Guitarras simples e sincopadas, projetos para o futuro, assobios e juras de noites em conchinha. Jorge Benvinda, metade de Virgem Suta, membro da banda Paião, do projeto Canções de Roda, Lenga Lengas e Outras que Tais, decidiu que era tempo de se lançar a solo e era hora de falar de amor, porque afinal não há idade para tentar resolver o maior enigma da humanidade. Vida a Dois desdobra-se em amores vários, com propostas de relacionamentos diversos, momentos mais junto ao mar ou vinho em espaços quentes. A produção ficou a cargo de João Pedro Coimbra (Mesa, Bandemónio, Paião) e tudo o resto — arranjos, letras, capa, por aí, enfim, tudo o que um disco comporta — ficou a cargo de Jorge Benvinda, que contou com um apoio da GDA para concretizar o disco.

Para falarmos de Vida a Dois, precisamos de falar do passado, isto é, precisamos de uma certa cronologia de Jorge Benvinda, alentejano de gema, 46 anos, que além da música esteve, durante mais de dez anos, ligado à restauração. O projeto primordial teve o nome de Galeria do Desassossego, em Beja, e era uma casa de petiscos, espectáculos e exposições, que abriu em 2007: “Era uma casa mais ou menos como a ZDB ou o Santiago Alquimista, tínhamos muita gente, cozinha aberta até às 4h da manhã, vários concertos por semana, etc. Eu era o faz-tudo, fui o gajo das obras, fui o gajo que investiu, servia, estava na caixa, estava no bar, programava, fazia som, organizava exposições, montava exposições, vivia aquilo na totalidade”, conta Benvinda, via Zoom.

Em 2012, em simultâneo, abriu um segundo restaurante, Vovó Joaquina, mantendo esse gosto em bem-receber, beber copos, ouvir boa música, discutir boa música, mais uns ovos mexidos com farinheira — Jorge Benvinda andava por tais trilhos. Pelo meio dava voz às canções dos Virgem Suta, que lançaram um primeiro disco em 2009, outro em 2012 e ainda um terceiro em 2015. Desde aí que nunca mais ouvimos nada assinado pelos Virgem Suta, mas também não é a primeira vez que uma banda está seis anos sem editar um disco, não é verdade? E o silêncio não foi propriamente propositado. Em 2017, Nuno Figueiredo foi convidado para fazer uma canção para o Festival da Canção, “Gente Bestial”, que viria a ser interpretada por Benvinda e depois disso ainda veio o projeto de homenagem a Carlos Paião. “O interregno dos Virgem Suta deve-se sobretudo a estes outros projetos, o Festival da Canção deu-nos bastante trabalho e a verdade é que não deixámos de fazer canções, fomos mandando canções avulso um ao outro”, explica Benvinda.

© Mariana Fabião

E, pelo meio, lá apareceu Vida a Dois, idealizado em fevereiro de 2018, mês em que Jorge Benvinda decidiu abdicar dos seus negócios na restauração, para se dedicar definitivamente à música. “Sim, cansei-me dos restaurantes. Epá, já estou com 46 anos, foram dez anos muito intensos, não vivia aquilo de uma forma normal, abria o restaurante às 19h30, aquilo era uma taberna de malta nova, p’rá frentex, rodeávamos as regras muitas vezes e ficávamos no espaço até às 11 da manhã, com clientes. Éramos miúdos e tínhamos vontade de viver tudo. Mas com a crise e a entrada da Troika em Portugal senti uma grande quebra, o pessoal começou a ficar à porta à espera que o concerto acabasse, já fazia mais contas às cervejas, de um contexto em que toda a gente saía quatro a cinco vezes para semana, aí a malta começou a sair uma vez por semana. Perdi um bocado de pica”, admite.

