arte que se pode comer ou guardar. Para isso basta pertencer ao bando e pedir o que lhe é devido, pedir a sua pedra-pão. E isto, gente boa, é um bando de tipos a propor um passo atrás, um outro tipo de relação, a reivindicar formas mais livres de vivermos. Ainda que, claro, de forma pouco explícita: “Sem dúvida, há uma ideia forte de política, mas que vejo mais como política interna, política do ser, é um discurso político sim, mas com outras palavras, com outras acções, por exemplo, uma forma de dizer bem bonda”, conclui Gil Dionísio.