Estás à espera do quê, rapaz
De uma onda que te leve para a frente e para trás
Uma voz que te guie e te mostre
Que há mais para além do físico e o lógico
Que há mais para além da vida e da morte
Era julho de 2020. E a gente que se aguentasse com estes versos, que descobrisse formas de responder a vazios tão incómodos e evidentes. Quando agora perguntamos a Martim Braz Teixeira o que há, afinal, “para além do físico e o lógico” e “para além da vida e da morte”, questões que afinal a todos convinha saber a resposta, diz-nos que não é esse o seu lugar: “O disco é que tem de tentar responder a essas questões. Eu só faço a proposta e faço mais: ‘E se um dia o desencanto chega louco a perguntar vale mais viver a vida acordado ou a sonhar?’ Tem de ser a interpretação de cada um a resolver.” Ou seja: obrigadinho.
“Aqui não falta nada” foi a primeira faixa que escutámos daquilo que viria a ser Acordado ou a Sonhar, segundo disco de Jasmim — que sucede ao muito apreciado Culto da Brisa (2019), antes disso um EP, em 2017, chamado Oitavo Mar — e durante muito tempo foi tudo o que tivemos. Afinal, a canção integrou a coletânea Inéditos Vodafone, um projeto que surgiu no âmbito do Portugal #EntraEmCena e que nos deu 20 canções nunca editadas de músicos portugueses. Ainda assim, essa era já uma canção presente no lote das que poderiam fazer parte de Acordado ou a Sonhar, porque para Martim Braz Teixeira o processo não se faz de disco em disco, mas de canção em canção.
[“Aqui não falta nada”:]
“O processo para mim é contínuo, vou fazendo canções e chega um ponto em que me apercebo — apesar de tentar nem fazer esse exercício muitas vezes, porque gosto de não ter essa preocupação — que já tenho material para fazer um disco. Então começo a ver quantos temas tenho, como é que isto está e a partir daí começo a criar o disco. Mas é mais canção a canção, menos conceito, no fim o disco acaba mais por ser um retrato de um determinado tempo do que outra coisa”, explica.
O que sucedeu no caso desse tão bonito tema de abertura de Acordado ou a Sonhar é que, tendo em conta o prazo apertado da candidatura e o estado inacabado do tema nesse momento, foi necessário acelerar e Martim admite ter acabado “por adorar esse processo”. A velocidade ditou que “Aqui não falta nada” não tivesse tempo para repousar em pistas separadas ou para se deixar misturar a ritmo caracol. E não deixa de ser sintomático na forma de trabalhar de Martim Braz Teixeira, que se afasta da ideia de temática, de narrativa, de conceptualização. “Só quando tenho as canções todas e vou desenhando a sequência começo a perceber melhor o que é que este disco é, mas isso só me vem assim a meio das misturas. Acordado ou a sonhar surgiu-me porque havia aqui uma relação nas letras e nos instrumentais com uma coisa um bocado surrealista, transcendente”, diz.
Se no Culto da Brisa era muito mais a flauta, o vislumbre das faluas de alguns cantautores centrais no cancioneiro popular português, agora, ainda que a mesma flauta ainda aqui esteja, até para não nos sentirmos abandonados, é muito mais o ele-e-o-piano e uma insistência nas cordas que nos afasta do vento encantatório do longa-duração anterior. Mas instrumentos à parte, o que importa neste terreno entre o sonho e o despertador é a opção pela depuração, eliminar camadas para melhor evidenciar sentimentos:
“Sem dúvida, foi um disco feito mais feito ao piano, é aquela vontade natural de trocar instrumentos para ser outra coisa, tenho estado a explorar cada vez mais o piano e gosto muito. Comecei a tocar teclas em Mighty Sands e depois, quando comecei Jasmim, parei de tocar teclas e agora voltei e estou a adorar. Tinha muitas ideias de arranjos antes de ir para estúdio com a banda, por isso é que há menos flauta e sintetizadores, tentei que as canções tivessem o mínimo possível para aquelas emoções ficarem salientes, houve um exercício de tirar o que estava a mais, o excesso. No Culto da Brisa as canções prologavam-se, era mais abundante”, clarifica.
