“Madame la juge”. Era sim que Edwy Plenel começava grande parte das suas intervenções, por vezes provocando um sorriso às duas “meritíssimas juízas” que integram o coletivo de três magistrados e que o ouviam. À distância de uma videochamada e de um tradutor que ia transformado para português as suas declarações feitas em francês, o fundador e diretor do jornal francês Mediapart — um dos meios de comunicação que fazia parte do consórcio de jornalistas European Investigative Collaborations (EIC), que investigou os Football Leaks — revelou ao tribunal que Rui Pinto entregou “mais de 70 milhões de documentos confidenciais” aos jornalistas.
“Esse manancial não foi ainda todo explorado. Nem pelos media, nem pela justiça”, afirmou, ouvido como testemunha naquela que é a 36.ª sessão do julgamento de Rui Pinto.
Questionado pela Procuradora da República Marta Viegas, Edwy Plenel explicou que receberam os documentos “sem qualquer condição prévia”. “Éramos totalmente livres na forma como os organizaríamos, como escolheríamos quais trataríamos primeiro e quais não trataríamos”, disse.
Embora nunca tenha estado presencialmente com Rui Pinto, já que os documentos chegavam através de um jornalista da revista alemã Der Spiegel, Edwy Plenel disse estar “convencido” que “é apenas a um indivíduo” que se deve “a libertação dos documentos”. Ainda assim, explicou que não sabia como Rui Pinto obteve a informação, nem sequer pode “ter a certeza de que foi ele” que a conseguiu.
Inicialmente, contou, não sabia sequer que o John do Football Leaks era Rui Pinto — o que só veio a saber através do advogado William Bordoun, que representou Edward Snowden e Julian Assange. Na sua contestação, Rui Pinto tinha admitido que o Football Leaks foi uma “ideia originalmente” sua, embora tenha trabalhado “conjuntamente com algumas pessoas” — pessoas que prefere não identificar por terem “direito ao anonimato”. No entanto, em tribunal nunca prestou declarações e, na declaração inicial que fez no primeiro dia de julgamento, nunca se assumiu como autor do site Football Leaks, a maior fuga de informação de futebol da história.
Já sobre os casos Luanda Leaks e Malta Files, revelados posteriormente, Edwy Plenel garantiu que “nunca” soube a “origem dos documentos”, mas enalteceu a sua importância:
Nunca soubemos origem dos documentos, mas vimos o que se passava em termos de evasão fiscal e corrupção com a cobertura de sociedade de advogados e paraísos fiscais“.
O diretor do Mediapart também lembro que o Football Leaks já em 2018 tinha alertado para uma Superliga — uma “atualidade recente” que, na sua perspetiva, revela “mostra a utilidade democrática das revelações do Football Leaks”. “O projeto da Superliga, organizada pelos 12 clubes mais ricos, tinha sido revelado em 2018 graças aos esforços de Rui Pinto“, disse, criticando que a “vontade” desses clubes “era ficarem ainda mais ricos”. “Sem ele [Rui Pinto] não se tinha conseguido revelar”, considerou, acrescentando ainda: “A Superliga é o símbolo de um futebol gangrenado pelo dinheiro”.
Após o Luanda Leaks, proteção de Rui Pinto na prisão foi reforçada. Estava isolado de outros reclusos e só alguns guardas tinham a chave da cela
Também Álvaro Bernardino, chefe principal do estabelecimento prisional instalado junto da Polícia Judiciária de Lisboa, na altura em que Rui Pinto lá estava em prisão preventiva, foi ouvido como testemunha arrolada pela defesa. Contou em tribunal que o alegado hacker foi colocado nesta prisão por indicação do diretor-geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais, Rómulo Mateus e da ministra da Justiça, devido ao nível de segurança que Rui Pinto exigia.
O responsável explicou que quando Rui Pinto foi preso, Rómulo Mateus o alertou não só para o “mediatismo” em torno do caso, mas também para a “ameaça à volta de Rui Pinto”. “Desde aí foram implementas medidas e aplicado um dispositivo de segurança maior”, contou, especificando que Rui Pinto estava isolado de outros reclusos, que apenas alguns guardas prisionais tinham a chave da sua cela e que o alegado hacker se deslocava por trajetos alternativos e fazia os telefonemas para o exterior à parte”.
“O que nos preocupava era a ameaça do exterior, era a segurança de Rui Pinto”, resumiu Álvaro Bernardino. O responsável lembrou que durante uma fase o dispositivo de segurança foi diminuído, mas, depois da revelação dos Luanda Leaks, o alegado hacker foi colocado numa situação especial novamente. “A ameaça foi reavaliada, segundo as notícias que foram saindo”, explicou.
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão porque terá servido de intermediário de Rui Pinto na suposta tentativa de extorsão à Doyen. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juiz Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.