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Vai daí, embrenhado pelo imaginário de duo romântico — não tanto aquele ao estilo Miguel & André, mas mais aquele em que um casal faz música a meias, canta, enamorado, olhos nos olhos —, atirou-se para a grande piscina dos discos a solo. “Gosto muito do imaginário do Marcelo Camelo e da Mallu Magalhães, aquele imaginário fofinho, de namorados, e na altura tinha começado a ensinar a Joana, a minha namorada, a tocar guitarra para fazer assim umas canções que podiam ser cantadas pelos dois. Comecei a ter vontade de ir por aí”, confessa. E algo neste disco que parece ser inegável, é que este é outro Jorge Benvinda: é um criador de canções sem receios de olhar para dentro, é um homem, como confirma, sem vergonha de gritar amor: “É a primeira vez que eu me abro desta maneira, de dizer como sinto as coisas, é a primeira vez que falo em nome próprio. Sou um gajo que guarda muito as coisas para mim, mesmo em termos artísticos nunca gostei muito de explorar as redes sociais, por exemplo, dar-me a conhecer foi uma coisa que nunca fiz. E por trabalhar na área da restauração aprendi a ser muito politicamente correto, não te queixes da vida, não digas que estás mais ou menos, no fundo não mostrava as minhas fragilidades. E este é um disco que é feito de várias relações, diferentes tipos de amores e desamores. Foi uma forma que encontrei de falar um pouco mais de mim, ser sincero, não ter problemas em dizer o amo-te que também é ouvido pelos outros.”

Mas claro, Benvinda não podia ser o mesmo, nem Benvinda, nem ninguém. No seu caso, a situação que hoje se vive no mundo deu-lhe para afunilar, deixar de fazer coisas só porque sim. “Sabes, a pandemia veio trazer-me um bocado aquela coisa do ‘então e se isto for tudo acabar, não me vou dar às pessoas?’. Isso e também uma noção de escolher o que quero fazer, por muito que a área da música seja muito difícil já não estou numa fase de fazer coisas que não quero fazer. A música é o que eu quero fazer, é a minha profissão, forma de estar e tenho de arranjar soluções para conseguir fazer isto”, diz o cantor.

Para deixar de pensar e passar à prática, o alentejano contou com a essencial colaboração de João Pedro Coimbra, compositor e multi-instrumentista, que também deu uma perninha em algumas baterias, sintetizadores, teclas, cordas — no fundo, em todo o lado. “Gosto muito do João Pedro Coimbra, gostei muito do disco que ele fez com Paião e acima de tudo nós damo-nos bem. Eu comecei a mandar-lhe canções e ele começou a opinar e a devolvê-las de forma mais arranjada e assim. Criámos uma colaboração de amizade, simples, sem grande stress, e que acho que potenciou o álbum. Como eu toco um bocadinho de tudo e o João Pedro toca um bocadinho de tudo ainda mais foi porreiro porque eu também não queria que este projeto passasse por muita gente, isto foi também um processo de aprendizagem, fiz os arranjos todos, idealizei capas, um bocado aquela coisa de se eu tivesse sozinho no mundo como é que eu faria as coisas e o João Pedro, como produtor, limou, recolheu, potenciou”, enquadra Benvinda.

© Mariana Fabião

São dez temas, nos quais se nota a evidente ligação ao mundo gastronómico deste músico, uma vez que tem uma canção chamada “Polvo” e outra chamada “Vira o Frango”. A primeira é uma canção muitíssimo bem escrita, numa metáfora que poderíamos apelidar de ecologia do amor e de uma preocupação de Jorge Benvinda com o petróleo nas águas da costa portuguesa: “Este é um polvo que está aborrecido com a humanidade sobretudo com a forma como os mares estão, completamente impregnados de petróleo, poluição, e o polvo, todo envenenado, cheio de crude, decidiu suicidar-se numa poça, na esperança de ser apanhado e de ir parar um prato de algum indivíduo que representasse essa humanidade em ato de vingança. É uma metáfora ecológica, a nossa costa está muito pouco cuidada e faz-me alguma espécie. É um grito, se existisse uma revolta dos polvos talvez a humanidade despertasse”, sugere.

“Namorados” é outro dos pontos altos do disco, com a doce participação de Cláudia Pascoal, uma espécie de hino de amor jovem, que retoma “aquela sensação de que o carro é uma casa e que não existe mais ninguém no mundo se não nós, o nosso carro e a nossa namorada.” São dez temas, mas podiam ser mais. E talvez essas venham a constar de projetos futuros. Até lá aguardemos e dancemos com o amor.