Nem mais, nem menos. Lá iam elas, as canções, por esse mundo fora, provavelmente a galope. Nada contra, atenção, mas em sendo outra coisa também estamos bem. O que não é, certamente, outra coisa é a escrita de Martim. Essa mantém-se inalterada, provavelmente com um pedaço a menos de humor, mas mal se nota, até porque a sua poética vale mais que qualquer piada. O marimbar-se para a métrica e para rima, o gosto pelo prolongamento das palavras, que parecem ganhar metros a bordo de uma voz límpida e amiga, a teimosia no “aqui” porque afinal onde seria se não aqui?
Bem a propósito, há até uma homenagem a Walt Whitman, poeta norte-americano e para muitos o pai do verso livre, em jeito de canção e também na ficha técnica do disco — Walt, se daí conseguires ler, ouve este disco, és capaz de gostar. Em suma: a ideia de liberdade é inegável na música de Jasmim. “A relação que tenho com a escrita e com a música é muito livre, não tenho qualquer formação técnica em qualquer uma das áreas. O Walt Whitman é uma voz que marcou muito desde o início de Jasmim e neste disco uma das canções, a ‘Tudo/Nada’, é uma espécie de homenagem, inspirei-me muito nele quando estava a escrever a canção. Em conversas com amigos músicos, parece haver uma escola que diz ‘pá, as canções, tens de fechar as canções’. Mas para mim as canções começam num sítio, muitas vezes com uma pergunta, e acabam num sítio completamente diferente. Gosto de ser levado por aí, não estou aqui para fazer singles”, confessa.
E agora, paremos um pouco na canção central do disco — se é que há meio quando falamos de 9 temas — essa “Tudo/Nada”, que é seguramente uma das canções mais brilhantes que este ano — e se puxam por nós ainda metemos aí mais uns — já ouviu. Tudo perante uma guitarra terna que pede trincadelas em velas debaixo de mesas e desejos de um mundo mais abstrato.
“Trocaste o tudo por nada
Transformaste o nada em tudo
Contudo tens tudo e não queres nada
Com o nada, nada tens e queres tudo
Perdeste-te nas formas das plantas
No verde e no azul
Já olhámos todos para as montanhas
E ainda não vimos o mesmo que tu
Folhas de erva, gotas de água
Um poema, uma canção
Folhas de erva, gotas de água
Tudo, Nada
Nunca nada em vão”
[“Tudo/Nada”:]
É daquelas letras que é impossível não nos atirar para a ribanceira do nosso pensamento, que parece sugerir uma fuga ao nada que teima em provocar receio em qualquer alma pouco concreta. E que, adivinhámos, foi escrita de enfiada: “Foi uma daquelas de assentada sim, essa e a ‘Leva o teu tempo’, houve essa necessidade de tentar preservar isso, porque são canções que surgem de uma vez, são coisas inexplicáveis, quantas vezes não estamos meses a tentar fazer uma letra. Uma das opções de produção foi gravá-las num take para manter esse espírito. Foi uma canção que escrevi num dia cinzento, mas a sonhar com dias mais claros. Comecei com aqueles versos do ‘trocaste tudo por nada’ e fui por aí, fui brincando um bocado com as palavras. E depois ‘perdeste-te na forma das plantas’ e para mim aí a música abre, foi mais ou menos assim”, descreve.
Percamo-nos nas formas das plantas, nas silhuetas das árvores, nos dinossauros que vimos nas nuvens, nos encantos de Jasmim. E tal como Martim Braz Teixeira pretende preservar emoções, preservar autenticidade, preservemos estas canções.