De entre a minha extensa coleção de DVDs – relíquias de um tempo perdido das quais não prescindo, independentemente da prometida hiper-velocidade do 5G ou da hipótese de um dia o serviço de streaming da Criterion estar disponível em Portugal –, tenho um preferido: a edição especial do “Clube de Combate” (1999), com dois discos e uma quantidade impressionante de extras.  A capa simula um embrulho de papel castanho amarrotado com as pontas presas por cordel e o interior da caixa, tal como o seu conteúdo, é uma brilhante expansão do universo do filme. É também uma lição de cinema, oferecendo quatro diferentes faixas de comentários áudio que, em termos práticos, são como rever o “Clube de Combate” na companhia das pessoas que o fizeram: Chuck Palahniuk (que escreveu o livro) à conversa com Jim Uhls (que o adaptou);  Jeff Cronenweth, o diretor de fotografia, em debate com Michael Kaplan, o responsável pelo guarda-roupa, Kevin Haug, o responsável pelos efeitos especiais e vários outros elementos da equipa técnica; David Fincher e o icónico elenco – Brad Pitt, Edward Norton, Helena Bonham Carter – a mandarem bocas e a dizerem piadas como se estivessem já nos digestivos de um jantar de final de filmagens onde a bebida foi à discrição.

(Um minuto de silêncio pelo desaparecimento das faixas de comentários. Sinto mesmo falta delas.)

É nessa última conversa que Brad Pitt admite que David Fincher o safou. Não terá sido a única nem sequer a primeira vez que o fez – já tinham antes trabalhado juntos em “Seven” — mas foi um momento que o ator fez questão de sublinhar. A cena em questão é o monólogo de Tyler Durden na casa de Paper Street, pouco antes dele desaparecer para espalhar a revolução por território americano. Jack, o narrador, está inconsciente, e ouve-o nas sombras, algures entre o sonho e a realidade:

“In the world I see – you are stalking elk through the damp canyon forest around the ruins of Rockefeller Center…”

“Esse dia não me correu nada bem”, admite Brad Pitt, antes de voltar a insistir que foi David Fincher que o safou, na sala de montagem, usando o dissolve com elegância para tornar o momento numa respiração íntima que une ambas as personagens – o que faz todo o sentido, considerando que (spoiler alert) eles são as mesmas personagens. Já não me recordo qual foi a resposta do realizador americano perante o elogio. Mas essa ideia romântica – a de que o trabalho de um realizador é também safar os outros nos dias em que as cosias não correm nada bem – ficou comigo.

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Fincher é célebre por insistir em várias dezenas de takes até dar a cena por fechada. Passando à frente o detalhe disso ser apenas possível quando há um orçamento que o permite – em cinema, tempo é (muito) dinheiro –, é uma tradição kubrickiana justificada como uma busca por perfeccionismo. “Mank” não foi exceção: Amanda Seyfried fala de 200 takes para uma cena de festa; Charles Dance refere que Gary Oldman se queixou para o seu realizador que “já fiz cem vezes esta puta desta cena” e que ele lhe respondeu “sim, eu sei, mas esta é a centésima-primeira. Reset!”. Há várias razões assumidas pelo próprio Fincher para o seu método mas, para efeitos de justificar a tese temporária deste artigo, vou escolher a que mais me interessa: numa entrevista de 2009 ao The Guardian, referiu que “alguns atores ressentem-se e dizem ‘o meu melhor take é quando estou cheio de energia depois de beber o meu mochaccino e agora a minha energia foi-se’, mas muitos atores têm tudo resolvido na sua cabeça, acham que já sabem o que vão fazer. E eu vejo isso e quero ir além, quero ir ao momento onde eles já se esqueceram porque é que vieram até aqui ou quem é que são.”

Ou seja, o que Fincher quer é safar os atores de si próprios.

(pequena anedota #1: Gary Oldman que, anos antes, numa entrevista de rádio, quando se referiam a realizadores difíceis, contou uma história sobre Harvey Keitel e Stanley Kubrick enquanto trabalhavam em “De Olhos Bem Fechados”. Tudo o que o Harvey Keitel tem de fazer é passar por uma porta. E ele vai passando pela porta e o Kubrick vai pedindo para ele repetir a entrada até que chegam ao 68º take e é aí que o Keitel diz ao icónico realizador “estou fora, you’re fucking crazy, you’re fucking out of your mind”. E foi-se embora, sendo substituído por Sydney Pollack.)

Gary Oldman não se foi embora. Foi nomeado para Melhor Ator.

Mas o mais provável é essa necessidade de controlo ser consequência direta da sensação de não o ter. Os conflitos que Fincher teve com os produtores em “Alien 3 – A Desforra”, a sua primeira longa-metragem, foram bem conhecidos. Decidiu que isso não voltaria a acontecer e depois teve a sorte – e o tremendo talento – de ter transformado o argumento que Andrew Kevin Walker escreveu para “Seven – 7 Pecados Mortais” num clássico americano contemporâneo.

“What’s in the box?” A cabeça da Gwyneth Paltrow. Mas também a liberdade criativa que o sucesso lhe ofereceu e a porta de entrada para um mundo negro e amoral que Fincher retrata como ninguém. Seguir a sua carreira tornou-se num estudo sobre a sociopatia: Tyler Durden e Jack no já referido e estrondoso “Clube de Combate”; o assassino em série por identificar em “Zodíaco”, Zukerberg em “A Rede Social”, Lisbeth Salander em “Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres”, Amy Dunne em “Parte Incerta”; a coleção de psicopatas de “Manhunter”, a série que produz. Exemplos onde estética e história encaixam como cigarros depois do sexo – os planos gelados e metálicos de Fincher, calculados até ao milésimo take, são como a expansão do interior dos seus protagonistas que, acreditando ser o centro do universo, manipulam a realidade à sua volta.

E onde é que fica “Mank” no meio de tudo isto? Ali no meio. Um argumentista entre sociopatas. O filme é uma homenagem ao pai, que escreveu o guião e morreu antes do guião ser produzido — o que é bonito. Mas atraiçoa a memória de Orson Welles, alguém que, como ele, sempre lutou pelo controlo criativo dos seus projetos mas sem metade da sorte nem um décimo do dinheiro — o que é feio.

(Para se perceber melhor a questão da autoria do argumento de “Citizen Kane”, questão central de “Mank”, passar por aqui)

Quando Fincher pensou em virar as costas aos meios tradicionais de produção, assinou um contrato milionário com a Netflix. Quando Orson Welles começou uma guerra com os estúdios, foi praticamente exilado para a Europa onde demorava anos a encontrar financiamento para completar os seus filmes. É essa a diferença.

(Pequena anedota #2: Netfllx que iria, décadas depois da morte de Welles, financiar a recuperação e finalização de “The Other Side of The Wind”, o seu último filme.)

Fincher não venceu o Óscar para Melhor Realização por “Mank” (ganhou Chloé Zhao, por “Nomadland”), e não é a primeira vez — nem a última — que a Academia Americana chega atrasada à celebração do talento dos seus associados. “You’re fucking crazy”, Hollywood, como diria Harvey Keitel. A Academia prefere sempre os projetos mais convencionais, filmes sérios sobre coisas sérias – mas alguém ficou com alguma recordação que seja de “O Caso Misterioso de Benjamin Button”? Alguém sequer reparou que não é esse o título do filme – que é antes “O Estranho Caso de Benjamin Button”? Alguém se importa?

Quando um dia a estatueta lá estiver por casa, sempre é menos uma coisa para Fincher se preocupar. Pode concentrar-se em produzir animação visionária – a 2ª temporada de “Love, Death & Robots” está mesmo quase a estrear na Netflix — e a preparar o seu novo projeto. De acordo com o IMDB, terá o título “The Killer”, é escrito por Andrew Kevin Walker (o mesmo argumentista de “Seven”) e será protagonizado por Michael Fassbender. Ora aqui está uma faixa de comentário que gostaria de ouvir.

Só espero que, até lá, os DVDs com extras façam um comeback. Isso é que era.